REFLEXÕES SOBRE PORTUGAL A PARTIR DO CASO DA MINHA NETA – por JÚLIO MARQUES MOTA

 

Coimbra, 13 de Junho de 2018

 

Fico com a impressão que vivo num país que não funciona, em que se anda a fingir que tudo funciona bem, e no melhor dos mundos, como nos ensina Voltaire, arrastando-se nesta mistificação o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista. É esta a conclusão que sou obrigado a tirar do caso da minha neta que não será tratada no Hospital Pediátrico de Coimbra, por uma cárie dentária, porque terá de esperar na fila de espera possivelmente 6 meses para depois me darem um cheque-saúde para ir a um bloco operatório de uma clínica privada, alimentando-se assim um sistema privado a viver sobretudo à custa da degradação do setor público. Esta é afinal a política do Ministro da Saúde e como este nos diz que somos todos Centeno, esta é, pois, a política de Centeno. Mas Centeno é um ministro central do Governo de António Costa, e somos então logicamente forçados, o que me dá um amargo de boca incrível, a questionar se esta não é, pois, a política de saúde de António Costa. Se a pergunta é amargamente difícil de colocar, a resposta que tudo parece indicar, essa, é ainda muito mais difícil de aceitar. Obviamente, do ponto de vista emocional, do ponto de vistas das nossas crenças, da nossa visão do mundo e das pessoas, a resposta só pode ser uma: não é, não pode ser, a política de saúde de António Costa. Obviamente, do ponto de vista lógico, é a política de António Costa, é a política praticada pelo seu governo e por um dos seus ministros que ele não demite. Obviamente ainda, pode não ser nem uma coisa nem outra, pode ser a política determinada algures, pelos tecnocratas de Bruxelas que não deixam de insistir, como o faz hoje, dia 13 de Junho, o alemão Klaus P. Regling,  Presidente do Mecanismo Europeu de Estabilidade, quando afirma:

É muito bom que o Governo aproveite estes tempos económicos positivos para consolidar o Orçamento, porque o nível da dívida em Portugal é elevado. Isso torna Portugal vulnerável. Baixar o défice orçamental é a melhor maneira de reduzir o nível da dívida ao longo do tempo e de o país se preparar para a próxima crise”.

E este naco de prosa continua:

NÃO VEJO ISSO A ACONTECER BREVEMENTE, MAS UM DIA HAVERÁ UMA NOVA CRISE E OS PAÍSES COM DÍVIDAS PÚBLICAS MAIS BAIXAS TÊM MENOS HIPÓTESE DE SEREM ATACADOS PELOS MERCADOS[1] .

Mas se é assim que o digam, que esclareçam o povo português do que querem fazer e não o deixam fazer, em vez de andarem a apregoar esta Europa, esta política como a via de que Portugal precisa para recuperar da década perdida com a crise que rebentou em final de 2007. Com um pais a romper pelas costuras pela crise criada e pela austeridade imposta vêem-nos agora dizer que é preciso contenção orçamental porque estamos numa situação de bons tempos!

No plano que aqui nos interessam, a afirmação de Klaus Regling  quer  dizer o seguinte: poupem na Saúde. As recomendações da Comissão Europeia vão também no mesmo sentido mesmo que com uma linguagem mais sofisticada.

Curiosamente, sobre a situação citada da minha neta, foi-nos  afirmado  pelos médicos de serviço de que dentro de quinze dias depois da minha ida em Abril ao Pediátrico, receberíamos uma carta para voltássemos ao hospital para serem feitas análises clínicas, mostrou-se ser completamente falsa. Passaram-se meses e até hoje nem uma linha que seja sobre o assunto. Fica-se com a sensação da indiferença face ao utente do Serviço Nacional de saúde.

O que recebi, pela parte do Primeiro-ministro foi a informação de que o meu segundo protesto tinha também ele sido enviado ao Ministro da Saúde.

Mas, pelo que se vê, os nossos ministros estão cegos, não lêem os protestos que lhes enviam os cidadãos, estão surdos, não ouvem o ruído brutal dos silenciados pela vida, os nossos ministros só têm olhos para Centeno, só têm ouvidos para as recomendações dos tecnocratas de Bruxelas e este, é o que tudo parece indicar, pensa na vida, pensa na ascensão que Bruxelas lhe estará a prometer, desde que siga as suas recomendações. E a situação vai-se degradando, a situação está a atingir um ponto de viragem, um turning point, como muito bem o assinala Charles Hugh Smith quando nos diz:

O ditado “o verme virou-se” refere-se ao momento em que os oprimidos finalmente passaram a ter o suficiente e se viraram contra os seus poderosos opressores.

Os vermes finalmente viraram-se contra as elites privilegiadas – as que têm beneficiado da globalização, da corrupção, do estímulo dos bancos centrais e da especulação dos cartéis impostos pelo Estado. Não importa tanto se os peritos consideram que os vermes estão a virar à esquerda ou à direita; O importante é que os impotentes finalmente começaram a desafiar os seus privilegiados senhores.

Embora os poderes se esforcem em tentar aplacar ou reprimir a revolta dos sem poder, o génio da desunião política e da desordem social não pode ser recolocado, de novo, na garrafa. Foi necessária uma geração de crescente desigualdade, corrupção e de erosão de oportunidades para criar uma sociedade dos protegidos (os ricos) e dos desprotegidos (os que não têm), e agora o estar a carimbarem-se mais regulações e a querer distribuir o Universal Basic Income (UBI) não irá reequilibrar um sistema irrevogavelmente desequilibrado.

Mas o aumento da resistência, ainda nascente, é apenas metade da história: as tendências económicas e os ciclos também estão a rodar, e mesmo que os vermes permaneçam passivamente no subsolo, essas reversões vão atrapalhar o status quo. A narrativa dominante – a correção, a bondade e a sustentabilidade do crescimento sem fim do consumo e da dívida – será desfeita, e as contradições internas desta Nova Idade Dourada (aumento da desigualdade riqueza / rendimento / poder) finalmente romperão a fina fachada da estabilidade que foi conseguida nos últimos nove anos de “recuperação”.

(…)

A democracia já não tem nada a ver com um sistema que tem como função resolver os problemas reais e ser um sistema baseado na responsabilização das pessoas. O sistema democrático passou a ter como função persuadir o público de que tudo está bem ou então de o distrair com controvérsias estéreis. Os titulares são reeleitos porque absorvem enormes contribuições de campanha em montantes suficientes para comprar influências através dos media de massa (empresas) e poderem assim ganhar. Eles têm pouco incentivo para responder aos eleitores, o que deixam então até de o fazer.

O que eles podem fazer é parecer que estão a fazer algo de diferente quando o que fazem, de facto, é proteger os cartéis e os financiadores das suas campanhas eleitorais de reeleições permanentes. Assim, eles propõem mais regulações, a maioria das quais não consegue alcançar os resultados desejados, mas conseguem sobrecarregar as empresas legítimas até ao ponto de as levarem à falência. As pequenas empresas simplesmente vergam-se quando os proprietários exaustos já não conseguem suportar mais os custos nem as empresas deslocalizadas, ditas concorrentes offshore, em tudo o que é excessivamente regulamentado

A ideologia neoliberal sustentava que muitos iriam beneficiar se as regulações e as regulamentações que limitam as empresas fossem facilitados e, quando feitas de maneira judiciosa e com bom senso, isso funcionaria conforme planeado. Mas, na forma corrupta de governança que domina a economia global, a captura regulatória significa regulamentação que protege os cartéis e os insiders da concorrência. Os que têm uma posição privilegiada dentro do sistema, os insiders, têm manipulado o sistema de tal modo que eles possam punir os concorrentes e deixarem os seus colegas, tal como eles, com a vida facilitada.

As regulações e regulamentações úteis que protegem os muitos da exploração dos muito poucos estão agora a serem desmanteladas e substituídas por regulações e regulamentações contraproducentes para “fazer algo” e para abrir buracos legais que protegem os cartéis e as pessoas por dentro do sistema, os que usufruem de uma posição privilegiada no interior do sistema.

Isto é o que nos diz Charles Hugh Smith. Como exemplo do que acaba de ser citado, no que toca à Democracia, vejamos a informação que acabo de receber pelas Instituição responsável relativamente ao tratamento a dar à minha neta, em que se fica a saber agora, em Junho, o que tinha já ficado a saber em 10 de Abril. Vejamos o que nos diz a informação recebida[2]:

 

Ficamos a saber que a minha neta entraria na fila de espera dos necessitados de tratamento e, se ao fim de 6 meses não houver resposta clínica pela parte do Hospital Pediátrico de Coimbra, haveria resposta financeira do sistema: um cheque saúde para se ir tratar num bloco operatório de uma qualquer clínica privada em Coimbra. Simples. O contribuinte paga, paga indiretamente se tem o cheque saúde, paga diretamente ao setor privado, se não suportou a lógica cega do sistema.

Quanto à informação de que no intervalo de 15 dias, após o dia 10 de Abril, a minha neta seria chamada para fazer análises, hoje, dois meses depois, nem uma linha escrita recebemos sobre o assunto, e no texto agora recebido nem uma só palavra é dita. Quanto à política de saúde, quando aos esforços que estariam ou não a ser desenvolvidos para eliminar as longas filas de espera das crianças, no fundo quanto ao que poderia interessar a todos nós como política de saúde, o texto é completamente omisso. Porque no meu protesto não era só a minha neta que me interessava, eram também as mais de 300 crianças que esperam por uma oportunidade de serem tratados no Pediátrico de Coimbra, Há os que podem esperar, há os que não têm outro remédio senão esperar, há os que não suportam esses longos tempos de espera pelos seus filhos e netos e saem do sistema, deixam de estar “ativos” no sistema, como nos diz o texto oficial, e com isto o sistema fica a ganhar e o cidadão visado a perder. Se isto não é andar a jogar à Democracia, a jogar com a vida e com a saúde dos outros, então o que é? Mas o mais curioso neste caso é que ele parece confirmar o que me disse um perito em saúde, de que há casos clínicos, muitos ou poucos não sei, que ficarão esquecidos pelo sistema ou nunca entrarão no sistema por opção do sistema. Fico, pois, a saber que o processo está ativo, o que interpreto no sentido comum do termo, fico a saber que não foi nem rejeitado nem depois esquecido pelo sistema, ou seja, fico a saber que me é garantido o direito de não ter direitos se não me expuser às consequências de 6 meses de espera para alimentar depois o privado! Não reproduz isto um mundo kafkiano?

Calar esta situação é, desculpem-me a agressividade, deixar que o sistema político português caminhe para uma política de hipocrisia, é resvalarmos para a política de silêncio cúmplice e, neste último caso, é portarmo-nos um pouco como as gentes de Vichy, em França, salvaguardadas as diferenças, mas com um pano de fundo comum às duas situações: a subserviência à potência imperial, a Alemanha.  Isto significa também, em termos dos valores da cidadania, estar a capitular como se tem capitulado em todo o lado face ao altar da austeridade criada pela Troika a mando da Alemanha, deixando silenciosamente que se instale na sociedade portuguesa um sistema puramente kafkiano a que querem vergonhosamente continuar a dar o nome de democracia, apelando ao nosso voto para que esta e nestas condições seja validada nas urnas.  Em suma, estamos perante a política da hipocrisia, a que se refere o texto anexo, um texto, mais um, de Charles Hugh Smith.

A dar razão a Charles Hugh Smith, basta ver os últimos acontecimentos da política portuguesa e o recente endurecimento assumido pelo governo para sentir que a ala direita do PS, saudosa do bloco central, está a fazer com que o PS se aproxime do PSD quando este, por seu lado,  já perdeu a agressividade dos tempos da Troika, e está querer fazer o percurso simétrico, a querer aproximar-se do PS, o que conseguirá se Rui Rio conseguir vencer os falcões do seu partido que lhe fazem politicamente uma guerra de morte. Tudo indica, pois, que corremos o risco de voltar a ver os dois grandes partidos do arco da governação a falarem a uma só voz[3], sendo para isso necessário duas condições simétricas: que os falcões do PSD sejam vencidos por Rui Rio, que os falcões do PS, mais moderados que os do PSD, vençam sobre a linha moderada de António Costa. A continuar essa inflexão à direita sairá perdedor António Costa, a deixar reduzir a cinzas o enorme capital político por si conquistado, a almofada ou mecanismo de proteção em que assentava o sistema português atual, para utilizarmos a lógica de Charles Hugh Smith, e com ele sairá também perdedor o povo, o povo que nele depositou tanta esperança.

Em jeito de conclusão, relembro aqui uma pergunta que um amigo meu, um professor de Economia que durante muitos anos lecionou em Cambridge, me colocou há dias, quando trocámos alguns pontos de vista sobre a situação económica mundial. Dizia-me ele:

Poderíamos razoavelmente esperar ter uma velhice mais confortável. Pessoalmente, não sinto que a culpa seja nossa se o futuro não é o que esperávamos que fosse, mas talvez seja também nossa culpa, sendo certo que não consigo ver onde é que errámos…O que é acha?

Nesta trajetória, se esta se vier a verificar, não sinto que a culpa seja minha mas talvez seja também minha mas, neste caso, não consigo ver onde é que errámos. Se calados, claramente estaríamos a errar. Mas não o fazendo, será que errámos mesmo? Onde, então?

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[1] Jornal Público de 13 de Junho de 2018. Esta frase foi por nós colocadas em maiúsculas e a negrito.

[2] Nunca será de mais repetir: não há em todo este texto nenhuma animosidade contra ninguém, não há aqui nada de pessoal contra seja quem for. As pessoas citadas respeito-as, o sistema que as condiciona, esse, contesto-o.

[3] Um outro discurso, também ele a uma só voz, já o encontramos nas declarações de Mário Centeno e dos altos quadros de Bruxelas e Frankfurt. Basta-nos ler a entrevista do alemão Klaus P. Regling!

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Nota – A Viagem dos Argonautas publicará amanhã, sábado, 16 de Junho, também às 22 horas, A política da hipocrisia: o status quo é o problema, mas não se lhe pode tocar, a partir de dois textos de Charles Hugh Smith.

1 Comment

  1. Já há muitos anos que o notável Professor Magalhães Godinho deixou escrito que, em Portugal, não há Democracia. Será bom repetir até decorar.
    Por um lado, a fantasia de querer ver o voluntarioso Centeno como Comissário europeu, obriga a que a População portuguesa tenha de aguentar todas as dificuldades quando, sabe-se, o PIB, nos dois últimos anos, aumentou muito mais que substancialmente. Por outro lado, o herdeiro natural do salazo-marcelismo,, à custa de tanto beijar, sonha ver acontecer um 18 do Brumário para conduzir-se a patrão dum bloco central à sua medida. CLV

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