Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
O mercado está errado sobre os nossos problemas
Por Luke Kanies
Publicado por Luke Kanies em 17 de abril de 2018
O que é que Voltaire nos pode ensinar sobre o valor de um programa informático que ainda não existe
O Cândido de Voltaire justapõe uma filosofia otimista com uma tragédia inacreditável. O autor estava zangado com os filósofos do século 19 que proclamavam que vivíamos no melhor de todos os mundos possíveis enquanto que a destruição e a morte se desenrolavam em toda a Europa e numa escala épica.
Hoje, podemos ouvir a afirmação de que vivemos no melhor dos mundos possíveis e rimo-nos. É claro que somos demasiado esclarecidos para nos considerarmos otimistas ingénuos. Mas seremos? Não é isto uma crença tentadora? Ou ainda, será que o comportamento das pessoas à nossa volta faz mais sentido se considerarmos que elas acreditam nisso, pelo menos um pouco?
Os economistas são teoricamente racionais, analíticos e pensadores da realidade, mas na raiz da economia moderna está uma crença chocantemente próxima da paródia de otimismo de Cândido. Eles têm o que eles chamam de “Hipótese dos Mercados Eficientes” (EMH), que afirma, grosso modo, que todos os ativos estão avaliados de forma adequada, ou seja, pelo seu justo valor. Isso é construído a partir da ideia de que os valores dos ativos num mercado aberto são justos porque incluem todas as informações disponíveis, e todos os atores nesse mercado se comportam de maneira racional em relação ao ativo e à informação disponível.
Esta teoria tende a não desencadear o cinismo que Voltaire assume. Intuitivamente, soa não apenas como estando correta, mas rigorosamente definida enquanto tal. Não é um mercado aberto essencialmente um mecanismo para encontrar o justo valor de um ativo? Isto não é assim tão simples. E quando isso está errado, isso acontece de forma bem espetacular.
Os economistas modernos não podem ser tão destrutivos quanto os grandes pensadores do século XIX, cujas grandes ideias justificaram a eugenia e muitos outros horrores. Só porque não podem ser facilmente utilizados para justificar o assassinato em massa, isso não significa que não devam ser responsabilizados pelas consequências da sua teoria obviamente incorreta.
“Não”, ouço alguém dizer, “a EMH não está errada; é correta por definição.”
Os economistas convenceram-nos daquilo que Voltaire nos estava a proteger: Vivemos no melhor de todos os mercados possíveis, onde toda a informação é pública e onde todos os ativos são valorizados pelo seu justo valor. E mais, se o mercado não valoriza uma qualquer coisa, então é porque não deve ter nenhum valor.
Mas se isso fosse verdade, Warren Buffet não se teria tornado multimilionário comprando ações que valiam mais do que o valor estabelecido pelo mercado e o setor financeiro não poderia ter sido construído para aconselhar os clientes sobre as ações cotadas em bolsa e ao mesmo tempo o leitor não precisaria de leis de garantias ao consumidor[1] ou outras regulamentações que combatem as discrepâncias de informações. Nem Kahneman e Tversky teriam ganho o Prémio Nobel por demonstrarem que os atores de um sistema económico não se comportam de maneira racional, perfurando definitivamente a EMH. Felizmente, isso forçou os teóricos a começarem a lidar com as bases defeituosas da sua teoria, mas muitas crenças modernas estão implicitamente construídas em torno destas teorias falidas.
O leitor pode estar a congratular-se agora mesmo por não ser suficientemente tolo para atrair a ira de Voltaire, mas está embutido no sistema de valores do mundo ao seu redor – especialmente se vive nos EUA.
- O mercado passa irracionalmente da situação de estar a ignorar as novas tecnologias como o blockchain para irracionalmente afundar massivamente dinheiro nelas, sem nenhuma mudança fundamental que justifique a mudança.
- Os investimentos são feitos com base na proximidade e na crença da boa sorte ao invés de o serem na base da racionalidade e da sua oportunidade.
- Nós tendemos a afirmar que os ricos ganharam o seu estatuto através do trabalho duro, ao invés de reconhecermos o papel dos privilégios, herança e de sorte no seu estatuto.
É claro que nem todos no mercado operam com tanto otimismo, mas cada um de nós tem um comportamento enviesado nessa direção. Isso afeta a nossa maneira de pensar, quer queiramos ou não.
“OK”, diz-nos o leitor, “mesmo que eu aceite que algumas pessoas tomam decisões otimistas quanto ao investimento, o que é que isso tem a ver com o programa informático?”
Ótima questão. Se vivemos no melhor de todos os mercados possíveis, onde toda a informação é pública e todos os ativos são valorizados pelo seu justo valor, então podemos confiar na avaliação do mercado sobre qual o programa informático que deve ou não deve existir. A falta de um programa informático para resolver um problema é um sinal de que não vale a pena resolvê-lo.
Se, por outro lado, o nosso mundo poderia ser melhor, ou se o nosso mercado é imperfeito na avaliação de ativos, então não podemos confiar em conclusões intuitivas sobre onde reside o valor. Isso é particularmente verdadeiro quando se trata de avaliar problemas não resolvidos. Pode acontecer que um dado problema não tenha nenhuma solução, talvez pelo que não vale a pena tentar resolvê-lo, mas as razões banais são mais propensas a terem a culpa.
A maioria das grandes empresas existe porque forneceu algo que o mercado não sabia que queria. Os seus fundadores encontraram uma falha e conseguiram construir algo grande na oportunidade criada por ela. Henry Ford alegou que se ele tivesse dado às pessoas o que elas queriam, teria sido um cavalo mais rápido. O mercado sabia como valorizá-los, mas não carros. Antes da Apple, o mercado não valorizava computadores pessoais. Antes do Google, o mercado valorizava os diretórios, mas não os mecanismos de busca. Antes do iPhone, o mercado valorizava telefones caros para uso profissional, mas não pessoal.
Estas declarações de valor eram falhas de mercado e a sua resolução gerava bilhões de dólares para as empresas que as resolviam. Agora, é claro, o mercado vê grande valor naquilo que esses fundadores criaram – não porque o mercado é tão inteligente; mas porque não tem como continuar estúpido.
É fácil ficar desanimado diante de falhas de mercado tão óbvias. Se a sabedoria das multidões, a grande mão invisível do mercado, pode ser tão errada, que esperança pode ter um empresário solitário? Eu tomo um caminho diferente.
Eu desfruto com estas falhas.
Eles rodeiam-nos. Nós banhamo-nos nelas. Sim, muitas grandes empresas cresceram em lacunas críticas de mercado, mas mesmo com todos esses sucessos, há problemas incalculáveis cuja solução devia ser valorizada, mas não é.
Somente quando rejeita as opiniões erradas do mercado sobre o que importa é que você começa a ver oportunidades quase ilimitadas. Há tantas outras necessidades não satisfeitas do que soluções perfeitas. Estas são as suas oportunidades.
Claro que só porque o mercado descarta um espaço não significa que há uma grande oportunidade lá. É seu o trabalho de conhecer o problema, o seu cliente, o seu usuário, o seu comprador, o suficiente para tirar as suas próprias conclusões, desenvolver bastante certeza de que você não precisa de outra pessoa para lhe dizer em que acreditar.
Porque esse é o verdadeiro ponto: confie em si mesmo, não num monte de otimistas paternalistas.
Texto original em https://lukekanies.com/venture-capital-is-wrong-about-your-problems/
[1] N.T. Lemon laws no original
O autor: conselheiro de conceção e estratégia em tecnologia de informação e serviços, escritor e fundador da empresa Puppet.