Seleção de Júlio Marques Mota e tradução de Francisco Tavares
As falsidades da suposta recuperação económica promovida pelo pensamento neoliberal dominante
Por Vicenç Navarro
em 16 de agosto de 2018
Está a criar-se a perceção nos países do capitalismo desenvolvido de que a Grande Recessão – que causou uma deterioração muito acentuada do bem-estar e qualidade de vida da maioria das suas populações – é um facto do passado, consequência do suposto êxito das políticas neoliberais que os governos destes países foram aplicando durante este período. Estas políticas consistiram em reformas laborais (supostamente destinadas a favorecer a flexibilidade dos mercados laborais) e cortes da despesa pública, nomeadamente a despesa pública social (em serviços públicos como a saúde, a educação, a habitação social, os serviços sociais, as escolas de infância, os serviços domiciliários, e outros; e em transferências públicas, como as pensões) que se aplicaram para reduzir o supostamente excessivo défice público que estava “a afogar” a economia, como consequência de uma “excessiva generosidade dos direitos sociais” que tinha que ser corrigida e reverter-se mediante a imposição de políticas de austeridade.
O “suposto êxito” das políticas públicas neoliberais
Segundo os establishments político-mediáticos que promovem a sabedoria convencional em cada país, estas medidas tiveram um grande êxito tendo recuperado o rigor e a eficiência das suas economias. Como prova disso, apresentam indicadores que -segundo afirmam- refletem tal recuperação como, por exemplo, o aumento do crescimento económico e a diminuição do desemprego. Esta promoção das políticas neoliberais vai acompanhada, geralmente, de referências ao “suposto grande êxito” da economia estado-unidense – máximo referente do pensamento neoliberal -, que é atribuído à grande flexibilidade do seu mercado de trabalho e à sua escassa despesa pública (a mais baixa, descontando a sua despesa militar), muito acentuada no caso da despesa pública social (responsável que os EUA sejam o país capitalista desenvolvido com menor proteção social). Segundo explica a sabedoria convencional – de clara sensibilidade neoliberal – este país, depois do colapso da sua economia (de 2007 a 2009 o seu PIB baixou 4%), recuperou, a partir de 2009, a sua taxa de crescimento (uma média de 2,1% ao ano), o que provocou uma grande descida do desemprego, que dos 10% passou para 3,8%, o mais baixo do mundo capitalista desenvolvido.
O que escondem os indicadores do “suposto êxito”: a deterioração muito assinalável do bem-estar e da qualidade de vida das classes populares
O que tais argumentos ocultam ou desconhecem é que, em grande parte dos países capitalistas desenvolvidos, os números do desemprego têm um valor muito relativo para medir o grau de eficiência do mercado laboral, pois excluem grandes setores da população que sofrem as consequências da grande deterioração do mercado laboral (causado por tais políticas neoliberais), e que não estão refletidos na taxa de desemprego. Este indicador de desemprego não inclui, por exemplo, a população que trabalha a tempo parcial e em situação temporal que querem trabalhar a tempo completo (a população empregada subocupada), um problema grave criado pelas reformas laborais. Este setor sofreu um aumento notável, alcançando a sua máxima expressão no trabalho precário, muito generalizado hoje na grande maioria dos países capitalistas desenvolvidos. Em Espanha fala-se muito (com razão) do elevadíssimo desemprego, mas não se fala tanto do elevadíssimo nível de precariedade entre a população empregada. Os contratos mais frequentes em Espanha são os que duram 15 dias e um quarto do total tem uma duração de 7 dias, sendo este o tipo de contrato que aumentou mais desde o início da crise em 2007. Desde que se iniciou a crise, quase 60% do emprego criado foi -precisamente- de carácter temporal e parcial.
Outro setor da população que não está incluído na taxa final de desemprego são as pessoas que abandonaram a procura de postos de trabalho por não encontrarem trabalho. Nos EUA, caso se incluísse este setor da população, a taxa de desemprego ascenderia a 7,6%. Na realidade, se se somasse os desempregados, os empregados subocupados e os que desistiram de procurar postos de trabalho, a cifra de desemprego ascenderia a uns 10,9% (17,6 milhões de pessoas). Esta trágica (e não há outra maneira realista de defini-la) situação, mostra as limitações de utilizar a taxa de desemprego como o principal indicador de eficiência do mercado de trabalho. O “êxito” na redução da taxa de desemprego, foi conseguido à custa de um enorme crescimento do desemprego oculto, da precariedade e do desânimo em que se encontram grandes setores das classes trabalhadores nestes países, que representam a maioria das classes populares.
No país modelo neoliberal, os EUA, a estes dados deve somar-se outro fator raramente mencionado quando se analisa o tema do desemprego: a elevadíssima percentagem da população que está encarcerada. Os presos daquele país são 2,2 milhões de pessoas, três vezes superior à média dos países de semelhante nível de desenvolvimento económico. Sem lugar a dúvidas, se a percentagem da população encarcerada fosse semelhante à existente na maioria dos países da UE, o número de personas sem trabalho e que estão à procura de trabalho (assim como as taxas de desemprego oficial) seria inclusive muito maior que o enunciado nas cifras oficiais de desemprego. Na realidade, a elevada encarceração é uma das causas de que o desemprego aparente seja tão baixo nos EUA.
Os elevados custos das reformas laborais e outras medidas neoliberais
Em Espanha, a aplicação das políticas neoliberais criou uma enorme deterioração do mercado laboral espanhol. Todavia hoje, quando se assume que a economia se recuperou, apenas metade dos postos de trabalho perdidos (3,8 milhões) durante o início da crise (2008-2013) foram recuperados. Mas, tal como no caso dos EUA, se somamos as pessoas que estão no desemprego (17%), as pessoas que estão subocupadas (pessoas que trabalham a tempo parcial involuntário) e as que abandonaram a procura de trabalho, desanimados de o encontrar, a cifra de desemprego real aumentaria para 28%.
Repito, pois, uma observação que, apesar da sua grande importância, não é visível nos fóruns mediáticos e políticos do país: a descida do desemprego oculta o grande crescimento do desemprego oculto, da precariedade e do desânimo. Esta é a realidade que se desconhece e ignora, e que causou grandes protestos populares em todos os países, canalizadas pelos movimentos antiestablishment.
Porque razão os salários não sobem- e até continuam a baixar – quando o desemprego supostamente se está a reduzir?
Estas cifras reais de pessoas desocupadas -que não estão refletidas nos indicadores de desemprego- explicam que haja uma enorme reserva de pessoas em necessidade de trabalho. Mais ainda, a estas pessoas que constituem esta grande reserva de gente procurando trabalho há que acrescentar os milhões de trabalhadores que existem em reserva nos países menos desenvolvidos, cujos trabalhadores aceitam salários muito mais baixos e condições de trabalho muito piores que nos países capitalistas desenvolvidos. Daí que a desregulação do mercado de trabalho (uma das maiores medidas neoliberais) tenha sido acompanhada de outra grande medida neoliberal: a desregulação da mobilidade de capitais (com a globalização das chamadas multinacionais) que está a fortalecer o poder do mundo empresarial frente ao mundo do trabalho. A ameaça de deslocalização de empresas para países com salários baixos é uma das medidas disciplinares mais comuns hoje nos países capitalistas desenvolvidos, contra os trabalhadores.
Como parte desta desregulação do movimento de capitais promoveu-se o outro lado da moeda, ou seja, a promoção da mobilidade dos trabalhadores, favorecendo a imigração como medida para garantir a disponibilidade de trabalhadores que, pela vulnerabilidade associada à condição de imigrantes aceitam salários mais baixos e piores condições de trabalho.
Estes dados explicam que, apesar da diminuição do nível de desemprego oficial, os salários não subam. Se tal cifra de desemprego fosse real, a classe trabalhadora teria mais poder de negociação com o mundo empresarial, a fim de obter salários mais altos. O facto de que isso não ocorra deve-se ao enorme debilitamento da classe trabalhadora e do mundo do trabalho, incluindo os seus sindicatos, que se traduz na enorme disponibilidade de trabalhadores potenciais, estejam eles dentro ou fora do país.
A grande debilidade do mundo do trabalho: o objetivo das políticas neoliberais
Vimos assim que um dos princípios do pensamento económico dominante – que a descida do desemprego gera um aumento dos salários– não se concretizou: os salários não têm estado a subir durante a recuperação. Antes pelo contrário, têm estado a descer. De novo, olhando para o modelo estado-unidense vemos que o trabalhador (não supervisor) dos EUA recebe hoje um salário que é 4% mais baixo que no ano de 1972 -há 46 anos- e isso apesar de a produtividade deste tipo de trabalhador ter mais que dobrado durante este período. A riqueza criada por este aumento da produtividade não beneficiou, no entanto, o trabalhador, mas antes aos que estão acima dele, os seus supervisores, os empresários e equipas de direção, assim como aos financeiros que manipulam o crédito e especulam com os lucros empresariais conseguidos pela descida dos salários.
Esta situação ocorreu também nas economias europeias, incluída a espanhola. Na grande maioria de países europeus, o crescimento da produtividade foi maior do que o crescimento dos salários, realidade que tem estado a ocorrer desde o início do período neoliberal, no final da década dos anos setenta do século passado, até agora. Por outras palavras, esta situação contribuiu a que o PIB de tais países tenha subido mais rapidamente que os salários (que em muitos países, como os EUA, baixaram inclusive) (ver: P. Dolack, Flat Wages ZCommunications, 2018).
O mesmo ou pior está a suceder em Espanha
Em Espanha os salários baixaram também. Tiveram uma descida de 10% durante o período de aplicação máxima das políticas neoliberais (2008-2014) (afetando primordialmente as mulheres e os jovens), permanecendo estáveis (ou baixando no setor privado), perdendo assim capacidade aquisitiva ao crescerem em menor grau que a inflação. Na realidade, os salários para os mesmos postos de trabalho, de 2008 a 2015 desceram uns 12%. Isso ocorreu ao mesmo tempo que a produtividade do trabalhador (produtividade real por hora trabalhada) foi aumentando muito mais rapidamente que os salários. O excedente aumentou os lucros empresariais, os rendimentos mais elevados, aumentando com isso as desigualdades, sendo estas últimas das mais acentuadas na União Europeia.
Como resultado disso, os rendimentos do trabalho foram descendo em todos os países ao mesmo tempo os rendimentos do capital foram subindo. Em Espanha, esta alteração na distribuição do rendimento foi uma das mais acentuadas. Como bem disse em tempos o magnate empresarial Warren Buffet, há “uma luta de classes e temos estado a ganhá-la”. E esta vitória estende-se a todos os níveis, de tal maneira que a ideologia do grande mundo empresarial -o neoliberalismo- continua a ser hegemónica nas instituições políticas e mediáticas, apesar do enorme fracasso no estado económico do país. Porém, a expressão “desastre” é relativa, pois para o mundo do capital e dos seus gestores, a economia está a ir muito bem. E o que desejavam, ou seja, a diminuição dos salários, das expectativas dos trabalhadores e a diminuição (e, em alguns casos, o desmantelamento) da proteção social, foi o seu grande “êxito”.
Como se conseguiu a vitória neoliberal?
Vimos como a aplicação das políticas públicas neoliberais debilitou os instrumentos criados pelo mundo do trabalho para defender os seus interesses, como os sindicatos. As reformas laborais, por exemplo, estavam destinadas a “flexibilizar” o mundo do trabalho. O termo flexibilizar quer dizer eliminar os direitos laborais e sociais conseguidos pelos trabalhadores durante a época dourada do capitalismo (1945-1980), em que se tinha conseguido um pacto social entre o mundo do capital e o mundo do trabalho. Daí que a solução exigiria uma mudança política, observação especialmente importante, pois as causas políticas da deterioração do mercado de trabalho são sistematicamente ignoradas, atribuindo-se tal deterioração à automatização, à robotização ou a qualquer outro elemento, sem ter em conta que, por sua vez, tais variantes técnicas são determinadas pelo contexto político.
Parte deste debilitamento do mundo do trabalho foram as mudanças nos partidos políticos que tinham sido criados por este e que se foram distanciando da sua base eleitoral, fazendo suas muitas das medidas neoliberais que contribuíram para tal distanciamento. O crescente controlo destes partidos políticos (a maioria de tradição social-democrata) pela classe média ilustrada (profissionais de formação universitária que desenvolvem interesses de classe próprios, diferentes dos que eram os da sua base eleitoral) explica a sua renúncia a políticas redistributivas e a sua conversão ao neoliberalismo, tal como sucedeu com os governos Clinton, Obama, Blair, Schröder, Hollande, Zapatero, entre outros. O colapso da social-democracia e outras esquerdas é um indicador disso.
É lógico e previsível que os movimentos antiestablishment de base operária tenham vindo a surgir como resposta
Esta situação explica o surgimento dos movimentos antiestablishment, que protestam pela perda da qualidade de vida das classes populares, causada pelas reformas laborais, pelas políticas de austeridade e pela globalização. O abandono por parte das forças governantes de esquerda das políticas redistributivas que as caracterizaram no passado (alegando que eram “antiquadas” ou “impossíveis de realizar”), e o seu compromisso com o neoliberalismo, foi o responsável do surgimento de tais movimentos. O establishment político-mediático neoliberal atribui tais movimentos ao crescimento do nacionalismo, racismo, chauvinismo, ou qualquer ismo que esteja de moda.
E cada uma das características destes movimentos é uma resposta direta ao ataque neoliberal. O nacionalismo, por exemplo, é um protesto frente à globalização. A sua antiimigração é um indicador de rejeição da globalização do mundo do trabalho, em resposta à sua ansiedade e temor de perda do seu emprego ou dificuldade em encontra-lo. O seu antiestablishment é consequência de verem o establishment como responsável das políticas que os perjudicaram. Nos EUA, por exemplo, não há evidência de que o racismo tenha aumentado. Na realidade, os votantes que tornaram possível a eleição de Trump no Colégio Eleitoral dos EUA procediam de bairros operários em áreas desindustrializadas que tinham votado num negro, o candidato Obama, para a presidência nas eleições anteriores. E em 2016, Trump ganhou porque [Hillary] Clinton representava o establishment, tendo sido Ministra dos Negócios Estrangeiros e máxima promotora da globalização, responsável das políticas públicas que tinham prejudicado a classe trabalhadora.
A demonização dos protestos populares antiestablishment
É característico do establishment político-mediático definir como “retrógrados” e “lixo social” -como fez a Sra. Clinton- estes protestos dos que se opuseram às medidas neoliberais que prejudicaram enormemente a qualidade de vida das classes populares. Na realidade, era facilmente previsível que Trump ganharia as eleições (e assim o dissemos uns quantos quando começaram as primárias do Partido Republicano e mais tarde quando foi eleito o Presidente). As classes trabalhadoras, prejudicadas por tais políticas, estão a mostrar a sua rejeição aos establishments político-mediáticos. A única alternativa que podia ter ganho a Trump era o candidato socialista Bernie Sanders, que pedia uma revolução democrática, e assim o mostravam as sondagens. A destruição da candidatura Sanders por parte do partido democrata, controlado pela candidata Clinton, foi um elemento chave na vitória de Trump. Escusado será dizer que as classes trabalhadoras não são o único sector que apresenta tal rejeição, embora sejam as mais mobilizadas por serem também as mais prejudicadas. E o mesmo aconteceu em quase cada país europeu. Desde o Brexit no Reino Unido, ao surgimento da ultra-direita por todo o território europeu são sintomas disso. O abandono do projeto autenticamente transformador por parte dos partidos de esquerda explica a canalização da indignação popular por parte de partidos radicais de ultradireita.
Em Espanha, a aplicação das políticas neoliberais dos governos Zapatero primeiro e Rajoy depois, afetaram muito negativamente o bem-estar das classes populares, que gerou o movimento de protesto e rejeição chamado 15-M, um sopro de ar fresco no clima neoliberal promovido pelos establishments político-mediáticos do país, e que cristalizou mais tarde em Podemos. Este partido em pouco tempo converteu-se numa das maiores forças políticas do país, com um enorme impacto canalizando a enorme indignação e rejeição em relação às políticas neoliberais. Isso impediu a mobilização da ultradireita como instrumento de protesto, devido em grande parte a que esta estava já no partido governante -o Partido Popular-, importante impulsor do neoliberalismo (juntamente com Ciudadanos). Daí que, o compromisso de tal partido com o neoliberalismo seja um dos maiores obstáculos para que capitalize a indignação das classes populares, por muito nacionalista e antiimigração que se apresente, como tenta o seu novo presidente, Pablo Casado. Um tanto parecido ocorrerá com Ciudadanos, que está hoje a utilizar o seu nacionalismo para ocultar o seu neoliberalismo.
A única saída para esta situação é que exista uma ampla aliança de movimentos sociais e forças políticas que rejeitem o neoliberalismo, a globalização e a desregulação dos mercados laborais, assim como a mobilidade de capitais e trabalhadores a nível internacional, que tem estado a criar uma enorme dor às classes populares. A não ser que exista esta rejeição das políticas neoliberais atuais, não vejo possibilidades de mudança. Assim de claro.
Texto original em https://blogs.publico.es/vicenc-navarro/2018/08/16/las-falsedades-de-la-supuesta-recuperacion-economica-promovida-por-el-pensamiento-neoliberal-dominante/
Vicenç Navarro foi Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona. Atualmente é Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha). Foi também professor de Políticas Públicas na Johns Hopkins University (Baltimore, EEUU) onde deu classes durante 48 anos. Dirige o Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University. Dirige também o Observatório Social de Espanha.
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