LUÍS REIS TORGAL* – ANTÓNIO JOSÉ DE ALMEIDA E A I GUERRA MUNDIAL**

(1866 – 1929)

 

 

António José de Almeida (AJA) nasceu em Vale da Vinha, freguesia de Farinha Podre (hoje S. Pedro de Alva), concelho de Penacova, distrito de Coimbra, a 17 de Julho de 1866 (17 de Julho é hoje o feriado municipal de Penacova), e morreu em Lisboa, na sua casa da rua António Augusto de Aguiar, a 31 de Outubro de 1929. Formou-se em Medicina na Universidade de Coimbra, onde iniciou a sua militância republicana, e foi médico em São Tomé durante alguns anos, regressando a Lisboa em 1903, para, depois de uma viagem ao estrangeiro, continuar a sua luta política e, durante algum tempo, exercer a sua profissão, na especialidade de “doenças dos países quentes” (“medicina tropical”, como depois se veio a chamar). Fez parte da chamada “geração do Ultimatum”, caracterizada pela acção republicana, nos jornais, no parlamento e em comícios e manifestações de rua, que teve como primeiro momento a luta contra o Ultimatum inglês, em defesa do território português de África e em luta contra a Inglaterra imperial, que procurava ocupar espaço em África, alegadamente português, aproveitando a circunstância para atacar o regime monárquico, luta que em crescendo vai terminar com a proclamação da República em 5 de Outubro de 1910. No jornal Ultimatum, publicado em Coimbra no início de 1890, escreveu o seu artigo “Bragança, o último”, contra a Monarquia e a família real de Bragança, representada pelo rei D. Carlos, que o levou pela primeira vez a julgamento e à prisão. A sua crítica de juventude ao imperialismo britânico é particularmente curiosa devido — como se verá — às suas posições relativas à entrada de Portugal na guerra de 1914-1918, que considerava importante por motivos estratégicos, de defesa do território português em África, pela lealdade devida aos velhos aliados e porque entendia então que se tratava de uma luta pela “civilização”.

Deputado republicano durante a Monarquia e na I República, aí desenvolveu as suas naturais aptidões de orador que já o haviam tornado conhecido pelas suas actuações em comícios e orações de homenagem fúnebre. Ministro do Interior do Governo Provisório da I República, presidido por Teófilo Braga, fundador da revista Alma Nacional, nas vésperas da proclamação da República e, já depois, do jornal República e do Partido Evolucionista, teve posições ora moderadas ora radicais, que o levaram a ser admirado e criticado nos meios republicanos e também nos meios monárquicos. No entanto, no fim da vida acabou por vir ao de cimo a sua moderação, que o conduziu à Presidência da República (1919-1923), tendo sido o único a cumprir o mandato completo, apesar das grande crises de regime que por essa altura se revelaram, como o movimento de Outubro de 1921 que terminou com o assassínio de alguns dos mais significativos republicanos, como o presidente do conselho de ministros António Granjo e o “herói da rotunda”, o inconstante Machado Santos. A viagem presidencial ao Brasil em 1922 coroou os últimos anos da sua vida política.

O papel de AJA relativo à entrada de Portugal na Primeira Grande Guerra — que fundamentalmente interessa referir neste artigo — foi, pelo menos, de um certo pragmatismo, de alguma espectacularidade e naturalmente de um sempre afirmado nacionalismo, devido às palavras proferidas e à sua repercussão. AJA manifestou-se, na verdade, como um dos mais inflamados “guerristas” e opositores da Alemanha. Foi-o como jornalista, como parlamentar e veio depois a sê-lo como governante, assim como acalentará a memória da guerra e dos seus “heróis” durante a Presidência da República.

Na altura em que a guerra se iniciou era presidente do ministério Bernardino Machado, ministro da Guerra o general António Júlio Pereira d’Eça e ministro dos Negócios Estrangeiros o coronel Alfredo Augusto Freire de Andrade. O velho Manuel de Arriaga, amigo de AJA, era o presidente da República. Em 7 de Agosto de 1914 o governo obtivera do Congresso autorização legislativa a fim de se preparar para a eventual entrada na guerra e, em Setembro, vai começar por mobilizar as tropas para as suas possessões africanas. Neste ano já encontramos António José de Almeida a incitar o país a entrar na guerra ao lado da Inglaterra e em nome dos princípios da República. Em 20 de Outubro, surgiu mais uma insurreição monárquica, a partir de Mafra e de Trás-os-Montes. Começava a explorar-se, do lado germanófilo, o sentimento de que Portugal não deveria hostilizar a Alemanha e, demagogicamente — no sentir do próprio líder evolucionista —, “apelava-se para as lágrimas das mães, apontando-lhes os filhos varados pelas balas alemãs na carnificina da guerra” e “apelava-se para o soldado português, pregando-lhe aos ouvidos, dia e noite, que ele era a vítima desgraçada de miseráveis ambições de homens públicos portugueses, caminhando, mal armado e mal municiado, para os morticínios da guerra”. Contra esta insurreição e contra este “antiguerrismo” considerado hipócrita pelos seus contrários, erguia-se AJA, no editorial do República de 22 de Outubro de 1914, afirmando que “os soldados portugueses devem ir bater-se ao lado da Inglaterra, visto que ela, à sombra de tratados e ajustes, reclamou o nosso concurso militar”. As intervenções sucedem-se, cada vez com maior clareza de intenções. Em 1 de Novembro, no artigo “Latinismo”, AJA justifica, por uma questão de disciplina e devido aos “tempos excepcionais” de guerra, a censura prévia às reportagens e notícias dos jornais sobre o conflito, embora não aos artigos de opinião, medida que, efectivamente, foi tomada. Aproveitou então para falar do “vício” português de opinar a propósito de tudo, como se “as nossas opiniões” fossem “verdades indubitáveis” e “sentenças sem apelação”. Não era só um “vício” português — afirmava — mas era “inerente, em grau maior ou menor, a todos os povos da raça latina”. Daí que não houvesse entre eles a “conjugação de vontades”, diluindo-se tudo “num reboliço de vaidade, numa sarabanda de invejas feridas ou mesquinhas e miseráveis”. Havia, nestas palavras de AJA, um olhar amargo para fora, como para dentro. Na Europa em guerra comparava a organização militar da França, “muito aquém do que devia ser”, com a “engrenagem guerreira” da Alemanha. Em Portugal olhava amargamente para a sua situação: “Na sociedade portuguesa lavra uma grande indisciplina seja qual for o aspecto por que ela se encare”. O artigo é, como se disse, sobretudo acerca da censura prévia e dos vícios das sociedades latinas. Porém, se deixa uma mensagem de esperança relativamente à França — “sacudida pelos primeiros abalos do vendaval que lhe traria a destruição irremediável”, a França ergueu-se através da acção de Joffre, “supremo guia e supremo chefe”, prevendo assim que “a Alemanha será vencida” — deixa também subentendida uma ideia de unidade necessária em Portugal. Surge, cada vez mais claramente, no seu pensamento, a ideia de uma “união” de compromisso dos partidos, o que só virá a suceder mais tarde. Em 5 de Novembro de 1914, de novo em editorial do República, regista que nesse dia seguia para a África Ocidental uma expedição da Marinha portuguesa. O nacionalismo releva-se nas suas palavras, afirmando princípios de paz que sempre dizia defender, apesar de se ver forçado também a optar pela luta armada que nos era imposta. Deste modo, falava desses “valentes marinheiros” que — no seu dizer — iam “manter, conjuntamente com o prestígio da nossa bandeira, a legítima posse do nosso património”, desses “mensageiros da legalidade e da ordem” que não iam “conquistar” nada, “fazer mão baixa no que pertence aos outros”, mas que “entrarão certamente em combate para defenderem os princípios da paz”, para “garantirem pelas armas, sendo preciso, a manutenção daquilo que nos pertence”. Ficava também bem claro neste artigo o tipo de “ódio” que nutria pela Alemanha, correspondendo ao “ódio” de destruição e sem ética que nela via, em contraste com o “ódio” de defesa de princípios, que perscrutava nos aliados. Os seus sentimentos fluem, de resto, ao sabor da revolta, que, por exemplo, encontra nas palavras do escritor belga Maurice Maeterlink, mas que tomam uma feição diferente quando destaca a “atitude nobre” e “pacífica” do seu país. São palavras dramáticas e duras que revelam a visão trágica desse tempo de violência, no qual, todavia, segundo sentia, se destacava o nosso “pacifismo” (de guerra defensiva — entenda-se) e o nacionalismo, que será a ideia forte, sempre afirmada oficialmente, no que respeita à nossa participação na Primeira Guerra. Em 7 de Novembro, surge novo editorial no jornal A República, com o título significativo “Em plena carnificina”. Sobe ainda mais de tom o antigermanismo, como cresce a simpatia pelos aliados, neste caso simbolizada sobretudo no exemplo que apresenta do presidente francês Poincaré e do rei da Bélgica, “essa nobre e melancólica figura de cidadão e soldado que parece envolta nas fímbrias daquela lenda que o sentimentalismo gaulês criou em volta de Joana d’Arc” (como romanticamente o caracteriza). Nesta frase, curta mas incisiva, com que termina o artigo, pode sintetizar-se a distinção que AJA faz entre o espírito de guerra, respectivamente, dos aliados e dos alemães: “Da banda de cá mata-se por necessidade. Da banda de lá assassina-se por gosto”.

Em 23 de Novembro de 1914 será a vez da sua acção oratória fundamental no próprio forum parlamentar, já na sequência de outras intervenções. O governo levou ao Congresso extraordinário, reunido nesse dia, um texto que, depois de sumariar as posições assumidas desde 8 de Agosto, propunha a seguinte lei: “É o poder executivo autorizado a intervir militarmente na actual luta armada internacional, quando e como julgue necessário aos nossos altos interesses e deveres de nação livre e aliada da Inglaterra, tomando, para esse fim, as providências necessárias que as circunstâncias de momento reclamem”. Em nome do Partido Evolucionista, AJA proferiu um discurso que haveria de se tornar “histórico”, pois uma passagem dele — propositadamente, por razões diplomáticas, não transcrita no sumário oficial da sessão, mas sim no jornal República — será aproveitada pelo Governo Imperial alemão para a sua declaração de guerra a Portugal, datada de 9 de Março de 1916. A atitude do partido de que era líder traduzia-se, como se poderia calcular, numa posição clara. AJA e o seu agrupamento político apoiavam a entrada de Portugal na guerra, através das significativas palavras relativas à proposta do Governo: “voto” e “confirmo”, dizendo que se a Inglaterra precisava do apoio português, era urgente “dar-lho”. E dizia: “Lancei até na imprensa uma fórmula que parece não ter sido infeliz, visto que ela fez o circuito de uma grande parte da imprensa provinciana. Essa fórmula traduzia-se nestas palavras: Vamos até onde for preciso, mas sendo preciso! Chegámos agora ao desfecho lógico dos acontecimentos e vamos para a guerra, visto que é preciso ir para ela”. A par desta posição decidida, AJA refere-se criticamente à situação de Portugal. Apesar do seu indeclinável republicanismo, nunca deixou de assinalar a situação da República, numa crítica que era afinal uma das razões da sua defesa da união dos republicanos em volta de ideais idênticos: “país desmantelado com as arcas vazias, e, o que é pior, coberto de dívidas, com a nossa indústria atrofiada e a nossa agricultura numa situação difícil”, “país com exército diminuto e apenas sofrivelmente armado e equipado”, “depauperado e exausto por uns poucos de anos de deboche constitucional”… Mas, apesar dessa situação, AJA — talvez também pensando (sem nunca o dizer, o que contradiria o seu afirmado pacifismo, mas com base na “sabedoria clássica”, revivificada nessa época) que a guerra era também factor de progresso, de agregação de forças e de exaltação de ideais nacionais — advogava, como vimos, a entrada de Portugal na guerra, justificando a sua posição, por agora (outros motivações, já subentendidas, serão apresentadas a posteriori), quase tão-só na vontade da Inglaterra: “uma vez que a Inglaterra pede o nosso auxílio, só nos cumpre correr a dar-lho, espontaneamente e de boa vontade, porque a lealdade para com essa grande aliada, além de ser timbre do nosso ânimo, é segurança dos nossos interesses”. Como estavam longe os anos do Ultimatum, em que o jovem estudante de Coimbra fustigara a Grã-Bretanha! Agora, conforme percebemos pela dureza das suas palavras, era a vez da Alemanha a ser atacada, uma Alemanha considerada “despótica” e “bárbara”, comandada por um Imperador “criminoso”, em oposição ao “direito” e à “justiça”, representada pelos aliados. Foi este afinal o discurso — tão idêntico àquelas palavras proferidas anos atrás contra o próprio rei português — que originou o protesto germânico na declaração de guerra Portugal: “Esta guerra é a contenda sangrenta e à outrance do despotismo e do direito, da barbárie e da Justiça. Desencadeada por um criminoso vulgar a quem o destino pôs na cabeça uma coroa de imperador, ela tem sido conjuntamente uma guerra de traição, de espionagem, de cobardia e de crueldade. Atraiçoaram-se os tratados, que a chancela alemã rubricava, galgando por cima da pacifica Bélgica; espionou-se dolorosamente em todos os recantos do mundo a boa fé dos povos livres para os assaltar no momento em que eles estavam dormindo, convencidos da lealdade alheia; cobardemente se agrediram povos fadados para os mais amplos destinos, praticando nas suas gentes atentados sangrentos que repugnam à consciência dos homens; cruelmente se maltratam criaturas indefesas protegidas pelos mais altos princípios da civilização do nosso tempo e de maneira tão bárbara e selvagem que os próprios sábios militarizados da Alemanha não tiveram pejo em sancionar implicitamente essas infâmias cobardes, dizendo-se possuidores, contra certos povos, de um ódio elementar.” E dirá ainda do imperador germânico, não deixando de explorar um certo ar de triunfalismo “à portuguesa”: “O Imperador da Alemanha, há anos, quando ainda não se tinha manifestado o malfeitor repugnante de agora, disse que admirava o nosso exército, e, em prova disso, colocou no peito de um soldado português as insígnias de uma condecoração guerreira. Então admirava-o. Não tardará muito que o tema também.”

Como não poderia deixar de suceder, a entrada de Portugal na guerra teria de se precipitar, após as pressões da Inglaterra, nomeadamente devido às consequências do “Bloqueio Continental” imposto à Alemanha, de natureza essencialmente económica, que criava também fortes condicionalismos a Portugal e a todos os países até aí neutrais. Em situação cada vez mais evidente de beligerância, que leva o nosso Estado, em Fevereiro de 1916, a apreender os navios alemães fundeados nos portos portugueses, o governo de Afonso Costa, cujo Ministério da Guerra, que tinha como titular Norton de Matos, se movia no sentido da preparação das nossas tropas, pedia apoio aos partidos no parlamento. António José de Almeida concede-lhe inteira solidariedade, enquanto Brito Camacho se mantém numa posição dúbia. Em 9 de Março de 1916, a situação, finalmente, explode. A Alemanha entregava ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Soares, a declaração de guerra. Protestava ali o governo imperial contra a posição de Portugal em relação à Alemanha, ao mesmo tempo que — dizia de forma ofensiva — se tornara “vassalo da Inglaterra”. E não deixa mesmo de salientar, entre outras alegadas atitudes do nosso Estado contra o Império, como a referida apreensão dos navios alemães, a campanha realizada nos jornais e no parlamento. Tal acusação envolvia, como atrás dissemos, AJA e o seu partido, os quais eram ali expressos desta forma clara: “A imprensa e o Parlamento, durante todo o decurso da guerra, entregaram-se a grosseiras ofensas ao povo alemão, com a complacência, mais ou menos notória, do Governo Português. O chefe do Partido dos Evolucionistas pronunciou na sessão do Congresso de 23 de Novembro de 1914, na presença dos ministros portugueses, assim como na de diplomatas estrangeiros, graves insultos contra o imperador da Alemanha, sem que por parte do presidente da Câmara, ou de alguns dos ministros presentes, se seguisse um protesto. Às suas representações, o enviado imperial recebeu apenas a resposta de que no boletim oficial das sessões não se encontrava a passagem em questão.”

Apesar de se dizer que não se encontrava ainda restabelecido de uma doença que o atingira — o que é recorrente nas suas intervenções (AJA padecia de reumatismo gotoso, o que às vezes dificultava ou impedia a sua acção política) —, perante a grave situação do país, foi ao parlamento no dia 10 de Março de 1916, e, no discurso que então proferiu, cujo extracto foi transcrito no Diário oficial e no República, de 11 de Março, apelou mais uma vez para a unidade nacional, no que foi muito aplaudido: “é dever de todos os portugueses que se unam, que se congreguem em redor da Pátria, para que com o esforço e a dedicação de todos ela resulte maior e mais bela”. Renovou a vontade do Partido Evolucionista em honrar os compromissos com a Inglaterra, “nação nossa amiga e aliada”, ao mesmo tempo que confirmou os ataques que fizera à Alemanha, “pelos atentados sem nome que se estavam praticando contra a humanidade”, nomeadamente contra a “pobre Bélgica devastada”, onde — de acordo com as notícias — “se estavam assassinando velhos indefesos, violentando mulheres e decepando as mãos a inocentes crianças”. E, quanto à referência, na declaração de guerra da Alemanha, ao Partido Evolucionista e a ele próprio, dizia triunfalmente e assumindo as suas responsabilidades políticas perante a História: “Diz-se na nota alemã que as palavras sobre o kaiser foram proferidas pelo chefe do partido evolucionista. Engano. O representante dos evolucionistas fez, sim, declarações em nome do seu partido, e com ele concertadas, mas a indignação colérica com que eu verberei os massacres e as crueldades da Alemanha só a mim diz respeito. Das palavras com que a traduzi assumo todas as responsabilidades perante a História, considerando-as como um dos mais nobres padrões da minha vida de combatente pelos altos princípios humanos.”

Aproveitando este clima de unidade, o presidente da República, Bernardino Machado, propõe um governo de frente partidária, que é nomeado em 15 de Março de 1916. Estava confirmado o governo que ficou conhecido por “União Sagrada”. Evolucionistas e democráticos encontram-se finalmente, mantendo-se as posições de reserva de unionistas. No plano pessoal, AJA faz as pazes com Afonso Costa, de quem fora amigo e correligionário enquanto estudante e no tempo da deputação republicana na Câmara dos Deputados da Monarquia, mas de que se afastara nas “guerras da República”. Ele próprio fará o seu elogio pessoal em discurso que proferirá no Congresso, em 16 de Março. Membros dos dois partidos ocupam agora as pastas ministeriais do Governo, presidido por AJA e por vezes interinamente por Afonso Costa. Destaque-se que o ministério da Guerra será ocupado, na sequência dos governos anteriores, pelo democrático José Norton de Matos, então major do Estado Maior, que fora Governador Geral de Angola e, para além de ministro da Guerra, havia sido ministro das Colónias do primeiro governo democrático de José de Castro. A ele se atribui o grande esforço de preparação do exército português para a guerra, conhecido por “milagre de Tancos”. Como inovações institucionais do Governo surgiu uma nova pasta, a do Trabalho e Previdência Social, e foram criados os subsecretários de Estado, das Finanças, da Guerra e das Colónias, “para terem mais fácil e rápida solução os negócios que correm por alguns ministérios” (como explicava AJA na declaração ministerial proferida no Congresso em 16 de Março de 1916). Tudo começava, pois, com uma certa esperança de entendimento. Assim se verifica, evidentemente, na citada declaração ministerial de 16 de Março. AJA apresenta o governo à Câmara de Deputados e ao Senado, reunidos conjuntamente. Como diz, reflectindo a realidade política ministerial, estavam nele “representados dois partidos da República, o Partido Republicano Português e o Partido Republicano Evolucionista, e ao qual assegurou todo o seu apoio o Partido Republicano Unionista”. As grandes causas eram, em tempo de guerra, a “causa sagrada da independência e integridade nacional”, a “união entre os portugueses”, a “conciliação de toda a família portuguesa, em homenagem, em culto ao sagrado princípio da nacionalidade”. Eram os ministros, como dizia António José, “homens que provêm de diferentes escolas políticas, embora dentro do mesmo ideal”, que “não trepidaram em se unir, estendendo-se as mãos, mais do que isso, associando-se na acção”: “Esqueceram-se mutuamente os agravos, voluntariamente expulsaram da alma a sombra de todos os ressentimentos. E porquê? Porque se uniram esses homens estendendo-se fraternalmente a mão? Porque ao de cima das nossas cabeças, como uma ameaça terrível, silvaram estas palavras, que, saídas do nosso espírito inquieto, podem traduzir uma realidade tremenda: A PÁTRIA ESTÁ EM PERIGO.”

Contudo, já se adivinhavam as dificuldades, de natureza económica, social e, como sempre, de natureza política. A ideia de desdobrar o ministério do Fomento, criando o ministério do Trabalho e Previdência Social, para além do seu aspecto inovador, encobriria a preocupação de que os trabalhadores em situação de guerra iriam ter acrescidas dificuldades. Era instituído — como explicava o presidente do ministério — “para mais proficuamente se poder acudir às necessidades das classes trabalhadoras, que tanto merecem as atenções e desvelos da República”. Por outro lado, o programa-síntese do governo era o seguinte: “pôr a justiça ao serviço da paz, manter a liberdade ao serviço da ordem” Ou seja, previa-se já que continuaria a haver hostilidades por parte de republicanos e em nome da República. Aqui estão as palavras finais de AJA, que escondiam, sem dúvida, os seus temores, numa sonora retórica nacionalista e histórica, que sempre caracterizou os seus discursos: “Seremos tolerantes dentro das leis, aproveitando daquelas que respeitam aos problemas da consciência ou possam implicar com os princípios da tolerância toda a elasticidade de que forem susceptíveis nas suas disposições para que os espíritos se acalmem e congracem. Sem dúvida que isso depende também, e muito, da atitude daqueles que até hoje têm movido hostilidade à República, quando dentro dela todas as reivindicações legítimas podem ser plenamente satisfeitas pela livre discussão. Mas por nossa parte damos, desde já, o exemplo da tolerância, fazendo estas nossas leais declarações. Em resumo: o Governo, a que presido por honrosa incumbência desse eminente português e grande republicano que ocupa a suprema magistratura do país, terá como intento máximo solidarizar toda a família portuguesa, neste momento culminante da sua grande História. Procurará ligar os homens entre si e também vinculá-los à tradição do passado, estabelecendo a equação da continuidade histórica pelo sacrifício, pela tolerância e pelo amor à terra onde todos nascemos. Neste momento formidando e augusto, não apelamos só para a geração actual, que assiste a uma violenta e trágica transformação do mundo, apelamos também para a sombra dos nossos maiores que beijaram o pó para que nós vivêssemos, preparando-nos destinos épicos e gloriosos. Assim, fortes desta comunhão entre o presente e o passado, sob a inspiração valiosa de que o futuro será por nós, porque a raça é imperecível e a Pátria é imortal, o Governo da República tem a honra de saudar o Parlamento e todos os portugueses, sem excepção, heroicamente simbolizados neste momento pelo Exército e pela Armada”. O discurso que se seguiu, proferido já na Câmara dos Deputados, pouco acrescenta ao anterior, embora revele melhor as quezílias que se iriam suceder. É então que AJA dirige a Afonso Costa os mais vivos elogios pessoais e institucionais — “eminente republicano e patriota” — , pelas relações criadas pelo governo transacto com a Inglaterra, e é nesse discurso que manifesta a concordância com democráticos como Alexandre Braga, o qual noutro tempo vivamente o atacara, em defesa da “União Sagrada”. Mas é igualmente nessa altura que lamenta a ausência no governo de Brito Camacho, e é então que responde, com afirmações de respeito, mas também com uma manifestação de tipo nacionalista, às primeiras críticas. É o caso do deputado socialista e médico António Costa Júnior, que afirmava a sua discordância com a composição do governo, ou até de José Simas Machado — do próprio Partido Evolucionista e mais tarde do Partido Centrista de Egas Moniz e sidonista — , que sublinhava, distanciando-se da posição do líder, que quem estava à frente do governo não era o “chefe do Partido Evolucionista” mas António José de Almeida. Os problemas que o governo naturalmente iria enfrentar ainda são mais evidentes nas interpelações dos deputados, na sessão de 20 de Maio de 1916. Ali, AJA responde aos deputado democráticos Jaime Cortesão e António Joaquim Ferreira da Fonseca. Ao médico e escritor de Ançã, do concelho de Coimbra (como António José de Almeida), colaborador de A Águia, do grupo da “Renascença Portuguesa”, e a quem tinha sido encomendado o texto Cartilha para os soldados, procura responder sobre as questões do apoio às famílias dos militares mobilizados, das subsistências, da produção agrícola, da necessidade de uma propaganda de guerra e da importância de uma declaração governamental sobre o “estado” crítico da “alma portuguesa”. Para com o jurista, intransigente da greve académica de 1907, inconstante na sua ligação partidária, futuro ministro e futuro diplomata, AJA mostrou maior impaciência, replicando contra as suas afirmações de que Portugal tinha sido sempre “um subordinado da Inglaterra”, posição que por certo mais feria a sua sempre afirmada coerência, porque se — como vimos — AJA, como homem de Estado, defendeu denodadamente o apoio à nossa velha aliada, outrora, na sua juventude, como combatente republicano, por altura do Ultimatum, havia exactamente tomado a mesmo posição assumida agora pelo ainda jovem deputado, de cerca de 30 anos. E as respostas do presidente do ministério, para além de pretenderem mostrar as potencialidades da “União Sagrada” e da entrada de Portugal na guerra, em termos da “prosperidade” do país e mesmo do ponto de vista militar, procuravam igualmente salientar que, naquela altura, era oportuna a capacidade de o governo tomar medidas excepcionais, como a suspensão de algumas garantias, que o parlamento lhe concedera, medidas que seriam adoptadas só em caso de necessidade, assim como defendia a “censura preventiva dos jornais” — “imprescindível neste momento”, dizia — contra a qual o deputado se insurgia. Este discurso é, porém, acima de tudo, como já subliminarmente indiciámos, revelador de uma situação que, na verdade, feria à partida as possibilidades da “União Sagrada”. AJA, doente e impaciente, pela própria enfermidade e pelas posições de deputados que pareciam desejar, logo à partida, criar dificuldades ao governo, assim como — como afirmará mais tarde — pelo abandono de correligionários e amigos (“até amigos de infância”…), angustiado com certeza por sentir que estava a expressar alguma incoerência política (ao defender intransigentemente a entrada de Portugal na guerra ao lado da Inglaterra e a formação de governo com o Partido Democrático) revela um espírito menos combativo e optimista do que seria talvez necessário. Porém, depois de responder a António Ferreira da Fonseca e a fechar a sua intervenção, não pôde deixar de fazer passar um discurso revelador de uma pseudo-humildade e autocrítica, a par de uma certa angústia política, ainda que encoberta na afirmação pseudo-triunfalista, de confiança nos destinos do povo, conforme se pode verificar no seguinte extracto da narrativa do Diário da Câmara de Deputados: “A sua saúde está abalada e por esse facto pouco tempo continuará à frente do Governo. No entretanto, maior obstáculo poderá levantar-se à sua permanência no governo, e esse determinado pela falta de confiança do Parlamento. Que este se manifeste, pois, sem reticências. O actual ministério, constituído de homens inteligentes e trabalhadores, tem um defeito: o ser presidido por ele orador, que, sendo um homem de inteligência clara servida por uma vontade forte, não possui, todavia, aquela soma de qualidades, bem o sabe, que era mister na conjuntura presente. Que a Câmara dos Deputados, pois, se manifeste e imediatamente; ele cederá o lugar a quem melhor possa merecer a confiança do Congresso e do Pais. Saindo daquele lugar para a sua cadeira de deputado, o orador continuará a fomentar calorosamente a União Sagrada, e com o Governo que assumir os destinos do País nas horas de triunfo e nas horas de amargura ele se solidarizará inteiramente. Mas horas de amargura não virão, decerto, porque na alma de povo português abrigam-se, com entusiasmo e amor, aquelas virtudes heróicas que, noutros tempos, o levaram a feitos imortais e o hão-de conduzir, agora, a gloriosos destinos.”

O governo da “União Sagrada” presidido por AJA (15.3.1916 a 25.4.1917), apesar de ser o mais duradoiro da República — cerca de 400 dias (só ele e o primeiro governo de Afonso Costa, 1913-1914, ultrapassaram um ano) — foi um tempo particularmente conturbado. A oposição de monárquicos e católicos, de alguns unionistas e até evolucionistas, e mesmo de alguns democráticos, foi surgindo, à medida que os problemas reais de um país em guerra iam aparecendo. O próprio Machado Santos, como era costume, não deixa de fazer o seu levantamento militar, a partir de Tomar (13 de Dezembro de 1916). A entrada de Portugal na guerra da Europa (até então tinha-se confinado à África), com o envio da Primeira Brigada do Corpo Expedicionário Português (CEP), comandada pelo então coronel Gomes da Costa, em 30 de Janeiro de 1917, seguindo-se em 23 de Fevereiro o embarque do segundo contingente, geram alguma instabilidade e certo descontentamento popular, alimentado por alguns políticos e militares. A morte do primeiro soldado português em França, António Gonçalves Curado, a 4 de Abril, a que se seguirão mais, vai ainda aumentar a situação de mal-estar nacional. Por sua vez, as medidas de excepção já aludidas vão gerar críticas por parte de políticos e jornalistas. É o caso da já referida censura prévia aos jornais, decretada em 28 de Março de 1916, que acabaria por levar à suspensão temporária de um dos periódicos de maior prestígio, A Luta, e a medida excepcional de pena de morte em caso de crime de guerra, votada no parlamento em 31 de Agosto de 1916. Algumas estruturas sindicais que se manifestaram contra a participação de Portugal na guerra foram também suspensas, logo em Março de 1916, com os consequentes protestos. A questão dos abastecimentos foi, naturalmente, um dos maiores problemas e mais sentidos pela população, pois verificou-se a falta de alimentos e grande aumento de preços. Em Setembro de 1916 era extinta a Comissão Central de Subsistências e substituída pela Comissão de Abastecimentos. Em 18 de Abril de 1917 era organizado o Conselho Económico, formado por personalidades estranhas ao parlamento, o que originou grande controvérsia entre alguns deputados. Por sua vez, Afonso Costa não conseguia equilibrar as finanças, embora as organizasse de modo a separar as contas da guerra das contas gerais do Estado. E o escudo ia-se desvalorizando, o que tinha repercussões no poder de compra das famílias, especialmente das mais desfavorecidas. Entretanto, Afonso Costa ia ganhando prestígio internacional, participando na Conferência Económica, inaugurada em Londres a 14 de Junho de 1916. Ele e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Soares, estiveram na capital inglesa de 21 de Junho a 27 de Julho. Depois de passarem por Paris, onde se avistaram com João Chagas, que elogiou o trabalho de Afonso Costa, este, na sessão parlamentar de 9 de Agosto, deu conta das suas actividades e contratos com a Inglaterra, que no geral eram económica e politicamente favoráveis ao país. A falta de saúde de AJA — para aumentar as suas angústias, morria em 5 de Março de 1917 o seu velho amigo, das boas e más horas, o ex-presidente Manuel de Arriaga — e o aumento de prestígio de Afonso Costa, que chegará, conforme dissemos, a substituí-lo na presidência do ministério e que de novo fará uma viagem diplomática ao estrangeiro, a França e Espanha, no início de Abril de 1917, acabaram por precipitar o fim da “União Sagrada” presidida pelo político evolucionista. Dir-se-á que o “governo nacional” continuará formalmente, com o governo dirigido por Afonso Costa, nomeado em 25 de Abril de 1917. Mas o certo é que será um ministério só constituído por democráticos.

Durante esta pseudo-“União Sagrada”, que se verificará até à revolução sidonista de 5 de Dezembro de 1917, crescerão as críticas ao governo da República e manifestar-se-ão sintomas claros de revanchismo de natureza política e político-eclesiástica. É então que se organiza o Centro Católico Português, que tem o seu congresso em 22 de Agosto de 1917, de onde sai o seu primeiro programa, bem como o Partido Centrista Republicano, que, apesar de organizado em inícios de 1917 por Egas Moniz, só difunde em Outubro o seu programa. Entretanto, desde 13 de Maio que se verificavam as “aparições de Fátima”, as quais vão ter um papel significativo no regresso de muitos dos valores mais conservadores da Igreja Católica. A guerra era a grande obsessão dos portugueses, uma terrível guerra que se passara nas nossas colónias — que ainda assim estavam bem presentes na memória nacional — mas que acontecia também nas terras de França e da Flandres, terras “estranhas”, só conhecidas por políticos e intelectuais. Era sempre possível e até relativamente fácil, em termos demagógicos ou em termos de afirmação de Fé, à direita, republicana ou não republicana, e à esquerda e à pseudo-esquerda, socialista ou sindicalista, saber gerir estas angústias populares contra os governos, sobretudo quando o governo era gerido pelo Partido Democrático, cujo líder fora, para os “católicos”, o “luciferino” autor da lei de separação do Estado das Igrejas. Contra isso só restava ao Estado a propaganda do discurso e até a visita do presidente da República às trincheiras portuguesas. Assim fizera Bernardino Machado, em Outubro de 1917. Foi afinal também a primeira viagem de um Presidente da República Portuguesa ao estrangeiro, sendo recebido pelo presidente da França, Poincaré, pelo rei de Inglaterra, Jorge V, e pelo rei da Bélgica no exílio, Alberto.

AJA, esse só regressará com sucesso ao teatro político depois de se ter verificado uma série de acontecimentos: a Ditadura Sidonista (Dezembro de 1917 a Dezembro de 1918), que recusara e criticara, os governos pós-sidonistas, o movimento dito da “Monarquia do Norte” (Janeiro-Fevereiro de 1919), o regresso da “República Velha” (Março de 1919) e a vitória dos democráticos, já sem Afonso Costa, em Junho de 1919. AJA vai então reviver. Será o seu grande momento político. Nessa altura, e antes do turbilhão do “outubrismo”, AJA, que entrara nos movimentos conciliadores como a Cruzada Nacional Nuno Álvares Pereira (organizada em 1918), ao lado inclusivamente daqueles que viriam a destruir a Primeira República, vai ter, já como seu Presidente da República, palavras de nacionalismo acendrado por altura da deposição de dois soldados mortos de desconhecida identificação (um morto na África e outro na Flandres) no Mosteiro da Batalha, que se tornou, para além de templo católico e panteão da dinastia de Avis, o símbolo do patriotismo e da memória, cada vez mais forte, da Primeira Guerra. Tal deposição dos dois soldados dá-se em 7 de Abril de 1921, por altura do terceiro aniversário da batalha de La Lys. Será também por essa altura que recebe os comandantes das forças aliadas, Joffre, de França, Armando Diaz, de Itália, e Smith Dorrien, do Reino Unido, que assistiram ao acto e aos quais foi depois atribuído o doutoramento honoris causa pela Universidade de Coimbra. Mas o movimento em prol da memória da guerra, com toda a sua retórica patriótica, vai chegar às mais recônditas vilas do país, com a inauguração dos “monumentos aos Mortos da Grande Guerra”, alguns dos quais AJA ainda conheceu como Presidente e esteve presente durante o acto inaugural. Ao “guerrismo” dos anos da guerra, juntar-se-á portanto a sua presença em actos e monumentos que tentarão perpetuar a sua memória, movimento que se iniciou em França e que teve repercussão nos diversos países envolvidos.

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* Professor catedrático aposentado da FLUC; fundador e investigador do CEIS20

** No ano em que se celebra o centenário do final da I Guerra Mundial e a um ano de se celebrar o centenário da eleição (6 de Agosto de 1919) e tomada de posse (5 de Outubro de 2019) justifica-se a publicação deste artigo que se destina a ser publicado no Dicionário da II Guerra Mundial.

 

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