Venezuela ou o encobrimento dos meios de comunicação sobre o rompimento de diálogo por parte dos opositores venezuelanos apoiados pelos EUA e pela UE – “Em defesa da mediação de Zapatero”, por Miguel Ángel Moratinos

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Seleção e tradução de Francisco Tavares

Para lá de uma defesa do trabalho de mediação de Zapatero, este é um texto bem elucidativo sobre o encobrimento dos meios de comunicação sobre o rompimento de diálogo por parte dos opositores venezuelanos apoiados pelos EUA e pela UE e sobre aquilo que verdadeiramente desejam para a Venezuela: não uma solução negociada, democrática, mas a imposição do derrube de um regime que, pelos vistos, tem tido mais actos eleitorais que qualquer outro país do hemisfério sul nos últimos 20 anos.

Como se pode ver, o golpe de Estado que está em curso não nasceu no dia 23 de janeiro com a autoproclamção de Guaidó,

FGT

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Em defesa da mediação de Zapatero

Moratinos Miguel Por Miguel Ángel Moratinos

Publicado por El Mundo, em 15 de fevereiro de 2018

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Como era de esperar, recentemente apareceram alguns artigos e cartas ao leitor para desacreditar o intenso e meritório trabalho de mediação do ex-presidente José Luis Rodríguez Zapatero na Venezuela. Não devemos surpreender-nos com o tom ou o conteúdo desses escritos, pois eles representam a voz e o pensamento de uma parte da sociedade venezuelana que há anos tenta impor a sua visão através de desqualificações e críticas pessoais sem buscar, ao contrário, favorecer o diálogo e o debate político para estabilizar a situação. O que sim surpreende é que essas críticas se tenham centrado exclusivamente em culpar apenas uma pessoa pelo não acordo na República Dominicana, ignorando a parcela de responsabilidade de cada um dos participantes dessa reunião diplomática. Parece que esses analistas desconhecem a realidade política da Venezuela e a própria natureza de toda mediação internacional.

A crise sistémica na Venezuela não foi produzida ou avalizada por Zapatero. Esta situação aprofunda suas raízes desde há várias décadas quando, precisamente, essa classe política que hoje se outorga a exclusividade na defesa das suas credenciais democráticas foi a que facilitou, dado o seu nível de descrédito e corrupção, a chegada ao poder do comandante Hugo Chávez. Este foi mais tarde democraticamente eleito pela maioria do povo venezuelano e referendado em várias ocasiões. O regime bolivariano pode ser criticado por muitos erros, mas não por não se ter submetido à avaliação cidadã. A Venezuela tem sido o país com mais disputas eleitorais em todo o hemisfério sul nas últimas décadas. Esta obsessão com a “mudança de regime” por parte de um setor da sociedade venezuelana e de alguns atores internacionais não é, portanto, nova e não deve ser ignorada. Após a morte do presidente Chávez e a chegada de Maduro, esse confronto político-ideológico levou o país a um beco sem saída. O governo venezuelano não quis fazer nenhuma concessão e a oposição procurou única e exclusivamente derrubar o regime, mobilizando as ruas e buscando um clima de desestabilização geral que só levou à confrontação civil.

Este é o contexto em que Rodríguez Zapatero é solicitado pelos principais atores internacionais, incluindo os Estados Unidos, a aceitar esta mediação internacional. Muitos outros tentaram e os seus esforços não duraram mais de 48 horas, optaram por uma das partes e os seus êxitos foram nulos.

Muitos descreveram a missão do presidente Rodriguez Zapatero como uma missão impossível, mas ele aceitou envolver-se nessas ações por razões de responsabilidade e compromisso, para a paz e o bem-estar da Venezuela e dos venezuelanos, sem esquecer que todo líder político espanhol deve buscar a reconciliação que será sempre o melhor marco para o futuro dos mais de 150 mil hispano-venezuelanos que vivem nesse país.

Quais eram, portanto, os objetivos da ação do presidente Zapatero?

Primeiro, evitar o confronto e o derramamento de sangue que se anunciava irreversivelmente na Venezuela. Ninguém pode negar o resultado. Diante de uma guerra civil anunciada no final de 2015, isso não aconteceu graças, em grande parte, ao trabalho de mediação de Zapatero por mais de dois anos.

Em segundo lugar, a situação política e humanitária no país era insustentável e os principais líderes políticos da oposição foram presos nas cárceres venezuelanas. O resultado é claro. Enquanto outros mediadores desistiram poucas horas depois de tentarem, Zapatero foi o único que conseguiu tirar esses opositores da prisão e, embora eles não gozem plenamente dos seus direitos, eles recuperaram parte da sua liberdade.

Em terceiro lugar, a missão era reconduzir todo o processo político para o reforço da ordem constitucional e democrática, para que a sociedade venezuelana recupere a confiança e o apoio às instituições do seu país. Nem golpes militares nem civis devem ser a resposta; apenas eleições preparadas e organizadas com o apoio e a aprovação de todas as forças políticas devem ser o objetivo final. Esse foi o grande desafio enfrentado na ilha da República Dominicana e ao qual Zapatero dedicou tempo, imaginação, compromisso e trabalho.

Para alcançar esse objetivo, o presidente mobilizou-se para obter o apoio de todas as instituições internacionais e de todos os países envolvidos na Venezuela. Conseguiu mobilizar as Nações Unidas e o seu secretário geral, a Igreja Católica e o Papa, a União Europeia, os vários países e organizações latino-americanos e, é claro, os Estados Unidos.

O resultado está aí. E a última proposta não subscrita pela oposição deve ser conhecida e objetivamente avaliada em todos os seus termos para poder ser criticada. Os documentos permanecerão uma referência essencial se forem realizadas eleições presidenciais consensuais e não unilaterais. E, como o presidente dominicano apontou, eles estão prontos para continuar as negociações quando a oposição decidir. Portanto, as negociações não estão encerradas. Há uma proposta em cima da mesa do Governo Maduro. Não houve uma proposta unificada da oposição, que carece de um líder e de um mecanismo para chegar a um consenso. Zapatero, ao não abandonar a discrição, mantém a possibilidade de retomar as negociações.

Estes são os êxitos objetivos, difíceis de não reconhecer. Além disso, para entender melhor como eles foram alcançados, é importante entender bem o trabalho de qualquer mediador. Alguns acreditam que para intervir numa mediação basta defender uma parte e permanecer inflexível em relação à outra. No caso de Zapatero, houve muitas críticas da sua suposta parcialidade a favor do regime de Maduro. Essa era a tarefa mais complexa e todos aqueles que compreendem as mediações internacionais deveriam valorizar os esforços de Zapatero para mudar algumas das posições irrenunciáveis do regime bolivariano e que ele aceitasse regras do jogo verdadeiramente democráticas. O mais fácil desta vez era estar com a oposição e limitar-se a apoiar as suas reivindicações. O difícil era conseguir que o Executivo venezuelano se movesse para aceitar mudanças e propostas que fossem justas e razoáveis.

A tese mais ouvida por parte desses analistas críticos é que o ex-presidente espanhol se envolveu num bolivarianismo ideológico para fazer ganhar tempo ao presidente. As acusações de má fé contra Zapatero de um setor minoritário não se concretizam formalmente numa recusa pela oposição da sua mediação, simplesmente porque essas acusações são parciais. O objetivo desses acusadores anónimos é bloquear os canais de negociação e impedir a participação dos outros setores maioritários da oposição.

O que significa ganhar tempo? Que outra forma oferecem os supostos defensores da paz e da democracia na Venezuela? O que se ganha com a ruptura do diálogo na República Dominicana e a oferta de uma plataforma eleitoral aceitável para todos? Qual é o resultado da rejeição?

Não há alternativa democrática às negociações com mediação internacional. A oposição deve estabelecer um sistema de eleição democrática dos seus porta-vozes (primárias, com observadores internacionais) ou abrir a presença a todas as diferentes forças da oposição (incluindo o chamado chavismo crítico e as forças que participaram das eleições municipais) para as negociações em Santo Domingo.

O que os críticos esquecem e, sobretudo, não denunciam sobre o trabalho mediador de Zapatero, são as circunstâncias em que ele se moveu nos últimos meses. As primeiras rondas de negociações na República Dominicana foram promissoras. Todos os atores – governo, oposição, organizações internacionais e países relevantes – apoiaram-no unanimemente. Mas como se pode mediar quando, 48 horas antes do início da ronda final em Santo Domingo, a União Europeia aprova sanções políticas e económicas contra as principais personalidades do regime venezuelano, quando se sabe que vários países decidiram mudar a sua política e preferem romper o diálogo e os esforços de mediação para encontrar uma solução negociada? Nestas condições, como se pode mediar quando uma parte não quer o acordo? O chamado fracasso não é do mediador, mas daqueles que sabotaram os seus louváveis esforços, sinceros e comprometidos.

Em suma, são os cidadãos venezuelanos que devem valorizar o trabalho de mediação do presidente José Luis Rodríguez Zapatero e não analistas preconceituosos que desconhecem a complexa realidade política e diplomática da crise venezuelana. É certo que a maioria dos cidadãos venezuelanos apreciou que se tenha evitado uma guerra civil no seu país, as conquistas humanitárias desses dois anos e o esforço diplomático para estabelecer uma plataforma comum para fortalecer definitivamente as instituições democráticas da Venezuela. A mediação necessita valentia e toda a negociação exige paciência, tenacidade e perseverância. Todos esses atributos estão refletidos no trabalho de mediação de Zapatero.

Texto disponível em https://www.elmundo.es/opinion/2018/02/15/5a846d7ce5fdea78148b45d9.html

Miguel Ángel Moratinos foi ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha.

2 Comments

  1. Esta mediação – esta burla orquestrada pela CIA – faz-me recordar Munique, 1938. A satisfação infantil de Chamberline foi bem contrariada pela determinação heroica de W.Churchil

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