Do plano técnico ao plano político: do sistema Target 2 à fragmentação financeira da União Europeia – 10. TARGET2 e os Balanços do Banco Central (3/5). Por Karl Whelan

target 2 fragmentacao 3

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

10. TARGET2 e os Balanços do Banco Central (3/5)

Karl Whelan Por Karl Whelan 

University College Dublin, Novo rascunho em 17 de março de 2013 (texto original aqui)

[Nota do editor: em virtude da extensão do presente texto, a sua edição é repartida por cinco partes]

Índice

Resumo

1. Introdução

2. O TARGET2 e a Política Monetária no Euro-sistema

2.1 Balanços do Banco Central

2.2 TARGET2

2.3 Características dos saldos TARGET 2

2.4 Tomada de decisões no Euro-sistema

2.5 Algumas comparações com a Reserva Federal

3. A Evolução dos Saldos do TARGET2

3.1 Dados sobre saldos intra-Euro-sistema

3.2 Saldos no TARGET2 e Operações de Política Monetária

3.3 Saldos no TARGET2 e balanças correntes

4. Alguns contra factuais

4.1 Desativar o TARGET2

4.2 Limitando as operações de refinanciamento

4.3 O papel da União Monetária

5. Riscos para a Alemanha

5.1 Exposição ao risco da Alemanha

5.2 Saída de um único país

5.3 Um cenário de desagregação total da zona euro

5.3.1 Efeitos sobre o rendimento derivados da perda dos ativos do TARGET2

5.3.2 Balanço do Bundesbank e Controlo da Inflação

6. Propostas de liquidação dos saldos do TARGET2

6.1 Liquidação com ativos de política monetária

6.2 Liquidação com obrigações públicas colateralizadas

7. Conclusões

Referências

 

(continuação)

4. Alguns contra factuais

Tendo documentado os padrões subjacentes à evolução dos saldos do TARGET2, é útil considerar alguns contra factuais que podem ajudar a explicar os papéis do sistema TARGET2, da política monetária do Euro-sistema e da moeda comum nos últimos anos.

4.1 Desativar o TARGET2

Grande parte dos comentários sobre os recentes acontecimentos centrou-se na forma como o “canal TARGET2” afetou os resultados no Euro-sistema. Contudo, vale a pena recordar que o próprio TARGET2 é apenas um sistema de pagamentos e que os elementos controversos estão relacionados com a forma como os bancos centrais trataram a contabilidade associada às suas funções no processamento desses pagamentos. De facto, as alterações nos saldos intra-Euro-sistema refletem o funcionamento de uma união monetária com livre circulação de capitais e não o funcionamento do sistema de pagamentos eletrónicos do TARGET2.

Para explicar porquê, considere o cenário em que, em algum momento em 2010, o Euro-sistema decidia desativar o sistema TARGET2, recusando-se assim a processar pagamentos eletrónicos em grande escala. Mesmo que uma decisão deste tipo não tivesse causado o caos, provavelmente não teria impedido uma acumulação de saldos intra-Euro-sistema.

Para dar um exemplo concreto, considere o caso de um depositante que queria transferir dinheiro de Espanha para a Alemanha. Confrontados com a incapacidade do seu banco de utilizar um sistema de transferência eletrónica para transferir esse dinheiro, os depositantes e os investidores poderiam simplesmente ter solicitado dinheiro em espécie. Se o Banco de Espanha ainda concordasse em seguir a política monetária estabelecida pelo Conselho do BCE, concedendo assim empréstimos aos bancos que enfrentam uma corrida aos depósitos, tal teria resultado numa emissão de notas em grande escala.

A emissão de notas gerada por esta fuga de capitais teria ainda gerado uma grande responsabilidade intra-Euro-sistema para o Banco de Espanha. Isto é assim porque, tal como acima descrito, o Euro-sistema exige que os BCN partilhem os ativos e passivos nocionais associados à emissão de notas. Por exemplo, quando um BCN com uma tabela de repartição de notas de banco de x% emite notas, retém os ativos adquiridos, mas regista apenas x% das notas emitidas como responsabilidade ou passivo. Os restantes (100-x)% responsabilidades assumidas são registados como uma responsabilidade intra-Euro-sistema do banco emitente, sendo os créditos correspondentes inscritos nos balanços dos outros BCN.

É igualmente provável que o ato de desativar o sistema de pagamentos TARGET2 teria desencadeado um aumento significativo da procura de levantamentos de depósitos, uma vez que os depositantes preocupados com a ausência de transferências eletrónicas procuravam recuperar o seu dinheiro. Estas considerações sugerem que o encerramento do sistema TARGET2 poderia ter gerado saldos intra-Euro-sistema ainda maiores do que os observados.

Uma desativação do TARGET2 combinada com a imposição de controlos de capitais que impeçam as pessoas de movimentar dinheiro entre Estados teria impedido esta acumulação de saldos no sistema TARGET 2. Estes controlos são geralmente ilegais na União Europeia, nos termos do artigo 63 em que se estabelece que todas e quaisquer restrições nos pagamentos são interditas. O artigo 65.º matiza um pouco esta disposição precisando que esta não prejudica os direitos dos Estados-Membros de “tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública”, o que pode representar uma lacuna jurídica. No entanto, muito provavelmente, se esses controlos fossem alguma vez introduzidos em toda a zona euro, seria difícil de os levantar, uma vez que as pessoas receariam que o seu dinheiro pudesse ficar “preso” em determinados países. A introdução destes controlos de capitais seria muito possivelmente o início do fim do euro.

 

4.2 Limitando as operações de refinanciamento

Dado que os empréstimos concedidos pelos bancos centrais desempenharam um papel crucial na constituição de saldos intra-Euro-sistema, qualquer argumento de que esses saldos seriam, de algum modo, montantes excessivos equivale a uma posição em que os BCN da periferia da área do euro não deveriam ter sido autorizados a conceder tão grandes quantidades de empréstimos aos seus bancos comerciais.

Um método para implementar restrições aos saldos do TARGET2 seria restringir o montante das operações de refinanciamento que poderiam ser realizadas por cada BCN. No entanto, tal política seria contrária a um dos princípios fundamentais consagrados pelo BCE no seu quadro operacional, nomeadamente, que “as instituições de crédito devem ser tratadas em pé de igualdade, independentemente da sua dimensão e localização na área do euro” [14].

Mesmo que o BCE estivesse disposto a renunciar a este princípio fundamental, dada a capacidade dos bancos para operarem a nível transfronteiras, poderá haver limites à eficácia dessa restrição, uma vez que os bancos em países com BCN que não pudessem conceder novos empréstimos poderiam abrir novas filiais noutros países e obter o crédito necessário nesses países.

Uma forma alternativa de restringir o crédito teria sido pôr fim à política de colocação total ou introduzir critérios objetivos que aumentassem o custo de financiamento para os bancos considerados de maior risco. Políticas deste tipo reduziriam a capacidade de os bancos sob pressão honrarem os levantamentos de depósitos através da contração de empréstimos junto do seu banco central nacional.

Mesmo que o BCE estivesse disposto a renunciar a este princípio fundamental, dada a capacidade dos bancos para operarem a nível transfronteiras, poderá haver limites à eficácia dessa restrição, uma vez que os bancos em países com BCN que não pudessem conceder novos empréstimos poderiam abrir novas filiais noutros países e obter o crédito necessário nesses países.

Como é que as contas correntes se teriam comportado se tivessem sido implementadas restrições deste tipo? Pode ser natural presumir que, se os BCN não tivessem sido capazes de acumular responsabilidades no TARGET2, os fundos necessários para fazer face à fuga de capitais teriam vindo das empresas e famílias que gastam mais do que os seus rendimentos (gerando assim um défice da balança corrente), ou seja, que, por definição, o saldo da balança de transações correntes teria tido que diminuir na ausência de um aumento das responsabilidades no TARGET2. No entanto, a alternativa direta ao financiamento da fuga de capitais através dos BCN teria sido um programa de venda de ativos em larga escala pelos bancos periféricos.  Estas “vendas incendiárias” teriam provavelmente gerado grandes perdas para os bancos periféricos e resultado em reduções de valor significativas por parte dos credores.

Tal como no cenário em que o TARGET2 foi desligado, o cenário contra factual em que o financiamento dos bancos periféricos seria limitado ou tornado proibitivamente dispendioso teria provavelmente acelerado significativamente a escala dos levantamentos de depósitos. Com os investidores a saberem que o BCE não estava disposto a fornecer liquidez suficiente para honrar levantamentos sem vendas significativas de ativos, os credores teriam corrido para a porta dos bancos em números ainda maiores do que nos últimos anos. Uma corrida bancária em grande escala na periferia teria provavelmente resultado na imposição de controlos de capitais que, tal como acima referido, causariam graves problemas ao restabelecimento do euro como moeda comum.

Um colapso bancário deste tipo teria certamente resultado numa reviravolta muito maior na balança de transações correntes das economias periféricas da zona euro do que a que se verificou na realidade, uma vez que estes países teriam sofrido uma contração muito mais grave do crédito bancário. No entanto, é importante notar que os prejuízos decorrentes de uma tal corrida bancária na zona periférica do euro não teriam sido limitados aos cidadãos dos países GIIPS. Para além das implicações macroeconómicas mais vastas de um tal acontecimento, as perdas dos credores envolvidos teriam atingido muitos cidadãos fora dos países diretamente afetados.

Por exemplo, os valores da balança de pagamentos espanhola também permitem uma desagregação das alterações no saldo do TARGET2 em termos da contribuição da balança financeira, bem como dos movimentos de capitais dos investidores nacionais e estrangeiros. A Figura 9 mostra que a fuga de capitais de Espanha foi impulsionada principalmente por investidores estrangeiros (com os saldos do TARGET2 a dizerem-nos que grande parte deste dinheiro foi transferido para a Alemanha). Se, em 2011, tivesse sido permitida uma corrida bancária periférica em grande escala e a redução do valor contabilístico dos credores, os investidores de fora dos países do GIIPS teriam sido duramente atingidos.

4.3 O papel da União Monetária

Uma situação contra factual final é o que teria acontecido se o Euro-sistema tivesse sido um sistema de taxa de câmbio fixa e não uma moeda comum. Neste caso, os fluxos de capitais para o exterior do tipo ocorrido nos últimos anos teriam provavelmente produzido grandes desvalorizações múltiplas na periferia.

Os BCN destes países apenas teriam tido o poder de conceder empréstimos na sua própria moeda nacional e a fuga de capitais só poderia ter sido compensada pela troca de depósitos denominados nessa moeda por moeda estrangeira (as operações de swaps sobre dívidas). Em vez de acumularem as responsabilidades do TARGET2, estes BCN teriam tido de reduzir as suas reservas em moeda estrangeira ou organizar empréstimos de swap de moeda com bancos centrais estrangeiros. Dada a magnitude das responsabilidades do TARGET2 – o saldo da Irlanda atingiu quase 100% do PIB, enquanto o da Grécia atingiu 50% e o da Espanha um terço – é provável que as reservas cambiais se tivessem esgotado e é questionável se outros bancos centrais teriam disponibilizado swaps cambiais à escala necessária.

Dada a incerteza sobre se os participantes num sistema de taxa de câmbio fixa poderiam suportar quantidades significativas de fuga de capitais, estes sistemas são vulneráveis a corridas autoalimentadas e a realinhamentos regulares. De facto, foi a insatisfação com a instabilidade do regime de bandas cambiais do SME que motivou grande parte do apoio dado à criação da moeda comum.

O facto de os BCN não poderem, por definição, estar em situação curta sobre a moeda dos outros países da zona euro aumentou consideravelmente a sua capacidade para fazer face à fuga de capitais. No entanto, os acontecimentos dos últimos anos demonstraram que a união monetária não impediu totalmente as corridas especulativas. As atividades especulativas sobre a insolvência dos bancos e as saídas do euro substituíram a especulação sobre as desvalorizações como mecanismo de fuga de capitais.

É também de salientar que o debate sobre o TARGET2 pode, por si só, desempenhar um papel importante na exposição do Euro-sistema a corridas especulativas. Num artigo notável de 1999, Peter Garber observou que o euro poderia ficar sob pressão se houvesse ceticismo quanto à disponibilidade de alguns membros para acumularem grandes saldos credores no TARGET ou para incorrerem em grandes passivos. É difícil saber se esse ceticismo desempenhou um papel na recente fuga de capitais, mas o debate sobre os limites dos saldos do TARGET2 pode contribuir para que este seja um fator de maior importância no futuro.

10 TARGET2 e os Balanços do Banco Central 17

 

(continua)

Notas

[14] Ver pag.  94 de BCE (2011).

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O autor: Karl Whelan, doutorado em Economia pelo MIT, é professor de Economia no University College, Dublin. Trabalhou na direção da Federal Reserve de 1996 a 2002, informando regularmente Alan Greenspan e trabalhando nas previsões macroeconómicas do Comité da Reserva Federal. De 2002 a 2007, trabalhou para o Banco Central da Irlanda e compareceu em numerosas reuniões do Banco Central Europeu.

O seu trabalho de investigação sobre questões macroeconómicas tem sido publicado em muitas das principais revistas económicas do mundo. É membro do painel de peritos da Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários do Parlamento Europeu em matéria de política monetária.

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