CARTA DE BRAGA – “das palavras e do silêncio” por António Oliveira

Era um cinema ao ar livre, ecrã enorme, filas de cadeiras bem cómodas lá à frente, boas para se estenderem as pernas, até com um bar agradável para beber qualquer coisa nos intervalos.

Ainda havia intervalos naquele tempo, o primeiro depois de um pequeno mostruário de notícias sempre de acordo com a ‘situação’, um pequeno documentário, desenhos animados para dispor bem e trailers dos filmes a serem passados a seguir.

Havia outro intervalo, quase sempre depois do que o exibidor considerava a primeira parte da estória e, normalmente, aproveitado para fumar um cigarro ou conversar com alguém ‘achado’ ali, às vezes sem se encontrar haveria muito tempo.

Já lá vão muitos anos, nem me lembro do filme que fomos ver, eu e um amigo escrevinhador de jornais, sem cartão profissional, mas muito respeitado pela cultura e pela vastidão dos conhecimentos.

Por uma qualquer razão ficámos encostados ao bar e à conversa até ao primeiro intervalo, bebemos uma cerveja e falámos daquelas banalidades que, em alguns momentos até têm uma importância que nem merecem.

Quando o primeiro intervalo afastou as pessoas das cadeiras, aparece ele, camisa arremangada e andar descontraído.

Tratou e falou com amizade para o meu amigo, que o interrompeu para me apresentar de modo a não me deixarem isolado. Logo nos afastámos do balcão, onde já nem se podia falar e parámos no meio do espaço que ali havia, para podermos esticar as pernas.

E quando ele ia contar uma coisa que lhe teria acontecido ‘tenho de te contar isto’, ouve-se a campainha a chamar toda a gente para a primeira parte do filme e lá andámos para os lugares respectivos.

No segundo intervalo ele parou a falar com alguém que lhe mereceu muita atenção, mas fez sinal ao meu amigo para o esperarmos no final.

Veio com andar tranquilo, estávamos já lá fora junto da porta da entrada, depois de nos ter buscado, olhando para todos os lados.

E falou como se precisasse de largar um peso desconforme, de se libertar de um segredo de o corroer, de precisar daquele espaço para respirar.

Conto agora como se o estivesse a ouvir, mas sem lhe poder respeitar as palavras por inteiro, a lonjura do tempo e a emoção com que as disse não o permitem, mas vou tentar que entendem o drama de um homem que percebeu, com esta estória, o enorme e estreme peso da solidão.

E conto como o vi e ouvi, a falar mais para as estrelas do que para nós, os olhos a brilhar debaixo de uma testa alta, cabelos fartos já a cair para o prata e um nariz comprido por cima da boca cheia de palavras, ditas de seguida sem intervalos.

«Estava lá já há uns dias! Tinha vindo, como fazia de quando em quando, para estar com ele, para ele não sentir tanto a solidão! Nem eu! Costumava levar-lhe algum dinheiro para as suas coisas, para lhe aliviar a vida, para… Naquele dia ouvi-o gemer, como se estivesse a chamar por mim! Era ainda manhã cedo e fiquei preocupado. Abri a porta do quarto dele e encontrei-o deitado no chão sem se conseguir mexer, a estender a mão para tentar agarrar a seringa! Cheguei-lha, picou-se e poucos minutos depois, ajudei-o a levantar-se e a sentar-se na cama. Saí do quarto, fui ao meu, peguei em todo o dinheiro que tinha, agarrei-lhe as mãos e meti o dinheiro dentro. Depois ajoelhei, abracei-o e dei-lhe um beijo enorme e Gosto muito de si, pai, mas vou-me embora outra vez’ e respondeu-me a chorar Sei das duas coisas, meu filho!. Levantei-me e saí!»

Quando terminou vi como os olhos estavam húmidos, senti os meus a fazerem-lhe companhia, o nosso comum amigo, fez-se anfitrião e perguntou ‘Queres vir connosco beber um copo? Precisas!

Abraçou os dois, desandou e, lá mais adiante depois de ter passado os carros estacionados, reparei como os ombros se encolhiam a espaços, talvez a chorar. Nesse momento o meu amigo agarrou-me o braço para me aquietar e ‘é assim o Artur, um artista… um grande pintor!

Mas como fiz um gesto para que me largasse, acrescentou suavemente ‘Quando as palavras que ouves são tão respeitáveis como o silêncio, é melhor não dizer nada! Temos de esperar’.

Ainda sei do pintor, mas há muito perdi o ‘sítio’ do meu amigo escrevinhador!

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

 

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