A GALIZA COMO TAREFA – driblados – Ernesto V. Souza

Acho que nos últimos meses a realidade soube escapar magistralmente ao roteiro imposto a partir dos anos 80 do século antes. E com um par de dribles impecáveis e auto-passes memoráveis deixou o século XXI, com os seus pensadores, economistas, políticos, teóricos, académicos, doutores e espertos em tecnologia, estacados, pálidos e a chorar deitados no meio campo enquanto corria imparável cara a meta; e sem parar, seguiu inatingível até sair pelos fundos do estádio com uma reverência sardónica, deixando em shock os espetadores.

Nunca tal se vira. As cidades não estavam pensadas para a gente, senão para a circulação de carros e o consumo. Os apartamentos nas metrópoles sem a expansão a bares, botequins e explanadas e sem o grande comércio revelaram-se como cárceres. Uma direita passada de discurso neo-liberal, acreditando que os seus bustos parlantes colocados aí pelo marketing e os gabinetes de imagem e publicidade, teriam ideias, e que entre arroutadas e lapaliçadas, as poucas que funcionavam vinham tiradas do corpus socialista. Nem também era previsível, que a esquerda runner (como lhe chama o amigo Mário Herrero) se manifestasse já de primeiras como gente individulista, egocêntrica e filha do capitalismo; em defensores dos direitos e liberdades simplórias dos consumidores, mas sem saber bem que fazer ou dizer quando privados do seu discurso populista de big data.

Tinhamos, isso sim, para saber do desconcerto do mundo e dos que mandam, das cantigas escarninhas, dos brinquedos de Erasmo, das parábolas do velho Brueghel, dos carnavais de Larra, das crónicas mundanas de Eça, dos esperpentos de Valle-Inclán, da literatura após a Grande Guerra e até do Cambalache na voz acelerada do “polaco” Goyeneche. Certo que eram materiais descatalogados, e, francamente, nunca tão perto e tão de-seguido contempláramos o baile de máscaras e o intercâmbio agitado delas sem pudor, ao vivo no cenário, sem a convenção discreta dos camarins.

Dobuzhinsky2
Mstislav Dobuzhinsky, Gravado para “L’homme aux lunettes” tirado de The Woodcut of To-day at Home and Abroad.- Comented by Malcolm C. Salaman.- London: Geoffrey Holme- The Studio, 1927. p. 154.

A grande alegoria do nosso tempo continuam a ser os filmes de zumbis. Mas não há mal que por bem não venha. Esta festa de pijamas, por muito que apenas se nos deixe em espetadores a contemplar tudo das janelas, em quanto a espetáculo, está a ser mesmo educativa.

Isso sim, já aborrece um bocadinho todo o dia o mesmo reality show televisado. Já ficou claro que não há planos, que o pessoal no comando está absolutamente desconcertado e que infelizmente não sabem calar a boca nem deixar um pouco tranquilos os ecrãs sem se ver neles. Falar por falar e continuar falando, ocupar os média, não vá ser que no meio deste banho de realidade e volta à vida simplificada nos esqueçamos deles e de consumir.

Quem ia dizer quando há um ano e algo mais li When I Was a Child I Read Books, ensaios de Marilynne Robinson, que algumas das cousas que dizia iam andar tão acaidas. Reconheço que me resultou, de primeiras, complicado entender-me com os escritos de uma norteamericana conservadora, patriota, académica, professora de longo percorrido e apaixonada da vida departamental, da cultura de College das universidades dos USA, calvinista militante e debruçada no cristianismo, na teologia e na literatura da reforma.

12095063._uy400_ss400_

Direi na minha defesa que comprei por erro, numas férias, despistado pelo título, atraído pela capa e talvez por um nome que escutara alhures (conhecida era que resultou recomendar mesmo Barack Obama em funções presidenciais). Contudo li, por aquilo de ser omnívoro e ler os livros que enceto, mais tarde ou mais cedo.

E lembro que gostei dalgumas das suas reflexões; dos textos arredor de Tyndale, a King James Bible, a genealogia da Reforma e a leitura popular; das librés de serviço que vestiram sempre os artistas e intelectuais que comiam na cozinha com os outros criados e do que no se livrou nem Mozart; do espírito de College e os modos académicos tradicionais a perder-se a todo vapor no labirinto de burocracias, financiamento, marcadores e avaliações de rendimento; da avareza do capital e da lei de ferro dos salários, da crueldade do Darwinismo Social na base ideológica e justificação de tanta destruição; da ideia do Público, do investimento público e social como elemento básico do Estado e do espírito norte-americano e  do que já não eram as cousas nos Estados Unidos e no Ocidente por eles guiado; de que os USA não eram os USA da sua infância e mocidade, dos seus conformantes culturais e de que talvez também havia que começar a considerar que perderam também a Guerra fria. Do que deveria ser, ou ter sido a sua sociedade; do confronto com a cultura suicida da ideologia da Austeridade e o saqueio do futuro. De opor-se a um presente ilegível. Da constatação de que a Democracia, apenas se mantém sempre com mais democracia. Da Crise, como momento histórico, mas também da ideia de que, talvez, havia tempo.

Reflexões do tempo presente e saudades do que se perdeu, do que se está a perder, do que não chegou a ser ou não foi mais; que depois, pouco antes disto tudo, em parte – e talvez por causa do signum temporis do que falam ambos – topei no desconcerto naufragado desta volta exoticamente levantino de Maalouf.

 

 

 

Leave a Reply