Coronavirus: dans quel pays de “salauds” vivons-nous? por Yves Roucaute
Atlantico, 30 de Abril de 2020
Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

Yves Roucaute analisa a crise sanitária do coronavírus, a gestão da pandemia pelo Governo e as deficiências da sociedade francesa.
Em que país de “sabujos” (Sartre) vivemos nós? Onde é possível que um quarteirão de ministros e um presidente desfilem nos meios de comunicação social orgulhosos do número de pessoas mortas pelo Covid-19, com um dos três recordes mais mortíferos do mundo, em breve à frente da Espanha incompetente, recuperando o atraso em relação à Itália, à frente dos Estados Unidos, mesmo tendo em conta o número de habitantes? Onde nem culpados nem responsáveis, as mesmas pessoas continuam a congratular-se perante os milhares de sepulturas mal fechadas por ter havido eleições em 15 de Março e em plena pandemia, levando, de 17 a 20 de Março, a uma sobre-mortalidade de +16%, na semana seguinte de +35% e, 14 dias depois, a um pico de +59,6% desconhecido no mundo? Onde as mesmas pessoas, com uma soberba sem paralelo, ousam impor uma política de desconfinamento, ao ponto de quererem mandar as crianças à escola no dia 11 de maio, apesar da discordância de todos os cientistas?
Sim, em que país de “sabujos” vivemos nós onde a pergunta “porque é que na Áustria, Dinamarca, Noruega, República Checa, China, Coreia… as pessoas podem sair ou começar a sair do confinamento? Porque não nós e há tantas pessoas mortas aqui”? Onde é que as autoridades com uma forte rigidez psicológica preferiram organizar a desinformação que mata, assistidas por comités de peritos às suas ordens, defendendo a suficiência de “gestos de barreira”, já que outros invocam os espíritos da floresta, em vez de estarem a pôr a nu a sua incompetência? Transmissões de covid19 ? Dá-se até 3 horas por via aérea, até 3 dias por metais e plásticos, até 4 horas por caixas de cartão … As soluções da Alemanha, Noruega, Áustria … ? Simples. Lavar as mãos? Certamente. Mas acima de tudo, máscaras FFP2 que protegem de 98,9% a 100%, luvas a 100% e análises ao sangue para rastrear e isolar a doença. Doente? Confinamento. Dúvidas? Confinamento. Ausência de máscaras e luvas? Confinamento. Têm máscaras FFP2, luvas, testes negativos e o confinamento teve os seus efeitos? Pode sair e fazer as suas compras, ver os seus amigos, tal como todas as pessoas de Hong Kong que andam pelas ruas e mercados, conhecer os seus familiares e amigos, ir trabalhar e divertir-se.
Sim, em que país de “sabujos” vivemos nós em que a procura dos prestadores de cuidados é menos importante do que as variações da libido de um presidente que precisa de ir ao Panoramix da esquina para decidir sobre a qualidade de um medicamento, em vez de deixar os médicos livres de escolher os seus cuidados médicos? Onde um porta-voz do governo afirmou que usar uma máscara implicava tão complicados “gestos técnicos” que ela própria não os sabia aplicar, o que fazia rir 1,4 mil milhões de chineses, incluindo crianças pequenas, mas não famílias francesas de luto?
Em que país de sabujos vivemos nós, onde as Cosette [1]foram proibidas de ir visitar os Jean Valjeans envelhecidos, mesmo que pudessem usar máscaras e luvas? Onde os ataques crescentes às liberdades e ao amor pelos outros por parte de uma tecnocracia que ainda não forneceu máscaras gratuitas, que não alertou ainda quanto às luvas, que ainda não fornece testes ou respiradores, mas produz regulamentos repressivos, impede as importações de meios de sobrevivência não carimbados pela administração, finge rastrear computadores portáteis e tenta fazer a população sentir-se culpada, culpando-a pela sua própria negligência?
Em que país de “sabujos” é mais importante manterem-se fiéis às suas decisões e salvarem os seus lugares do que salvar vidas de forma pragmática? Onde se multiplica a desinformação governamental ao ponto de afirmar que as máscaras seriam inúteis porque o coronavírus seria “tão pequeno” que lhes escaparia pelas malhas? Porquê dá-las então aos médicos, se isso é inútil? Foram proibidos de vender ontem, porquê colocá-los então hoje à venda, com mímicas desdenhosas indicando que é necessário dá-las ao bom povo que as reclama, mas que são inúteis? As máscaras FFP2, que protegem mais de 98,7% contra partículas de 0,03 a 1,1 mícron, e o coronavírus tem cerca de 0,125 mícron de diâmetro, deixariam de proteger quando chegassem a França? Ou será que o coronavírus voltará a ficar mais pequeno quando atravessar a fronteira, assustado com as declarações do Presidente e do seu governo? Em França, o vírus não se propagaria pelo ar através das gotículas respiratórias , que são obviamente maiores e que são um pouco como o carro com motorista que transporta alguns dos nossos “sabujos”? Mais uma vez uma exceção francesa, as mesmas gotículas respiratórias, como bolas do jogo à petanca, cairiam no chão ao saírem da boca, incluindo da boca dos mentirosos autorizados, em vez de ficarem em suspensão no ar num periodo de tempo que pode ir até às três horas? Isso explicaria porque é que dois chineses têm de usar máscaras mesmo que estejam a cem metros de distância, mas não dois franceses que, graças à operação do Santo Espírito de Eliseu que transforma as gotículas em chumbo, têm apenas de estar a um metro de distância, ou mesmo dois, segundo o rito francês, novo e aceite?
Em que país de “sabujos” vivemos nós onde estes “gordos cheios de si” (Sartre de novo) da tecnoestrutura continuam surdos, desde fevereiro, aos alertas e informações científicas e recusam-se a admitir que falharam? Confinamento, máscaras, luvas, testes: era isto que estávamos a dizer quando o governo pediu às pessoas para tossirem para o braço, para ficarem a um metro de distância e lerem os regulamentos! Soluções cuja eficácia foi tornada pública pela China e pela Coreia logo após o declínio acelerado da pandemia, em 27 de fevereiro. Comprovado pelo trabalho publicado pela Anestasia Patient Safety Foundation, desde 12 de fevereiro, laboratórios em Hamilton, Princeton, UCLA, Harvard, Instituto de Saúde dos Países Baixos…Trabalho que eu próprio, como epistemólogo e cidadão, em várias ocasiões referi modestamente. Trabalhos acessíveis a todos os peritos, mesmo aos mais preguiçosos, através do MedRxiv e dos sítios universitários que arquivam as pré-publicações e as publicações científicas. E isto muito antes das eleições autárquicas.
Sim, em que país vivemos nós, onde os “sabujos” de ontem continuam a vender esperanças de vacinas para daqui até 18 meses, sorrisos diários e fantoches mecânicos no nosso caminho da cruz? Será que gostam da sensação de forçar 66 milhões de cidadãos a serem privados da sua liberdade de movimentos e de terem o poder de dar cabo dos nossos sonhos? Será que gostam da sensação de serem o Estado, esse monstro quimérico, cínico e frio, sobre o qual nenhum contrapoder parece poder impor a voz da razão, quanto mais a da consciência? De incarnarem este “poder” mágico-religioso que decide tudo, desde a abertura dos escritórios até às permissões de saída, organizando a “sociedade de controlo” (Deleuze) sobre os cidadãos, os seus corpos, as suas vidas?
Este país de “sabujos ” não é o meu país. O país que amo e no qual vivo, apesar do inverno do espírito, aplaude os cuidadores de saúde e todos aqueles que, grandes ou pequenos, enfrentam a morte para salvar as nossas vidas. É a terra da generosidade que espalha o calor suave dos seus corações, desde o professor ao empresário, desde o agricultor ou trabalhador da distribuição até ao idoso a viver em lares e na situação de dependência. É a França republicana que vibra ao ritmo desta fraternidade livre que tem iluminado toda a humanidade desde 1789. É o país da verdadeira moral que diz “a humanidade, de acordo, a humanidade em primeiro lugar”, respondendo às exigências da consciência esclarecida pela ciência.
O país em que vivo é o verdadeiro país, a verdadeira França. Que desconfia daqueles que vivem noutros locais, neste simulacro de França, o simulacro dos “sabujos”. Porque aqui as crises não podem ser geridas do topo da parafernália à força de discursos distribuídos como pão abençoado a um rebanho atordoado. Aqui perdoa-se a ignorância e o erro, mas a dignidade faz parte do corpo e a igualdade de direitos toma o lugar do simples chapéu. Aqui, mais do que em Roma de outrora, é curta a distância entre o Capitólio e a Rocha Tarpeia, onde os culpados eram atirados à morte. E quem pensa ter chegado ao Eliseu está apenas por vezes a caminho do Tártaro, que não é um prato mas sim um inferno dirigido pelos deuses. Onde se colocam também aqueles que se pensam como tal.
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[1] Cosette e Jean Valjean são personagens de Os Miseráveis de Vitor Hugo.
Fonte: Yves Roucaute, Sitio Atlantico, Coronavirus : dans quel pays de “salauds” vivons-nous ? Texto publicado em 30 de abrl de 2020 e disponível em: