CRISE DO COVID 19 E A INCAPACIDADE DAS SOCIEDADES NEOLIBERAIS EM LHE DAREM RESPOSTA – LXXI – DÉFICES, DÍVIDA E DEFLAÇÃO DEPOIS DA PANDEMIA, por MICHAEL ROBERTS

 

 

Deficits, debt and deflation after the pandemic, por Michael Roberts

Michael Roberts blog, 29 de Junho de 2020

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

 

O Grande Confinamento imposto pela pandemia da COVID-19 levou governos de todo o mundo a aplicar extensos programas de socorro e estímulo orçamental. Em média, estas medidas de suplementos salariais, pagamentos de salários em regime de layoff, empréstimos e subsídios a empresas; e despesas de emergência em saúde e outros serviços públicos, foram pagos por gastos extras do governo equivalentes a uma média de cerca de 5-6% do PIB, com um montante similar à cabeça para garantias de empréstimos e outros apoios ao crédito para bancos e empresas.  Isso é pelo menos duas vezes maior do que os estímulos orçamentais  e monetários e os pacotes de resgate aplicados durante a Grande Recessão de 2008-9.

Globalmente, o FMI prevê que os défices orçamentais das administrações públicas (ou seja, onde as receitas fiscais ficam aquém dos gastos do governo) atingirão 10% do PIB em 2020, contra 3,7% em 2019.  Nas economias capitalistas avançadas, o défice será de 10,7%, mais de três vezes maior do que em 2019.  O governo dos EUA terá um défice de 15,4% do PIB.

Como resultado, espera-se que os níveis da dívida do sector público excedam todos os verificados nos últimos 150 anos – incluindo depois da 1.ª e da 2.ª Guerra Mundial.  O rácio da dívida do sector público em 2020 irá atingir 122% do PIB nas economias capitalistas avançadas e 62% nas chamadas economias emergentes.

 

Todos, sejam governos, investidores ou economistas, concordam que não havia outra alternativa senão expandir os gastos públicos durante o Grande Confinamento  para evitar ou amenizar a catástrofe da economia global que está a chegar a uma paragem total.  Mas quando os confinamentos terminam (tenha a pandemia acabado ou não), a questão é se esse aumento da despesa pública  pode continuar e se os níveis da dívida do sector público devem eventualmente ser refreados e reduzidos.

Após o fim da Grande Recessão, a visão predominante entre governos e economistas era de que os níveis da dívida pública eram demasiado elevados e prejudicariam as taxas de crescimento económico e/ou até gerariam uma nova crise financeira.  Economistas de topo como Rogoff e Reinhart argumentaram que havia evidências empíricas ao longo dos séculos que mostravam que quando os rácios da dívida pública estavam acima de 90% do PIB, a probabilidade de um colapso financeiro era muito alta.  Esta dita evidência era contestada na altura, mas mesmo assim, era geralmente considerado que as medidas para controlar os gastos públicos e aumentar os impostos para que os défices orçamentais fossem reduzidos e até eliminados para reduzir os níveis da dívida eram necessários para garantir o crescimento económico sustentável no futuro. Esta visão “austeritária” era dominante  e a visão keynesiana aparentemente alternativa de que numa recessão  “os défices e a dívida não importam” era rejeitada, por vezes até pelos próprios keynesianos.  Quando o governo grego enfrentou o desastre durante a crise da dívida do euro de 2012-15, os poderes em exercício foram  implacáveis, considerando  que não havia alternativa.

Mas desta vez, pelo menos, as coisas são diferentes.  Os governos, em geral, não falam em controlar as finanças do sector público e os economistas, em geral, parecem confortáveis com a hipótese de que os governos possam registar défices por muito tempo, mesmo que isso signifique um aumento dos níveis da dívida do sector público.

Como afirmou recentemente Gavyn Davies, antigo economista-chefe da Goldman Sachs, e gestor de fundos de cobertura: “Ainda mais notável tem sido a unanimidade entre os macroeconomistas de que um estímulo orçamental e monetário massivo  é a resposta apropriada a uma emergência económica “em tempo de guerra”. Quase ninguém contesta seriamente que a política deve  fazer “tudo o que for preciso” para superar o choque provocado pelo vírus. Este acordo reflete uma conclusão chave da teoria das finanças públicas: que uma dívida pública mais elevada é o amortecedor correto para o sector privado face a crises económicas imprevisíveis e temporárias. Evita as distorções que se seguiriam às grandes variações nas taxas marginais de imposto que de outra forma seriam necessárias para financiar um aumento da despesa pública durante um curto período”.  Assim, o sector público está lá para salvar o sector privado (capitalista) quando entra numa “crise imprevisível e temporária”.

Davies prossegue: “A maioria dos novos economistas keynesianos, incluindo Paul Krugman e Lawrence Summers, acreditam que os elevados níveis de endividamento não serão, em si mesmos, um problema para as economias avançadas. Sugerem mesmo que seriam desejáveis novos aumentos da dívida, pois isso ajudaria a inverter a tendência para a estagnação secular na Europa e nos EUA”.  Uma razão chave para o seu optimismo é que o custo anual do serviço da dívida será inferior à taxa de crescimento nominal da economia e os bancos centrais parecem estar determinados a mantê-la assim.

De facto, as taxas dos bancos centrais estão perto de zero ou mesmo abaixo e os rendimentos das obrigações a longo prazo estão em níveis historicamente baixos.  Assim, se o custo dos juros da dívida pública se mantiver abaixo da taxa de crescimento, o rácio dívida/produto interno bruto acabará por se estabilizar. E, à medida que o crescimento económico acelera, as receitas fiscais irão aumentar, permitindo que o “saldo primário” (impostos menos despesas não relacionadas com juros) aumente.  Os bancos centrais poderão então permitir que as taxas de juro aumentem gradualmente para níveis mais “normais”. E a dívida poderia ser gerida sem crise.

.A posição keynesiana mais extrema que é agora popular é que mesmo a gestão dos níveis de endividamento não importa.  A Teoria Monetária Moderna (TMM) considera que, enquanto houver ‘folga’ na economia capitalista, ou seja, desemprego, os governos podem gastar indefinidamente e os bancos centrais podem apoiá-los ‘imprimindo dinheiro’ sem qualquer risco de incumprimento ou colapso financeiro.

No entanto, a questão  pode não ser tão simples como isso.  Calcular se o serviço da dívida é sustentável envolve vários números-chave: 1) o nível da dívida, 2) a taxa de juro média da dívida, 3) o défice orçamental  (que se adiciona à  dívida), 4) a dimensão e o crescimento da despesa pública, e 5) a taxa de expansão da economia.  A sustentabilidade do serviço da dívida pública depende então de dois números, o défice orçamental  e a dimensão inicial da dívida pública.

Se a despesa pública com exclusão dos custos dos juros da dívida existente continuar a aumentar mais rapidamente do que as receitas fiscais, então este “défice primário” irá continuamente aumentar a dívida pública total.  Isto significa que o custo dos juros dessa dívida aumentará mesmo que a taxa de juros seja muito baixa.  O custo dos juros nos orçamentos governamentais das grandes economias já atingiu 10% das receitas fiscais, apesar de as taxas de juro terem baixado.  Este custo está gradualmente a afetar as despesas correntes com o bem-estar, os investimentos do sector público e os serviços públicos.

Nas economias avançadas, a maturidade da dívida pública (o período de vigência da dívida antes do seu reembolso) é de cerca de 7 anos em média (é muito mais elevado no Reino Unido). Quanto maior for a maturidade, menor será o impacto do aumento dos défices e da dívida no serviço da dívida.

Portanto, é a restrição do crescimento o principal fator que faz com que os níveis da dívida do sector público sejam importantes ou não. A “dívida excessiva” significa uma dívida governamental tão elevada que se alimenta da rentabilidade empresarial através de impostos mais elevados sobre as empresas, menos subsídios às empresas, custos de inflação mais elevados e taxas de juro mais elevadas para empréstimos em todos os sectores.  Assim, as despesas governamentais, ao estilo keynesiano, só podem ser um substituto para o investimento e consumo privados falhados durante um curto período. Em última análise, é um fardo para o capitalismo, não o seu salvador.  É por isso que deve ser reduzido.  Se a rentabilidade do sector capitalista se mantiver baixa, e no G7 a rentabilidade média do capital foi sempre baixa, então o investimento e o crescimento do PIB serão fracos.  E a “produtividade da dívida” continuará a diminuir.

Os governos poderiam apenas imprimir dinheiro para pagar as suas dívidas (têm esse poder único, como argumenta a MMT), mas isso significaria eventualmente desvalorizar a moeda utilizada para pagar as coisas.  Trata-se de algo que os EUA encontraram com os seus défices externos.  Como resultado, o valor de compra do dólar caiu nos últimos 30 anos em mais de 25%.

Da mesma forma, se os governos imprimem dinheiro para pagar as suas dívidas em casa, acabarão por aumentar a inflação e desvalorizar os salários e as poupanças.  O “mal” da inflação é mesmo admitido pelos defensores da  MMT, nem que seja apenas quando o pleno emprego é atingido e a “folga” na economia desaparece. Os governos podem contrair empréstimos e os bancos centrais podem imprimir dinheiro para financiar as actuais despesas públicas. No entanto, estas também envolvem a assunção de riscos futuros.  Como Stephanie Kelton colocou no seu novo livro, The Deficit Myth: “Será que podemos simplesmente imprimir o nosso caminho para a prosperidade? Absolutamente não!  MMT não é um almoço gratuito. Há limites muito reais, e não conseguir identificar – e respeitar – esses limites pode trazer grandes prejuízos. MMT é distinguir os limites reais das restrições auto-impostas que temos o poder de mudar”(Kelton 2020, p. 37).

Mas a questão da dívida, pós COVID, não é apenas, ou mesmo principalmente, acerca da dívida pública; é a dívida empresarial que realmente importa.  A recessão pandémica começou com um “choque de oferta” à medida que os principais sectores da economia foram confinados ; depois tornou-se um “choque de procura” à medida que as famílias deixaram de gastar e as empresas deixaram de investir; mas uma terceira etapa da crise impõe-se: um choque financeiro.

Os níveis da dívida das empresas a nível mundial já se encontravam em níveis recorde antes da crise pandémica.

 

O número de empresas com atrasos de pagamentos   (incumprimento dos prazos de pagamento da dívida) e as falências estão a aumentar.   Uma camada inteira de “empresas zombies” (onde os juros da dívida não são cobertos pelos lucros) de que este blogue já falou em várias ocasiões é suscetível de falir antes que a “normalidade” seja restaurada.  E se houver algum aumento das taxas de juro, esse gotejamento pode transformar-se numa inundação e depois numa avalanche que derruba outros e o sistema bancário.

O montante da dívida classificada como dividida em dificuldade nos Estados Unidos aumentou 161% nos últimos dois meses para mais de meio trilião de dólares. Em Abril, os mutuários empresariais falharam em 35,7 mil milhões de dólares de obrigações e empréstimos, o quinto maior volume mensal registado, de acordo com a JPMorgan Chase & Co. E até agora, em 2020, o ritmo dos pedidos de falência de empresas nos EUA já ultrapassou o de todos os anos desde 2009, o rescaldo da crise financeira global, mostram os dados da Bloomberg.

Assim, os níveis de dívida tanto do sector público como empresarial são importantes.  Se os governos continuarem a aumentar a despesa pública e os défices orçamentais, isso irá apertar o sector capitalista, sugando toda a procura de dívida, ao mesmo tempo que aumenta a parte da despesa improdutiva à custa dos serviços públicos e do investimento.  Se os governos financiarem tais despesas através do “financiamento monetário” do banco central, o risco de inflação regressará.

Porquê?  O governo japonês tem tido défices orçamentais permanentes desde os anos 90 e o rácio da dívida pública será superior a 250% do PIB este ano.  O Banco do Japão é proprietário da maior parte da nova dívida pública em curso, ativos equivalentes a 75% do PIB.  Mas o Japão não tem inflação nos preços dos bens e serviços.  Se alguma coisa há, há deflação.  Então, porque é que os défices orçamentais e o aumento da dívida deveriam conduzir à inflação?

As causas da inflação exigem um livro inteiro por si só.  As teorias tradicionais da corrente dominante dividem-se em duas categorias: uma teoria monetária; as alterações na quantidade de dinheiro em relação à produção determinam a taxa de inflação; ou que a inflação dos preços é causada por alterações no custo de produção (salários, matérias-primas, preços do petróleo, etc.).  Nenhuma destas teorias é convincente como teoria (publicaremos um texto sobre  este tema mais tarde ).

Há um aumento massivo da quantidade de dinheiro nas economias, neste momento: a oferta de dinheiro representada pelos depósitos nos bancos (M2) aumenta 25% em variação anual.  Mas os preços dos bens e serviços dificilmente estão a subir – de facto, no final do ano a taxa de inflação do consumidor nos EUA poderia ser negativa pela primeira vez desde a Grande Recessão e possivelmente poderá descer pela maior redução anual desde 1955.

A razão é óbvia: as despesas de consumo e o investimento capitalista estão em baixa.  Grande parte do dinheiro e das dádivas  do governo não vai para despesas ou investimentos, mas para o pagamento de dívidas ou a ser entesourada  por parte das empresas.  Foi isto que aconteceu no Japão.  De facto, o que descobrimos é que tem havido um declínio significativo na velocidade da moeda  desde o início dos anos 2000.  A velocidade de circulação da moeda  mede o stock de dinheiro em relação ao PIB nominal – e tem vindo a diminuir.  Esta é uma boa medida do entesouramento  da moeda.

 

A tendência corresponde à diminuição da taxa de lucro do capital e da inflação dos preços ao consumidor. Com a rentabilidade do investimento em ativos produtivos a descer, o crescimento do investimento abrandou.  Em vez disso, as empresas investiram em ativos financeiros (capital fictício) ou dinheiro acumulado (as grandes empresas).  As taxas de juro e a inflação caíram, enquanto os mercados bolsistas floresceram.  E isto é o que está a acontecer agora.  A inflação é inexistente porque não estão a ser criados novos valores e por isso os lucros e salários estão a cair ainda mais depressa do que a oferta de dinheiro pode ser injetada.

No entanto, essa situação irá mudar quando os confinamentos diminuírem ou acabarem durante o próximo ano (faça o que fizer o vírus).  Então, os lucros e os salários aumentarão (não para os mesmos níveis de antes, mas ainda assim para cima).  Se os bancos centrais injetarem ainda mais dinheiro e crédito, então os preços subirão porque o crescimento económico permanecerá fraco. A procura (dinheiro) excederá a oferta (novo valor).  O efeito de entesouramento  irá dissipar-se e os preços irão saltar.

Uma estimativa para a inflação baseada na teoria da quantidade de moeda corrente sugere que as taxas de inflação poderão saltar para 4-6% se os bancos centrais continuarem a imprimir moeda. A minha própria estimativa sugere que a inflação seria de cerca de 3-4% no próximo ano (investigação não publicada).  A inflação é uma má notícia para o trabalho, uma vez que se alimentará de rendimentos reais, já atingidos  pela recessão.  É uma boa notícia para as empresas enquanto tentam aumentar os preços para restaurar os lucros, mas é uma má notícia para o sector financeiro e para os investidores em obrigações, uma vez que os seus ganhos reais serão reduzidos.

No próximo ano, o peso da dívida pública e empresarial irá pressionar para baixo a recuperação económica, enquanto a inflação irá aumentar, exercendo uma pressão ascendente sobre as taxas de juro.  Esta é uma receita para falências de empresas e para a existência duma crise financeira, a par de economias ” em estagflação “, semelhantes às dos anos 70.

michael roberts | 29 de Junho de 2020 às 13:10 | Categorias: capitalism, economics, Profitability | URL: https://wp.me/pLequ-4vY

 

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Deficits, debt and deflation after the pandemic

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