Seleção e tradução de Francisco Tavares
A “noite das facas longas” no nº 10 de Downing Street
Publicado por em 12/11/2020 (ver aqui)
À volta de Boris Johnson as máscaras caem. E os aliados de outrora não são forçosamente os mesmos de amanhã. O Primeiro-Ministro, por outro lado, encontra-se enfraquecido.
Fiel entre os fiéis, Lee Cain acompanhou Boris Johnson durante toda a sua ascensão a nº 10 de Downing Street. Porta-voz do “Voto Leave” durante o referendo europeu de 23 de Março de 2016, o antigo jornalista tablóide foi naturalmente nomeado diretor de comunicação quando Johnson chegou ao poder em Julho de 2019. Quadrado, leal, perspicaz, por vezes brutal, o jovem de trinta anos de idade, inclinado para o maniqueísmo, não se poupou nos seus golpes na formidável batalha do Brexit.
A Lee Cain foi-lhe oferecido por Johnson o recém-criado cargo de Chefe de Gabinete do “Número Dez”. A sua missão era restaurar a ordem numa administração posta em causa pela maneira de governar de um Primeiro-Ministro, secreto, suspeito e desleal, que governa demasiadas vezes por diretivas com duas faces. O cargo teria dado ao titular uma oportunidade de transformar em destino o que até então tinha sido um bonito percurso.
Confrontado com a controvérsia criada por esta mudança radical na hierarquia do “nº 10”, Boris Johnson teve de recuar. Furioso, Lee Cain bateu com a porta. Se o assunto provoca tanto alarido é porque outros companheiros desde a primeira hora de Boris Johnson deveriam seguir o seu exemplo, demitir-se.
A grande limpeza
A começar pelo estratega político Dominic Cummings, outro grande perdedor da “Noite das Facas Longas”. O malabarista de ideias e projetos, imbuído da sua esquiva e feroz superioridade, deixou o seu cargo de conselheiro especial do Primeiro Ministro na sexta-feira, 13 de Novembro. O conselheiro deveria partir antes do final do ano, mas foi visto a sair de Downing Street na sexta-feira à noite com as suas caixas, confirmando uma fonte governamental que já não estaria oficialmente empregado a partir de “meados de Dezembro”.
O negociador do Brexit, Lord Frost, também deverá partir até ao final do período de transição em 31 de Dezembro. Outro aliado de longa data do Primeiro Ministro, Lord Lister, antigo braço direito de Johnson quando era Presidente da Câmara de Londres, anunciou a sua partida.
Por detrás desta convulsão, muitos em Westminster destacam a influência de Carrie Symonds. A companheira de Johnson não se parece nada com a ideia britânica de uma primeira dama tipo peça de decoração. Dotada de um autocontrole com um toque de frieza, esta ex-relações públicas do Partido Conservador, diz-se que está horrorizada com os graves erros cometidos por Cairn e pela sua equipa nas comunicações governamentais sobre a Covid. A gestão caótica da pandemia e o maior número de mortes na Europa derrubaram Boris Johnson do seu pedestal. Com uma esmagadora maioria na Câmara dos Comuns após o seu triunfo eleitoral em 12 de Dezembro de 2019, as fissuras na Câmara dos Comuns podem ser vistas no grupo parlamentar, bem como a nível das bases. A rejeição esmagadora pela Câmara dos Lordes, a 9 de Novembro, do controverso Projeto de Lei do Mercado Interno, que foi derrotado em maior medida do que o esperado, atesta este clima envenenado…
Boris e Carrie montam em tandem, não é segredo para ninguém. Esta mulher de 40 anos de idade de porte aristocrático, tem uma grande influência nas decisões políticas. Na vanguarda da luta contra o aquecimento global, ela não fez segredo do seu ódio a Donald Trump perante o bando de eurocépticos raivosos que são admiradores do presidente americano cessante. A mulher que vive em concubinato notório e teve um filho fora do casamento com um mulherengo impenitente, duas vezes divorciado, aprendeu a mostrar os dentes.
Assim, para contrariar o poder da dupla Cummings-Cain, aquela que os adeptos do Brexit apelidam de “Lady Macbeth” devido às suas capacidades de manipulação nos bastidores, obrigou Johnson a realizar uma conferência de imprensa televisiva diária ao estilo da Casa Branca no 10 Downing Street. Para o trabalho, escolheu uma amiga, Allegra Stratton, uma jornalista de alta visibilidade, que não deixaria de fazer sombra a Lee Cain.
O fim da crescente politização da administração
Claramente, o poder passou dos ideólogos defensores do desligar das amarras com a União Europeia para os altos funcionários clássicos de Whitehall. A emergência destes altos funcionários de discreto rigor, de independência de espírito e um sentido de ética sobranceiro deveria marcar o fim da politização crescente da administração. Tal como Simon Case, o recentemente nomeado Secretário Geral do Gabinete, à frente da administração central, para quem servir um primeiro-ministro significa acima de tudo servir o Estado.
A grande agitação poderia quebrar o impasse nas conversações do Brexit. Com a aproximação do prazo de 16 de Novembro estabelecido por Bruxelas, o acordo sobre a futura relação está principalmente bloqueado no que diz respeito à questão da concessão de auxílios estatais. Após a remodelação da equipa do “nº 10” e o afastamento dos intratáveis defensores da soberania nacional, Londres poderia mostrar-se mais flexível neste ponto de desacordo.
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O autor: Marc Roche [1951 – ], jornalista belga, é correspondente em Londres do Le Point desde 1985 e do Le Monde desde 1997. Escreve também para Le Soir (belga), La Tribune de Genève (Suíça), The Independent e The Guardian (britânicos). É autor de La banque: Comment Goldman Sachs dirige le monde (The Bank: How Goldman Sachs Rules the World, 2010), Le capitalisme hors la loi, Albin Michel, 2011 e Les Banksters: voyage chez mes amis capitalistes, Albin Michel, 2014
Falta dizer que Joe Biden chamou Boris Johnson “um clone de Trump”. Será que a UE concederá ao Primeiro-Ministro “um triunfo” no caso de houver acordo nas negociações? Quanto ao autor dizer que Boris vive em “concubinato” só é possível por ter adormecido por volta de 1950 e ter acordado agora.
Fui rever o texto original e, efetivamente, diz “concubinage notoire”. Apesar da carga negativa da palavra concubina, o facto é que sobre “concubinato” diz o dicionário Priberam: Estado de duas pessoas que mantêm uma relação amorosa e vivem juntas sem estarem casadas. A Wikipedia trata a palavra concubinato do mesmo modo.
Orwell diz-nos para evitarmos escrever “stale words”, expressão que o Collins traduz como “palavras rançosas, com mofo. ” tais como “concubinato”. É só isto.