A Universidade em declínio a Alta Frequência: depois de Bolonha, o Covid e o ensino com as suas avaliações à distância acentuam fortemente a degradação da Universidade – Aprofundamento do debate, nomeadamente sobre o processo de Bolonha.

 

Aprofundamento do debate, nomeadamente sobre o processo de Bolonha

N.E.: Sobre o texto de Júlio Mota “A Universidade em declínio a Alta Frequência: depois de Bolonha, o Covid e o ensino com as suas avaliações à distância acentuam fortemente a degradação da Universidade – Entre as minhas memórias de uma outra Universidade e a decadência da Universidade sob Bolonha” (ver aqui e aqui) Rogério Leal produziu um longo comentário que evidencia claramente o interesse e importância das questões abordadas quanto ao estado de degradação da Universidade em Portugal. Júlio Mota, por sua vez, deixa algumas observações ao comentário de Rogério Leal. É um debate aprofundado que merece, a nosso ver, ser colocado como texto no blog.

Não podemos deixar de observar, a propósito das vantagens apontadas por Rogério Leal quanto ao processo de Bolonha, que elas o são afinal em sentido negativo: a mobilidade é conseguida com uma formação nivelada à baixa, mais onerosa e com o estudante alcandorado ao estatuto de “cliente”. O mercado manda. E o professor é transformado exclusivamente em investigador, obrigado a publicar por publicar, esquecendo o processo Bolonha (ou pelo menos esta forma da sua aplicação em Portugal) a importância, igual ou mesmo maior, de questões como o que deve ensinar, como o deve ensinar e no tempo de que dispõe para o ensinar, o poder apoiar a maturação paciente do estudante em vez da erudição apressada. Ou seja, a principal responsabilidade do que se vem passando na Universidade, que se traduz nomeadamente em falta de tempo para pensar, conversar, madurar, é o “imediatismo imposto às Universidades em vez dos tempos necessariamente abertos e longos que o conhecimento e a investigação científicos requerem”, expressão bem feliz de Tolentino de Mendonça a propósito “[d]os eruditos [que se ] envergonham do ócio”, da “contemplação”. E esse imediatismo encaixa perfeitamente, ainda que não exclusivamente, com o modelo de Bolonha, o modelo do mercado. É o modelo da “publicação a todo o custo, a competição exacerbada, a falta de tempo, a sobrevalorização da investigação em desfavor do ensino, que hoje são as principais realidades da profissão do Professor Universitário” e que “são a pior base para uma formação de carater ou de conhecimento”. Como bem diz Rogério Leal “a Universidade (todas as Universidades) não está a respeitar (…) o principal direito do estudante: ser formado como pessoa e na área do seu estudo”.

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Comentário de Rogério Leal

Em 15 de março de 2021

 

Caro Júlio Mota.

Estou de acordo com praticamente tudo o que diz sobre a situação das Universidades. E sobre o Programa Erasmus. Mas tenho alguma dificuldade em o acompanhar no que respeita à responsabilidade do Programa de Bolonha.

Para mim, o problema da Universidade tem a ver com economia e estatística. Passo a explicar. O Programa de Bolonha não obriga a adotar nomes velhos para realidades novas. Bastava, por exemplo, designar os primeiros três anos por “Licenciatura de 1º ciclo” e os dois seguintes por “Licenciatura de 2º ciclo”, para o terceiro ciclo continuar a ser Mestrado e os estudos posteriores serem Doutoramento. Mas isso não servia nem as estatísticas nem a economia. Nas estatísticas passámos a apresentar doutoramentos, mestrados e licenciaturas em maior número. Na economia orçamental passámos a subsidiar apenas os estudantes durante três anos em vez dos cinco anteriores. Evidentemente a mudança de nome não devia enganar os portugueses e, muito menos, os Professores Universitários. A minha Licenciatura foi feita na UC (preparatórios) e no IST (dois últimos anos) e era completada por um estágio em fábrica de seis meses a um ano. O meu mestrado foi feito no IST e demorava um ano de parte escolar e outro para fazer a dissertação. Por ter sido feito em regime de estudante trabalhador pois eu, entretanto, dava aulas aqui em Coimbra como assistente, o mestrado demorava o dobro: dois anos de parte escolar e dois para fazer a tese. Atualmente o Mestrado tem dois anos mas a Licenciatura tem três e, como tal, não é possível exigir a um estudante de mestrado uma tese com um conteúdo semelhante ao exigido anteriormente. Se pensarmos no Doutoramento que, atualmente tem que ser feito em três anos com propinas pagas e com os candidatos a Doutor a substituírem os Professores em aulas práticas e em vigilâncias (não pagas), conclui-se que também os Doutoramentos, por falta de bases e de tempo, não podem ser comparados com os Doutoramentos anteriores a Bolonha. Se um Professor de hoje tiver uma exigência semelhante na análise de uma dissertação àquela que tiveram com a sua, estará a passar a si próprio um atestado de incompetência.

Mas quero ser muito claro na resposta à pergunta que coloca no final do ponto 2 do seu artigo. Não, a Universidade (todas as Universidades) não está a respeitar aquilo que eu considero o principal direito do estudante: ser formado como pessoa e na área do seu estudo. A publicação a todo o custo, a competição exacerbada, a falta de tempo, a sobrevalorização da investigação em desfavor do ensino, que hoje são as principais realidades da profissão do Professor Universitário, são a pior base para uma formação de carater ou de conhecimento.

Mas voltemos a Bolonha. O Processo de Bolonha tem algumas vantagens que vou tentar resumir. Em primeiro lugar permite a mobilidade dos nossos formados com base em cursos qualificados de forma semelhante: com base em ECTS e num diploma completado por um suplemento que descreve o curso e o percurso do estudante, não apenas escolar mas também em atividades como o apoio a estudantes com dificuldades, em atividades desportivas ou culturais, na organização de eventos e por aí fora; este suplemento ao diploma, que também permitia que se usasse uma escala de valoração do estudante baseado em percentis, foi tardiamente regulamentado (a nível nacional) e deixou nas mãos das universidades o que lhes interessava incluir ou esconder. Um aspeto muito interessante de Bolonha foi a passagem de um esquema de qualificação de disciplinas baseada no número de horas letivas (uma unidade de crédito correspondia a um certo número de aulas teóricas, teórico-práticas ou práticas) a um outro esquema baseado nas horas de trabalho exigíveis a um estudante médio, para passar à disciplina. Por exemplo, uma disciplina com seis ECTS deve exigir a um estudante médio 8 horas de trabalho semanal durante vinte semanas; nestas cento e sessenta horas, estão compreendidas as horas de aulas e de avaliação, o estudo próprio e, como eu costumava dizer aos meus alunos, também as horas passadas no Pratas (antiga tasca da Alta) a falar das aulas, jogando com a velha frase que “mais vale estar no Pratas a pensar nas aulas do que nas aulas a pensar no Pratas”. Durante os meus anos de Provedor do Estudante nunca nenhum estudante que entrou a queixar-se de ter um professor que o fazia trabalhar demais saiu, depois das contas feitas, com o mesmo discurso. Tive também a noção de que os Estudantes não faziam estas contas, mas os Professores também não as faziam. O que é pena, pois permitiria inovar o tipo de aulas.

Uma outra vantagem de Bolonha é facilitar o estudo baseado no interesse. Uma coisa a que o Júlio Mota se referiu quando falou da estudante alemã em Erasmus. Ela escolheu disciplinas de Economia e de Letras, pois pretendia seguir uma carreira diplomática. Bolonha permite que um estudante faça uma preparação dos fundamentos numa área (por exemplo engenharia mecânica) e faça, a seguir, um mestrado em gestão ou em economia, pois pretende fazer gestão de empresas fabris. Infelizmente, Bolonha permite mas, dentro das Universidades, acaba por não ser posto em prática pois, na maioria dos cursos de mestrado, é posta à cabeça a exigência de uma licenciatura na área. Neste quadro a Universidade de Coimbra tomou uma medida interessante no Reitorado de Seabra Santos, que foi a de permitir que qualquer estudante que passasse a todas as disciplinas de cada semestre do seu curso se pudesse inscrever em uma disciplina isolada semestral de qualquer curso da Universidade, sem pagar a respetiva propina. Alguns (poucos) bons estudantes aproveitaram esta oportunidade de conhecer outras realidades, outras áreas formativas. Mas desconheço se esse direito que apenas existia na UC, ainda subsiste.

Caro Júlio Mota: Parece-me evidente que, na Universidade, tivemos experiências semelhantes em Faculdades diferentes. A nossa visão do que se tem vindo a passar na Universidade é muito parecida e, não é baseada na ideia (antes fosse) de que no nosso tempo é que era bom. Para mim, a principal responsabilidade do que se vem passando é a falta de tempo para pensar, para conversar, para maturar, como muito bem disse José Tolentino de Mendonça, citado no início da segunda parte do seu texto. O isolamento a que os Professores Universitários estão reduzidos são o contrário do que seria necessário para alimentar a colaboração em vez da competição. Nunca me esqueço de uma conversa com um Professor de Oxford em que se referia que, ao contrário de Oxford em que toda a gente parecia saber o que os colegas próximos ou mais afastados estavam a investigar aqui, raramente sabíamos o que o colega do gabinete ao lado estava a fazer. O Professor respondeu “Tea time!”. Também não me esqueço de uma outra conversa com um Professor do IST (nos anos 80 do século passado) em que ele, falando do futuro da Universidade em Portugal dizia: “Por cada 10 milhões de habitantes só deve haver uma grande Universidade!”. Perguntei, qual seria essa Universidade em Portugal. A resposta foi: “Lisboa e Porto”. Talvez isto explique muito do que se foi passando ao longo dos anos na Universidade de Coimbra.

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Observações de Júlio Mota

Em 16/03/2021

 

Deste texto longo e muito rico, acrescente-se, de Rogério Leal salientarei alguns pontos a que acrescentarei um ou outro comentário.

1. Diz o Rogério Leal:

“Mas tenho alguma dificuldade em o acompanhar no que respeita à responsabilidade do Programa de Bolonha. Para mim, o problema da Universidade tem a ver com economia e estatística. Passo a explicar. O Programa de Bolonha não obriga a adotar nomes velhos para realidades novas. Bastava, por exemplo, designar os primeiros três anos por “Licenciatura de 1º ciclo” e os dois seguintes por “Licenciatura de 2º ciclo”, para o terceiro ciclo continuar a ser mestrado e os estudos posteriores serem Doutoramento”.

O Rogério leal diz-me que tem alguma dificuldade em seguir-me quanto a Bolonha. Eu direi o mesmo, tenho dificuldade em segui-lo, depois de ele estar de acordo comigo em praticamente tudo o resto. Sublinho que a ideia de Bolonha veio de um neoliberal puro e duro de vertente dita socialista, Jacques Attali, com o seguinte esquema: licenciatura 3 anos; mestrado 2 anos, doutoramento 3 anos. Isto é que é Bolonha conceptual, que é o fundamento da Bolonha real: e esta é a fraude que todos conhecemos.

Ora o Rogério faz um passe de mágica e quer o sol na eira e a chuva no nabal: quer a licenciatura de 1º ciclo, 3 anos, o nosso antigo bacharelato; quer a licenciatura de 2ºciclo de 2 anos, ou seja. um total de 5 anos como licenciatura, as nossas licenciaturas antigas, quer depois o mestrado como terceiro ciclo e o doutoramento como quarto ciclo. Exprimo o meu mais profundo acordo a esta estrutura de ensino, a que hoje não existe. Bolonha não é isso e a partir daqui a nossa discordância face a Bolonha compreende-se: o Rogério tem na mente uma Bolonha imaginária, como a tem também Marçal Grilo mesmo que diferente da Rogério Leal, e eu tenho, pela frente o desastre universitário produto do roubo do tempo ao ensino e à aprendizagem que Bolonha impôs. Eu falo da Bolonha real, ele fala de uma Bolonha que não existe e quando fala do que se passa no real está de acordo comigo. Isto é o que tenho a dizer sobre este ponto.

 

2. Diz o Rogério Leal face à Bolonha que nos passa à frente dos olhos, e ambos vimo-la bem em tudo o que ela representa: uma fraude global com a qual se estupidificam gerações sucessivas (as licenciaturas não podem ser o que foram, os mestrados e os doutoramentos igualmente, é o que nos diz e nisso tem razão …). Sobre o que se passa atualmente, sobre os ciclos a que se refere acima e que eu chamo de Bolonha ideal diz:

“Mas isso não servia nem as estatísticas nem a economia. Nas estatísticas passámos a apresentar doutoramentos, mestrados e licenciaturas em maior número. Na economia orçamental passámos a subsidiar apenas os estudantes durante três anos em vez dos cinco anteriores. Evidentemente a mudança de nome não devia enganar os portugueses e, muito menos, os Professores Universitários”.

Dou-lhe um exemplo. Um dia, ou uma noite, depois de uma reunião no Partido Socialista fomos uns quantos que participaram nessa reunião, beber um copo para os lados do bairro Norton de Matos e conversou-se sobre Bolonha. Um dos professores mais à esquerda que conhecia na minha Faculdade sai-se com esta: Júlio Mota, és de esquerda não és? Sou, respondi. E depois, questionou. Sabes fazer bem contas, ao que sei ou não é verdade? Sim, e daí? Bem, então olha. Imagina a licenciatura em 4 anos e com mil por ano. Total: 4000. O espaço de aulas é o mesmo, os professores são os mesmos a Faculdade não mudou por isso, basta dividir 4000 por 3 anos e temos 1333,3 alunos por ano. Podemos ter mais 333 licenciados por ano que agora e isso não é progressista? Achas?  Podemos introduzir 333,3 alunos das classes menos favorecidas e dar-lhes um diploma de ensino superior! Passei-me, podemos baixar a qualidade de ensino e oferecê-la aos pobres, enganando-os com migalhas para irem servir nas caixas do Pingo Doce ou Continente!  E a burguesia cria a seguir cursos especiais para garantir a sua diferenciação face à plebe, que perdeu dinheiro, tempo e ficou com um diploma que garante apenas a  sua impreparação para entrar no mercado de trabalho. Esta foi na altura a base da minha argumentação E a baixa da qualidade que esta Bolonha nos trouxe está descrita e muito bem descrita por Rogério Leal com passagens de textos bem mais duras que as minhas.

 

3. Diz o Rogério Leal:

“Atualmente o Mestrado tem dois anos, mas a Licenciatura tem três e, como tal, não é possível exigir a um estudante de mestrado uma tese com um conteúdo semelhante ao exigido anteriormente”

Corrijo um ponto: em muitos casos o mestrado não tem dois anos tem só um!!!! É como estar a fabricar salsichas: quanto mais rápido melhor. Evitam-se os desperdícios.

Não pode ser exigido ao aluno uma tese de qualidade semelhante à que se fazia antigamente porque os alunos não têm as mesmas bases. O mesmo se pode dizer dos doutoramentos, possivelmente ou não? Estaremos então de acordo, mas sejamos bem claros: isto significa que se tem estado a colocar o ensino por baixo, com o que eu nunca estive de acordo, nunca, e parece que o Rogério também não.

Mas quanto a teses não culpemos tanto os estudantes, mas sim o sistema que os produz. Os estudantes não têm tempo suficiente para ganhar as bases que lhes confiram autonomia de estudo para elaborarem então as suas teses e não podem assim saber o que não lhes foi ensinado a obter: as bases para a sua autonomia. Por isso não os tomemos como os responsáveis maiores deste desastre que eles constituem enquanto candidatos ao grau de Mestre com uma licenciatura de 3 anos, mas sim o sistema. Não culpemos também os professores que são igualmente vítimas do mesmo mecanismo que tem um nome: Bolonha. Culpemos, isso sim, os principais responsáveis pela ignorância criada, os verdadeiros produtores e gestores da ignorância, e estes vão desde os reitores de letra minúscula ao Ministro do Ensino Superior.

Veja-se um pequeno exemplo: uma das respostas das faculdades a minimizar o impacto da reforma Bolonha foi criar um mestrado integrado de duração de 5 anos. Pois bem, o Ministro atual teve pressa em colocar os estudantes nas filas para empregado de balcão num qualquer centro comercial e extinguiu os mestrados integrados. Quer gente especializada aos 21 anos, com licenciaturas de 3 anos, a sair da Universidade!

Se eu e o Rogério Leal estamos de acordo sobre a realidade do ensino universitário de hoje, e o seu texto é, deste ponto de vista, magistral, não entendo a razão de ser da sua ilusão sobre Bolonha, quando a reforma de Bolonha e a realidade que esta gera é a tristeza que ambos temos estado a descrever.

 

4. Diz-me o Rogério Leal:

“O Processo de Bolonha tem algumas vantagens que vou tentar resumir. Em primeiro lugar permite a mobilidade dos nossos formados com base em cursos qualificados de forma semelhante: com base em ECTS “

“Um aspeto muito interessante de Bolonha foi a passagem de um esquema de qualificação de disciplinas baseada no número de horas letivas (uma unidade de crédito correspondia a um certo número de aulas teóricas, teórico-práticas ou práticas) a um outro esquema baseado nas horas de trabalho exigíveis a um estudante médio, para passar à disciplina”

Aqui os ECTS são úteis para a mobilidade, mas uma mobilidade internacional neste contexto terá ela sentido? Há aqui uma coisa importante: pode corrigir a aberração até aí existente quanto à escala de ponderações. No meu tempo os ponderadores dependiam do ano. Evidentemente uma aula de 2 horas no primeiro ano não pode nem deve ter a mesma ponderação que uma aula de 2 horas no quarto ano. No meu tempo havia anos e disciplinas por anos com ponderadores próprios por anos. Havia disciplinas semestrais e anuais. Que fizeram os nossos tecnocratas? Acabaram com os anos, acabaram com as disciplinas anuais, tudo semestrais e se possível com a mesma carga horária.

A mobilidade não é só internacional, é também local, no mesmo espaço regional/nacional. Para quê então ECTS diferentes se se quer entender que têm todas o mesmo grau de dificuldade.

Veja-se ainda um outro absurdo – Duas disciplinas em regimes diferentes: uma disciplina tem uma teórica de 2 horas e uma prática de 2 horas, enquanto a outra tem duas aulas teórico-práticas? Qual a disciplina com maior nível de exigência quer para docentes quer para alunos? Necessariamente a disciplina que funciona em regime de teórico-prática. De resto só se pode ou só se deve funcionar em teórico-práticas se tivermos um corpo docente a lecionar a disciplina que seja mais ou menos homogéneo, se não é um desastre. Pois bem, a disciplina em regime de teórica mais prática tinha mais ponderação! Talvez os ECTS, com o seu cunho aparentemente científico tenha ultrapassado isto, mas seria isso necessário? Mas será que ultrapassa mesmo ou não será que sofre do mesmo defeito de se considerar indiferentemente o fator ano. Se sofre do mesmo defeito então não vejo a sua validade. O velho sistema de ponderação crescente por ano de licenciatura, do primeiro ao último não chegaria? Não sei, deixo a pergunta, mas quanto a ponderadores poderíamos discutir noites inteiras sem se chegar a acordo.

Isto faz-me lembrar o Índice de Xangai para as Universidades imaginado por uma equipa de investigadores e que levou grupos de Universidades ocidentais a reagruparem-se de forma diferente para corresponderem ao modelo imaginado pelos chineses para subirem nesse índice e ganhar assim competitividade internacional.

 

5. Separação de águas.

Diz-nos o Rogério Leal, retomando uma afirmação do ponto anterior acima:

“O Processo de Bolonha tem algumas vantagens que vou tentar resumir. Em primeiro lugar permite a mobilidade dos nossos formados com base em cursos qualificados de forma semelhante: com base em ECTS (…)”

Creio, a acreditar na vantagem dos ECTS sobre os antigos ponderadores para determinar a média final de curso, enquanto método é independente de Bolonha. De igual modo o Erasmus é independente de Bolonha. Se queremos mobilidade, pessoalmente não sou contra a mobilidade, desde que asseguradas as condições de vida condigna e de meios culturais para os estudantes, da validade do ensino do país de acolhimento e da validação das escolhas pela universidade do país de origem. Isto pressupõe um outro Erasmus que não este. O caso da aluna alemã insere-se na mobilidade Erasmus e não em Bolonha, e não creio que as suas escolhas não tenham sido previamente validadas na Alemanha. Destinava-se à carreira diplomática e para países de expressão portuguesa.

Mas ainda falando de mobilidades, as saídas para Erasmus, evitando a massificação, deviam ser encaradas como prémio, como prémio dado aos bons estudantes. Só há um critério: as médias das disciplinas. Como prémio, deveria premiar as qualidades e não a falta delas. As disciplinas no país de destino deveriam ser lecionadas, umas na língua nativa e outras em inglês com professores certificados em Inglês e com alunos reconhecidos como dominando esta língua. Fora de um esquema deste tipo é deitarmos dinheiro e anos de vida para o lixo. E não é assim que se constrói uma cultura dita Europeia.

 

6. Diz-nos o Rogério Leal:

“A nossa visão do que se tem vindo a passar na Universidade é muito parecida e, não é baseada na ideia (antes fosse) de que no nosso tempo é que era bom. Para mim, a principal responsabilidade do que se vem passando é a falta de tempo para pensar, para conversar, para maturar, como muito bem disse José Tolentino de Mendonça, citado no início da segunda parte do seu texto. O isolamento a que os Professores Universitários estão reduzidos são o contrário do que seria necessário para alimentar a colaboração em vez da competição”

Completamente de acordo. Mas devemos então sublinhar que o problema de tempo, a ausência de tempo disponível senão para publicar, publicar, é ela própria a expressão talvez mais sentida do caos em que está a Universidade: cada colega é apenas ou é, sobretudo, um concorrente na carreira. Tudo o que está para além disso não conta, é um não existente, como é um não existente a fraude na avaliação à distância. Esta expressão fez-me lembrar uma história que se conta sobre o matemático Mira Fernandes enquanto professor em Coimbra. Um aluno foi à prova escrita e nervoso esqueceu-se de pôr o seu nome de folha de exame. Saíram as notas, o seu nome não constava. Dirigiu-se ao professor Mira Fernandes. Este viu os pontos, pega na prova escrita do aluno, sem nome, e diz-lhe. O senhor é em termos de pauta e de matemática um não existente, portanto, nada a fazer. A prova era real, estava ali, oficialmente não constava ali nada com o seu nome, era matematicamente um não-existente. Duas realidades: uma, a realidade real, a prova à frente dos dois, outra,  a realidade ficcional, a de não ser reconhecido como o aluno que fez essa prova e ,portanto, não estava  na pauta.

Um paralelo com estas duas realidades encontramo-lo hoje, entre a realidade que eu e o Rogério Leal descrevemos, a realidade real, e a realidade ficcional descrita pelos jovens turcos que campeiam nas Universidades: para lá das suas carreiras nada há que os possa profissionalmente interessar e nada pode haver que estas carreiras possa atrapalhar, são profissionalmente realidades a ignorar, porque são realidades inexistentes. A mesma coisa se passa com a fraude da avaliação à distância, todos dela temos conhecimento mas politicamente é um FACTO inexistente, portanto, não aconteceu nada, tal como no exemplo do grande matemático que foi Mira Fernandes.

Resolver esta questão, a de devolver o tempo à necessidade de saber e de aprender, devolver o tempo a alunos e professores, é, objetivamente estar a reconstruir a Universidade de alto a baixo. Trabalhemos então todos para isso e umas das vias é um debate aberto sobre esta temática. E é neste sentido que se enquadram todos estes textos, todas estas respostas.

 

E é nesse sentido que se pode enquadrar o meu agradecimento que aqui expresso ao Rogério Leal pela sua útil contribuição com este longo comentário, e bem assim pelo seu anterior comentário ao texto “Reflexões em torno de uma reportagem do jornal Público sobre as Universidades”.

 

 

 

 

 

 

 

 

1 Comment

  1. Caro Júlio Mota:
    Começaria por dizer o seguinte: ambos concordamos com as consequências e com o instrumento usado. Para mim, a primeira dúvida estará em saber se o instrumento poderia ter sido usado de outra forma ou se é o único culpado das consequências. A segunda dúvida é saber se, mesmo mal usado, seria possível, com tal instrumento, ter melhores consequências.
    Quanto à (minha) primeira dúvida parece que o Júlio Mota não a tem; o culpado da situação é o Processo de Bolonha. Quanto à segunda parece que também não, com tal Processo as consequências seriam sempre as que foram.
    Vamos então, por pontos.
    1 A ideia dos três ciclos não é, em si, nem boa nem má. É, de facto, uma ideia apresentada por Jacques Attali para uso interno de França e aproveitada como base da Declaração da Sorbonne, que veio a originar a Declaração de Bolonha. Mas, enquanto Atalli apresentava três ciclos de estudos, a Declaração de Bolonha só falava de dois ciclos, o primeiro, de pelo menos três anos, e o segundo, de dois. Não dava nomes aos ciclos pois o Ensino Superior já assim era estruturado em vários países (por exemplo, Reino Unido, Irlanda, Malta, Islândia, Suécia, Noruega, Dinamarca, Alemanha) e os nomes para os dois ciclos eram muito variados. Em alguns casos a estrutura já tinha sido adotada há muito (por exemplo, Reino Unido) e noutros era relativamente recente (por exemplo, Alemanha, em que a estrutura nova e os graus tradicionais se mantiveram durante algum tempo).
    Júlio Mota diz que “eu (JM) falo da Bolonha real, ele (RL) fala de uma Bolonha que não existe e quando fala do que se passa no real está de acordo comigo”. É verdade! Claro que sei bem o que é a Bolonha Real. Mas o que eu pretendi dizer no meu comentário ao artigo anterior foi que não era necessário que a minha Bolonha Imaginária o fosse. Bastava que a Lei de Bases do Sistema Educativo tivesse uma redação apropriada. Bastava que não chamasse ao primeiro ciclo Licenciatura aproveitando (outro exemplo) o nome que já anteriormente usámos de Bacharelato. E que chamasse ao segundo ciclo de estudos Licenciatura, dado que nada obriga a que tome o nome de mestrado ou doutoramento. Ou que tivesse dito que queria manter tudo como estava pois o primeiro ciclo tem que ter PELO MENOS três anos (o CRUP fez uma proposta de que tivesse quatro). Ou que seguisse o exemplo francês que designa todos os graus (também) com o número de anos depois do diploma do ensino médio. A este respeito é interessante ver a diversidade de soluções apresentada no relatório Eurydice, The Structure of European Education Systems, 2015/6, que se pode obter no link: https://www.cnedu.pt/content/noticias/internacional/The_Structure_of_European_Education_Systems_Eurydice.pdf.
    Concluindo, é certo que Bolonha deu origem em Portugal a designações que promovem a confusão, pois designa pelos mesmos nomes ciclos de estudos – anteriores e posteriores a Bolonha – com conteúdos diferentes. Contudo, para mim é claro que não é uma consequência direta da Declaração de Bolonha. Foi uma designação que foi adotada por decisão política e por motivos economicistas.
    2. Parte do que o Júlio Mota diz no seu ponto 2 já está respondido em cima. Mas entremos na realidade e consideremos o exemplo que dá sobre os 333 diplomas a mais por ano. Evidentemente o Professor com quem falou só podia estar a brincar! Se o entendimento dele sobre a democratização do ensino fosse verdadeiramente este, então não seria, seguramente, um dos professores mais à esquerda da Faculdade de Economia. Por mim, depois de ter praticado na minha juventude algumas asneiras de que me arrependo, facilitando a passagem a alguns estudantes-trabalhadores e militares, rapidamente me apercebi de que o facilitismo é o pior favor que se pode fazer a quem precisa mesmo de um diploma que garanta a sua preparação para entrar no mercado de trabalho.
    3. Sobre este ponto estamos de acordo. Evidentemente nem os Mestrados nem os Doutoramentos são equiparáveis aos antigos. Pelo simples motivo de que as Licenciaturas também o não são. Mas a questão de colocar o ensino por baixo merece uma considerações. O nivelamento por baixo é, se assim entendermos, meramente nominal. Se olharmos para o número de anos de formação, que é o que fazemos quando comparamos com os graus obtidos no estrangeiro, passamos a ter coisas realmente niveladas. Aqui para nós: alguma grande empresa quando pretende empregar um licenciado confunde um licenciado de 5 anos com um licenciado de 3? Obviamente a resposta é não! Com uma exceção: o Estado.
    4. Sobre este ponto temos, de facto, entendimento muito diferente. Para começar esclareço que a mobilidade a que me refiro é a dos formados quando saem do País para obter emprego no Espaço Europeu do Ensino Superior. No anterior comentário não terei sido muito claro nesta afirmação. Mas sobre o que diz sobre a atribuição dos ECTS às disciplinas, aí estamos em profundo desacordo. O que está em causa é o trabalho do estudante para adquirir o conhecimento e não a forma como ele é transmitido. Estamos agora no campo da segunda dúvida que inicialmente coloquei (É possível fazer melhor com a realidade de Bolonha?). É possível ter uma disciplina com 8 horas de aulas expositivas semanal e que não dá mais nenhum trabalho ao estudante (as únicas horas a considerar são as chamadas horas de contacto). Também é possível ter uma disciplina que tem apenas uma aula de duas horas por semana mas que obriga os estudantes a seis horas de trabalho semanal, a fazer trabalhos, a ler, a discutir, a fazer apresentações, etc. No extremo podemos ter uma disciplina que só obriga o estudante a trabalhar oito horas por semana, por exemplo, a pesquisar livros na biblioteca, a preparar-se para defender um tema numa discussão com colegas ou para o apresentar numa exposição pública. Todas estas unidades curriculares têm seis ECTS porque todas ocupam o estudante durante oito horas por semana. Mas não é obrigatório que todas as disciplinas de um curso tenham o mesmo número de ECTS. É obrigatório é que, o conjunto de unidades curriculares de cada semestre, some 30 ECTS o que corresponde a 40 horas de trabalho por semana (durante 20 semanas). Por desconhecimento, por falta de tempo e, em alguns casos, por alguma preguiça, os planos de estudo foram feitos atribuindo números de ECTS que em nada alteraram a situação anterior a Bolonha. Os professores não foram convidados a uma reflexão sobre a maior ou menor carga horária das respetivas disciplinas, não no ponto de vista tradicional (quantas e que tipo de aulas vou dar) mas em termos de qual o tempo de trabalho que eu vou exigir ao estudante médio para que ele ganhe os conhecimentos e as competências que eu julgo necessários que ele tenha. Não é um exercício simples mas é um exercício necessário para melhorar o desempenho e o resultado final dos estudantes universitários. Por outro lado, é evidente que uma hora de trabalho de um estudante do primeiro ciclo não é a mesma coisa do que uma hora de trabalho de um estudante no terceiro ciclo. Mas o estudante no terceiro ciclo deve trabalhar 40 horas por semana tal como o estudante do primeiro ciclo; as competências/conhecimentos que obtêm com essas 40 horas de trabalho é que são diferentes.
    5. Sobre o Programa Erasmus não me vou pronunciar. Apenas direi que foi resvalando de uma qualidade razoável quando usado por bons estudantes (conheci alguns que foram convidados a ficar nas universidades de acolhimento depois de terem ido fazer unidades curriculares do segundo ano) para uma situação vergonhosa de turismo universitário, de férias antecipadas, sem qualquer vantagem para o conhecimento quer da Europa, quer das matérias de estudo. Mas penso que pode ser um instrumento interessante se aplicar muitas das indicações que o Júlio Mota adianta.
    6. Começo por dizer que a minha frase que cita deveria terminar como segue “O isolamento e o individualismo a que os Professores Universitários estão reduzidos são o contrário do que seria necessário para alimentar a colaboração em vez da competição”. Uma vez mais estamos de acordo com as consequências mas, aqui, o instrumento não foi só a Declaração de Bolonha mas a leitura neoliberal que dela fizeram e que conduziu ao Estatuto da Carreira Docente, ao RJIES, à avaliação da qualidade das universidades, dos cursos e dos docentes. E gostaria de ter sido eu a dizer que “Resolver esta questão, a de devolver o tempo à necessidade de saber e de aprender, devolver o tempo a alunos e professores, é, objetivamente estar a reconstruir a Universidade de alto a baixo. Trabalhemos então todos para isso e umas das vias é um debate aberto sobre esta temática. E é neste sentido que se enquadram todos estes textos, todas estas respostas.”
    PS: Sobre a introdução:
    “Não podemos deixar de observar, a propósito das vantagens apontadas por Rogério Leal quanto ao processo de Bolonha, que elas o são afinal em sentido negativo: a mobilidade é conseguida com uma formação nivelada à baixa, mais onerosa e com o estudante alcandorado ao estatuto de “cliente”. O mercado manda.”
    Evidentemente, discordo. Penso que é claro que comparar um “bachelor” do Reino Unido com uma Licenciatura em Portugal ou com um “Licence (Bac-3)” em França não eleva nem baixa o nível. A mobilidade resulta de se ter obtido um diploma de 3 anos (equivalente nos três casos). Sobre o estatuto de “cliente” do estudante, quero afirmar que sim, que há coisas em que o estudante é cliente. É, por exemplo, o caso quando recorre aos serviços administrativos (pagamento de propinas, pedido de informações, diplomas, suplemento ao diploma), ou aos serviços académicos (equivalências, planos de estudo) ou à segurança social (cantinas, residências, bares, bolsas) ou aos serviços que as unidades orgânicas lhes devem oferecer (salas de estudo, computadores, bibliotecas) para eles poderem trabalhar as 40 horas por semana que lhes devemos exigir. Mas nenhum estudante é cliente no que respeita ao conhecimento; aí ele é “parte” na aprendizagem. E pode ser visto como “produto”: quem o vai empregar vai ficar satisfeito ou não com o que a Universidade lhe forneceu?

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