Em Viagem pela Indochina – IV Vietname (8), por António Gomes Marques

Em Viagem pela Indochina

 IV – Vietname

Oitavo dia no país

por António Gomes Marques

 

A Grande Cidade de Ho Chi Minh —Thành ph H Chí Minh—, assim designada após 1975, também referida como a «Paris do Oriente» e «Pérola do Extremo-Oriente», é a maior e mais populosa do Vietname, com mais de 9 milhões de habitantes, com previsão de cerca de 14 milhões para 2025, sendo o mais importante centro financeiro, empresarial e mercantil do Vietname, classificada como cidade global beta, por parte do Globalization and World Cities Study Group & Network (GaWC), segundo nos informa a Wikipédia.

A fundação da cidade deve-se aos khmers, conquistada no século XVII pelo antigo reino de Aname, que existiu no Leste da Indochina, e que hoje faz parte do Vietname. A partir desta conquista, a localidade que, de início, não passava de uma pequena localidade de pescadores, que foi durante séculos ocupada pelos khmers, foi-se transformando do pantanal original no que viria a ser a cidade de Saigão, com os vietnamitas, vindos, primeiro, do Delta do Mekong e, depois, fugidos da guerra civil, a colonizarem uma área cada vez maior até ocuparem o actual Sul do Vietname, aproveitando a fragilidade então já vivida pelo reino do Camboja, como consequência da guerra em que se envolveu com a Tailândia.

Os franceses ocuparam-na a partir de 1859; em 1864 toda a Cochinchina foi considerada território francês, com Saigão transformada na capital da Cochinchina e, depois, da Indochina Francesa. A influência francesa acentuou-se, deixando marcas ainda hoje bem visíveis, particularmente na arquitectura e na área cultural.

No capítulo sobre a História do Vietname tratarei desta questão com mais pormenor, no seguimento do que já fiz nos capítulos que dediquei à História do Camboja e do Laos, neste trabalho «Em Viagem pela Indochina», acrescentando apenas que, após a derrota francesa em Dien Bien Phu, em 7 de Maio de 1954, onde brilhou o General Giap, os franceses foram obrigados a abandonar o Norte do Vietname, como foi determinado nos acordos de Genebra (Julho de 1954), nos quais também se decidiu a divisão do país ao longo do paralelo 17, criando-se assim o Vietname do Sul, com Saigão como capital.

Durante a Guerra do Vietname, Saigão transforma-se no quartel-general das forças da América do Norte (EUA) até que, em 1975, com a derrota americana, o Exército Popular do Vietname entrou em Saigão, assim determinando o fim desta desastrosa guerra para as forças dos EUA e dando origem à criação da Grande Cidade de Ho Chi Minh ─uma justa homenagem ao grande líder vietnamita e um dos grandes líderes do século XX─, e, facto mais importante, também à unificação do país, passando a designação de República Socialista do Vietname a abranger todo o território que hoje constitui o país.

Após esta introdução, há que retomar a viagem, apanhando o autocarro e dar início à viagem para conhecer o célebre e rico Delta do Mekong.

O Delta ocupa uma área que se aproxima dos 40.000 km² e, como acontece em todos os deltas, a área alagada varia em função da estação do ano, sendo uma das oito regiões vietnamitas, regiões essas que não têm fins administrativos mas apenas económicos e estatísticos, atingindo 13 províncias ─Can Tho, An Giang, Bac Lieu, Ben Tre, Ca Mau, Dong Thap, Hau Giang, Kien Giang, Long An, Soc Trang, Tien Giang, Tra Vinh e Vinh Long─, sendo as cidades mais importantes My Tho e Cai Be e, no ponto mais central, Vinh Long, Sa Dec e Can Tho.

Os habitantes do Delta atingem um número que se aproximará dos 20 milhões, na sua larga maioria vietnamita e com minorias cambojanas khmer e chinesas.

A maior produção no Delta é de arroz, dando o maior contributo para que o Vietname seja o terceiro maior exportador mundial deste produto, atrás da Tailândia e da Índia, mas não pode esquecer-se a grande produção de peixe e de camarão, sendo o Vietname, sobretudo com o contributo do Delta, um dos grandes exportadores destes produtos.

Duas paragens antes de atingido o objectivo: um centro comercial onde se pode comprar de tudo e… aliviar a bexiga, seguindo-se uma fábrica artesanal de tijolo, com claro aproveitamento do que a natureza oferece, não só para o fabrico do tijolo, mas até para o aquecimento do forno, evitando o desperdício.

Fotografia AGM

Após o percurso de autocarro, cerca de uma hora, com água e arrozais à direita e à esquerda, o grupo chegou ao barco com que se iniciaria o percurso pelo Delta do Mekong, onde de imediato foi servido um coco com o maravilhoso sumo (fotografia acima), tão bom no Vietname como no Brasil ou em África, como posso testemunhar, para depois se ter de utilizar tipos de embarcações que não exigiam uma profundidade tão grande, pois, de outro modo, não seria possível navegar em alguns dos milhares de canais do Delta, com algumas paragens no percurso, as quais permitiram que se observasse como se fazem os rolos de papel de arroz, na zona de Ben Tre; observar o processo de transformação do coco, navegando pelo canal de Cai Son, com coqueiros em todo o lado para onde nos virássemos, uma autêntica selva; ver a dura azáfama diária dos vietnamitas na sua luta pelo sustento:

Vietnamitas no Delta do Mekong (Fotografia AGM)

Fotografia AGM

Ao grupo foi proporcionado provar doces, a cujo fabrico assisti, experimentar o chá de mel e outras iguarias.

Houve paragem numa fábrica de transformação de produtos locais, com o coco a ser o mais utilizado, guardando eu ainda alguns deliciosos caramelos dos muitos que comprei.

Ver aquelas mulheres e aqueles homens na dura luta pela vida, ganhando o seu sustento, são imagens que guardarei para sempre na minha memória, mas poderemos dizer que estas são imagens que encontrei noutros pontos do globo.

Outras imagens que me ficaram e não encontráveis em todo o lado têm a ver com a simpatia daquela gente, compremos ou não os seus produtos, produtos esses cuja compra nunca por eles nos é imposta com a sua insistência, como acontece, por exemplo, no Egipto, limitando-se a expor o que têm e sempre sorrindo, sorriso que senti não ser de circunstância, mas de simpatia sincera.

Um espectáculo maravilhoso é ver os inumeráveis mercados flutuantes nos rios e canais do Delta.

A cidade de Cai Be destaca-se pelo seu mercado flutuante. Em tempos passados, os agricultores enchiam os seus barcos a remos, ocupavam as margens do canal; hoje, já ali podem ser vistos barcos de variados tamanhos, como os muito célebres barcos-casa ou outros mais pequenos, alguns de grande porte, equipados com motor, cheios dos produtos agrícolas que no Delta se produzem, como batatas, melancias ─que podem ver-se atiradas pelo ar de pessoa para pessoa, com uma ou outra a cair na água ou a embater contra algo que provoca a sua perda─, abacaxis, cocos e outros produtos que vão vendendo ao longo do dia. Nem todos os barcos para ali se deslocam para vender os seus produtos, havendo alguns que ali vão para comprar, o que dá origem a mercados flutuantes, dado que os produtos vão passando de uns barcos para outros, numa intensa venda e compra.

Hoje, no entanto, há momentos em que, em determinado rio ou canal do Delta do Mekong, chegam a ser mais os barcos com turistas do que os barcos que constituem os mercados flutuantes.

Fotografia AGM

Pude assistir também ao fabrico artesanal de esteiras, como a fotografia abaixo mostra:

À direita, o Francis Dussel atento aos pormenores, eu ao centro (Fotografia Célia Marques)

Noutras paragens, foi possível provar frutos os mais variados, como num estabelecimento anexo a esta fábrica artesanal de esteiras.

A Conceição Dussel e a Célia a provar as várias frutas (fot. AGM, retirada do filme)

Aproximava-se a hora de almoço e havia que partir.

O grupo foi surpreendido com o meio de transporte colocado à sua disposição; todos olharam com alguma desconfiança ou talvez pensando no desconforto que tal tipo de transporte poderia oferecer.

Estava-se perante uma adaptação, ou seja, perante uma mota com um atrelado, que mais não era do que uma pequena carroceria com bancos corridos laterais.

Todos subiram, com mais dificuldades para algumas senhoras, e assim se deu início a uma corrida por uma estrada estreita em grande velocidade, com água e plantações a ladearem-na.

Na vertiginosa viagem, sempre à espera do acidente na próxima curva, lá se chegou ao destino, sem que não deixasse de se manifestar um pouco de receio no rosto de alguns dos passageiros. Eu próprio senti que a todo o momento o acidente poderia acontecer, sobretudo quando tinha a sensação de que nem todas as rodas continuavam assentes na estrada, o que não garanto que tenha acontecido. O momento do fim da viagem e do respirar de alívio chegou e eu não quis deixar de registar o momento em que senti os pés bem firmes no solo, tirando uma fotografia com o «meu Ayrton Senna»:

Fotografia Célia Marques

E lá se atingiu o restaurante, após um pequeno percurso a pé:

Fotografia AGM

Eu sou muito tradicional no que toca a comida, rejeitando mesmo as ervas e ervinhas que, primeiro no Alentejo e agora por todo o lado, usam misturar na comida; no entanto, no Vietname nunca tive problemas com a alimentação, para além de rejeitar o queijo a que sou alérgico e que, felizmente, não é muito utilizado neste país. Não sabem ainda, mesmo em restaurantes mais caros —não estou a referir-me aos melhores—, como deve o vinho ser tratado, particularmente o vinho tinto, servido à temperatura ambiente, o que significa que corremos o risco de beber vinho tinto muito acima do máximo de 18°; já a cerveja, que evito, é sempre servida fresca.

A mesa estava posta com uma variedade de bons produtos locais, a começar pelo peixe pescado mesmo ali ao lado, que ficou reduzido às espinhas em poucos minutos:

Fotografia AGM (retirada do filme)

Seguiu-se o que para algumas pessoas se tornou na viagem mais arriscada, por vários canais pouco profundos e só possíveis de navegar nos pequenos barcos vietnamitas, chamemos-lhes sampanas —é o nome que me ocorre— em que o «piloto» o desloca accionando a vara do remo que é, simultaneamente, o próprio leme ou, então, que tem um remo lateral com vara e o leme ligado a outra vara, colocado na ré, permitindo sempre que o «comandante» da sampana se mantenha de pé, accionando ao mesmo tempo o remo e o leme:

Fotografia AGM

Autofotografia

Muitas destas pequenas embarcações já estão dotadas com um pequeno motor, o qual nem sempre é possível ser utilizado por a profundidade do canal ser diminuta.

Mais uma jornada quase concluída (Fotografia AGM, retirada do filme)

Após uns tantos canais naquelas pequenas embarcações, aproximava-se um dos momentos mais aguardados por mim: a visita a Cu Chi, a 45 km a Norte da cidade de Ho Chi Minh, uma grande rede de túneis de conexão, como muitos outros existentes numa parte significativa do país. Estes túneis foram locais de muitas campanhas militares na Guerra do Vietname, com um papel fundamental nas operações dos vietcongues, sobretudo na ofensiva do Tet, no ano de 1968.

Mas, agora, havia que regressar ao hotel, jantar e descansar das emoções vividas neste inesquecível dia pelos canais do Delta do Mekong.

Fotografia AGM

No retorno ao hotel, de autocarro, fomo-nos cruzando com pessoas a regressar do trabalho e outras ainda fazendo pela vida, como a fotografia seguinte mostra, que fala por si, com a certeza de que outras semelhantes poderia aqui apresentar e que mostram que, às vezes, o próprio condutor da pequena mota mal se vê por entre o(s) volume(s) que transporta:

Fotografia AGM

Antes de dar por terminado este dia, no entanto, há mais alguma coisa a acrescentar, que vem juntar-se ao que disse, especialmente ao tratar da parte relativa ao Laos, quando falei das muitas barragens construídas e em projecto que estão a modificar o modus vivendi das populações que vivem do e ao longo do rio Mekong.

Aqui, no Delta, para além do problema das barragens que não deixam de afectar o Delta, há um outro causado pelo crescimento das cidades vietnamitas, com a construção inerente a esse crescimento, sendo a areia a base do cimento armado, areia essa que é retirada do Delta. Ao longo das margens, correspondendo à procura por este bem que se tornou precioso e fonte de rendimento relativamente fácil de muitos, vemos muitas dragas e muitos barcos a transportar areia.

O problema também existe noutros rios do país, dado que as cidades em rápido crescimento vão de Norte a Sul, estimando-se que, nos últimos 20 anos, a população vietnamita a viver nas cidades duplicou, atingindo mais de 32 milhões de pessoas. A dragagem está a fazer com que as margens dos rios desabem, arrastando, naturalmente, campos agrícolas, com perdas enormes na produção de arroz, estabelecimentos comerciais e até casas, reconhecendo o próprio governo que a retirada de pessoas destas zonas supere meio milhão de habitantes, os quais têm de ser realojados noutros locais, obrigando muitos deles a ter de mudar de vida, procurando outros meios de subsistência. A agravar a situação, muita areia é vendida para Singapura, e, ainda, muita da extracção é feita clandestinamente, dando origem a que muitos obtenham bons rendimentos de forma muito fácil e também ilegal.

Fotografia AGM

Preste o leitor atenção à transcrição que vou fazer:

«Numa tarde do ano passado, Ha Thi Be, de 67 anos, estava sentada com o seu filho no seu pequeno café, na cidade de Hong Ngu, com vista para o vagaroso rio Tien, o principal afluente do rio Mekong no Vietname, quando, subitamente, o chão por baixo dos seus pés cedeu. A margem do rio era engolida pelas águas. “Gritámos e fugimos,” conta. “Foi um ruído tremendo, bum, bum, bum.”

Be e o filho escaparam ilesos, mas o café e a sua casa ficaram destruídos. “O rio levou-nos tudo o que ganhámos para construir aquela casa e agora ficámos sem nada,” suspira. Ainda assim, Be diz ter tido sorte. “Se tivesse acontecido durante a noite, eu e os meus netos teríamos morrido. Dormíamos, habitualmente, naquela casa,” conta.

As principais causas do desabamento podem ser vistas a flutuar ao longo das águas turvas do rio Tien: dragas, equipadas com bombas ruidosas aptas a extrair do leito do rio grandes quantidades de areia. Nos últimos anos, esta humilde matéria tornou-se, surpreendentemente, num bem precioso. A areia é a base principal do cimento, o material de construção de eleição para a construção das cidades vietnamitas em rápido crescimento. A procura por esta matéria subiu a pique e está a gerar o caos não apenas nos rios do Vietname, mas também no importantíssimo delta do rio Mekong.» (1)

Será necessário dizer mais alguma coisa? O leitor pode dar azos à imaginação e, assim, calcular a tragédia que se vive, actualmente, em todo o rio Mekong. Infelizmente, a areia do deserto não serve para a construção, a acção do vento torna os grãos de areia redondos e, segundo os entendidos, a areia dos rios é bem superior à areia das praias, que tem a salinidade que a dos rios não tem, sendo esta, também por isso, bem mais cara.

Há algo de parecido, mas não tão grave, acerca da extracção de areia no rio Douro. Como estará a ser controlada esta situação? Felizmente, tendo em conta o problema sobre que estou a escrever, as cidades portuguesas não têm tido um aumento de população significativo ou, provavelmente, tem até diminuído o seu número de habitantes.

 

NOTAS

Vietname – Oitavo dia no país
  1. in: https://www.natgeo.pt/meio-ambiente/2018/05/imagens-dramaticas-de-como-extracao-de-areia-ameaca-vida-na-asia

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