Pontos de vista sobre o défice e a teoria monetária moderna – 3. Pavlina Tcherneva:”Ou garantimos o emprego ou o desemprego”

 

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Nota do editor:

Uma mini-série de três textos sobre o défice e as propostas da teoria monetária moderna:

  1. O mito do défice por Michael Roberts.
  2. Para garantir o pleno emprego, abandone-se o mito do défice, por Stephanie Kelton
  3. Ou garantimos o emprego ou o desemprego, por Pavlina Tcherneva

FT

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3. Pavlina Tcherneva:”Ou garantimos o emprego ou o desemprego”

 

Entrevista publicada por em 22 de Maio de 2021 (ver aqui)

 

Pavlina Tcherneva

 

Pavlina Tcherneva é professora de economia na Bard University em Nova Iorque. Figura influente na Teoria Moderna Monetária (MMT), é autora de La Garantie d’emploi – l’arme sociale du Green New Deal, traduzido por edições La Découverte. Nos Estados Unidos, a Garantia de Emprego é uma proposta particularmente popular, defendida por apoiantes do New Deal Verde e da esquerda democrática. Consiste em oferecer um emprego público a quem o solicitar, pago a 15 dólares por hora – o salário mínimo federal defendido pelo Partido Democrata – e permitir os benefícios sociais ligados ao emprego convencional (contribuições para pensões, seguro de saúde, férias pagas, etc.). O Estado atua assim como empregador de último recurso para assegurar o pleno emprego, estabelecendo simultaneamente um limiar em termos de salário mínimo e condições de trabalho. Embora a proposta seja apelativa, levanta muitas questões, particularmente sobre o seu financiamento e implementação prática. Em França, o lançamento do livro desencadeou o debate à esquerda, transmitido através de numerosos argumentos publicados – entre outros – pela Mediapart. Para além dos aspetos práticos da reforma, a questão que parece dividir as pessoas é a da superação do capitalismo. A Garantia de Emprego é um instrumento para o conseguir, ou um engodo? Entrevistámos Pavlina Tcherneva para lhe permitir responder às principais críticas e para nos esclarecer sobre a aplicabilidade da sua proposta num país como a França. Entrevista conduzida por Politicoboy.

 

LVSL – De onde vem a ideia de Garantia de Emprego e qual é o seu objetivo?

Pavlina Tcherneva – A Garantia de Emprego (GE) não é uma ideia nova, de certa forma. Parece-me que foi mencionado pela primeira vez na Constituição francesa de 1793. Reconhece que, no sistema económico moderno, o trabalho remunerado é decisivo e essencial e que constitui um direito fundamental. Este conceito encontra-se em várias constituições, na Declaração dos Direitos do Homem da ONU e em vários tratados internacionais. A questão é como proceder para garantir este direito. O principal elemento que unifica as propostas de Garantia de Emprego é a ideia de emprego direto dos desempregados pelas autoridades públicas, a única instituição capaz de garantir o pleno emprego. O Estado é geralmente responsável por muitas garantias: educação, acesso aos cuidados de saúde, etc., e é responsável pela proteção social. A Garantia de Emprego reconhece que o governo não satisfaz este aspeto fundamental de segurança para a maioria das pessoas: a garantia de que se alguém estiver à procura de um emprego, encontrará um. A minha proposta é nova na medida em que aceita o desafio de garantir o direito ao emprego através de uma opção pública. Mas não se trata apenas de criar empregos. É também uma força estrutural. É uma nova forma de fazer política orçamental. É uma forma de estabilizar a economia. E é uma parte essencial do New Deal Verde.

 

LVSL – No seu livro, insiste muito no custo social e económico do desemprego para justificar a Garantia de Emprego.

Pavlina Tcherneva – Sim, absolutamente, o desemprego é um flagelo, uma praga para a sociedade. Tendemos a esquecer isto porque aceitamos o desemprego como se fosse normal e natural, mas inflige custos e sofrimentos terríveis às pessoas, às famílias e aos que as rodeiam. Escrevi este livro em finais de 2019, antes da pandemia, e nele defendo que o desemprego é uma epidemia silenciosa. Não é apenas o seu custo social, a forma como afeta as pessoas mental e fisicamente, os seus filhos e o efeito sobre a saúde, mas também a forma como se espalha pela sociedade. Espalha-se e comporta-se como um vírus. E quando se instala num território, causa esta doença crónica do emprego que enfraquece o tecido económico local e afeta a população. Se quisermos fazer algo a esse respeito, temos de reconhecer que já estamos a suportar os custos e que se trata de um paradigma destrutivo. O sector público já suporta o custo do desemprego, pelo que a sua responsabilidade é de fazer melhor em matéria de emprego.

“O desemprego é um flagelo, um flagelo para a sociedade. Inflige custos e sofrimentos terríveis. “

 

LVSL – Para quem não está familiarizado com o conceito da Garantia de Emprego, pode explicar como funciona?

Pavlina Tcherneva – Claramente, funcionará de forma diferente em diferentes países. A ideia central é que o sector público tem de assumir a responsabilidade pelo pleno emprego. Tem de organizar um programa que proporcione empregos para os desempregados numa base permanente. Não importa se a economia se encontra em recessão, pandemia ou num período de relativa prosperidade. Assim, o sector público atua de forma contra cíclica (contra cíclica, que vai na direção oposta à do ciclo económico- nota de redação). Este é um aspeto muito mal compreendido da Garantia de Emprego, mas todos os programas governamentais são contra cíclicos! Segurança social, cuidados médicos, habitação, alimentação, todos são contra cíclicos. A Garantia de Emprego será também contra cíclica, porque numa recessão económica, o impacto é sentido em primeiro lugar no emprego. Como funcionaria? Será financiada publicamente, mas idealmente deve ser administrado localmente. Os programas bem sucedidos são aqueles que são concebidos localmente, de forma participativa, porque é aí que as necessidades das comunidades locais são devidamente identificadas.

 

LVSL – Tomemos o caso de uma pessoa que quer tirar partido da Garantia de Emprego, como é que funciona?

Pavlina Tcherneva – Por exemplo, os Centros de Emprego (equivalentes aos escritórios do Pôle emploi em França NDLR) que gerem o seguro de desemprego. Porque não utilizá-los também para a Garantia de Emprego, pedindo-lhes que criem um banco de ofertas de emprego? Estes centros podem solicitar propostas às suas autoridades locais a fim de elaborarem uma lista de propostas de emprego. Assim, quando alguém se candidata ao seguro de desemprego, pode também aproveitar a opção de uma oferta de emprego a $15/hora mais as prestações sociais (ou $32.000/ano – cerca de 26.000 euros). Se não o quiser, receberá o seguro de desemprego. Mas se escolher a opção de emprego garantido, o emprego que lhe é oferecido é próximo da sua casa, não tem de se deslocar sequer duas horas. Está a participar num projeto que lhe dará algum nível de experiência e talvez novas competências. E pode continuar a procurar trabalho em paralelo, como se estivesse a trabalhar no sector privado. O emprego garantido é um trabalho básico que lhe dá um trampolim. Dispõe-se de uma segurança de base.

 

LVSL – A Garantia de Emprego é frequentemente contrastada com o Rendimento Universal. Esta última opção não é a sua preferência: porque pensa que é uma solução menos boa para erradicar a pobreza e o desemprego?

Pavlina Tcherneva – Não sou contra um rendimento básico, mas sou contra um rendimento universal definido como um rendimento garantido – da ordem do salário mínimo – distribuído a toda a população. A minha conceção de segurança económica é global, multidimensional e dependente da forma como as pessoas experimentam a insegurança económica. Por exemplo, para algumas pessoas a insegurança tem a ver com o acesso à educação, para outras tem a ver com habitação, rendimento ou emprego. Já garantimos formas de segurança dos rendimentos. A pensão mínima de velhice e as prestações familiares universais são formas de rendimento básico que posso apoiar. Tenho um problema com um rendimento básico de 30.000 dólares por ano para cada pessoa, rica ou pobre (o equivalente nos Estados Unidos do rendimento correspondente a um emprego garantido, que é cerca de 2.000 euros brutos por mês). Penso que existe um problema ético em proporcionar às pessoas ricas um rendimento básico de que elas não necessitam. Mas há também problemas macroeconómicos. Em primeiro lugar, não resolve a questão do desemprego. Proporcionar às pessoas um rendimento básico não cria diretamente emprego. Haverá sempre desemprego, e sabemos por experiência que as pessoas com um rendimento básico continuam à procura de trabalho e não o encontram necessariamente. As pessoas precisam de empregos. Temos de aceitar essa realidade.

 

“Oponho-me profundamente ao rendimento universal por princípios macroeconómicos e princípios morais.”

 

Depois, o outro problema macroeconómico é a inflação. Se pagarmos 30.000 dólares por ano a cada pessoa, isso corresponde a cerca de um terço do Produto Interno Bruto (PIB). Porque pagaríamos um terço do PIB, incondicionalmente, a todos? E podemos realmente esperar que as empresas com poder de mercado significativo não aumentem os seus preços para captar parte deste novo poder de compra sob a forma de lucro? É claro que o farão. E não há nenhum aspeto contra cíclico do Rendimento Universal. Estamos apenas a gastar um terço do PIB todos os anos. Portanto, oponho-me veementemente ao Rendimento Universal por princípios macroeconómicos e alguns princípios morais, mas concordo que precisamos de apoiar as pessoas de muitas maneiras, não apenas através do emprego. Precisamos de fornecer apoio financeiro a pessoas que não podem ou não devem trabalhar. Não queremos forçar todos a trabalhar, essa não é a ideia por detrás da Garantia de Emprego. Na minha opinião, as prestações sociais e a Garantia de Emprego são complementares. Está a introduzir-se uma Garantia de Emprego e um rendimento de base sob condições.

 

LVSL – A questão do financiamento parece ter perdido a sua importância, quando vemos como os Estados foram capazes de libertar milhões de milhões para o sector financeiro em 2008, e depois face à crise Covid-19 desde 2020. Este é pelo menos o caso nos Estados Unidos, onde Joe Biden continua a propor grandes pacotes de estímulos. No seu livro, liga a Garantia de Emprego à Teoria Moderna Monetária e defende o seu financiamento através da despesa pública. Em França, já não temos soberania monetária. Contudo, o Instituto Rousseau (na sua proposta para uma Garantia de Emprego Verde) identificou quase 100 mil milhões de euros de despesas anuais efetuadas em nome do emprego, que poderiam ser reafectados para financiar uma Garantia de Emprego que poderia – numa base otimista – financiar cerca de 5 milhões de empregos garantidos. Mas não haverá o risco de um tal programa ser vítima do seu próprio sucesso e de os seus custos explodirem? Mais precisamente, é um tal programa concebível em França?

Pavlina Tcherneva – Temos de reconhecer que estar numa união monetária impõe certas restrições que a maioria dos outros países não enfrentam. Podemos trabalhar no quadro dessas restrições, mas temos de compreender os limites. No entanto, se a Garantia de Emprego for bem sucedida e reconhecida como tal, penso que o passo seguinte é fazer dela uma proposta a nível da zona euro, que seria financiada de uma forma muito mais centralizada pelo orçamento europeu. Em segundo lugar, como mencionou, a Garantia de Emprego já é financiável. Os custos do desemprego já estão incluídos no orçamento do Estado. A atual política orçamental toma muitas iniciativas em nome da criação de emprego. Mencionei num artigo no Le Monde os subsídios que o Instituto Rousseau identificou. Estamos de facto a gastar generosamente com as empresas, através de subsídios, isenções fiscais, reduções de impostos e contratos públicos. Mas não estamos a ter um efeito significativo no emprego. Ao mesmo tempo, sabemos que o governo tem de lidar com o aumento da pobreza e com o impacto do desemprego na saúde, habitação, etc. Estes custos já estão presentes mas são para muitos invisíveis. Com a Garantia de Emprego reduzir-se-ão todos estes custos e sentir-se-á o efeito no orçamento do Estado, incluindo a nível das autoridades locais. Além disso, irá gerar efeitos positivos. Revitaliza territórios; apoia a economia através da despesa. O sector privado comporta-se muito melhor do que numa situação de desemprego em massa. Assim, podemos esperar que o ambiente económico global melhore, e que as condições de trabalho no sector privado melhorem. A outra coisa é que os empregos garantidos tornar-se-ão a norma, e o sector privado terá de se conformar com isso. Quando a economia está em pleno emprego, o sector privado aumenta os seus salários. Tem de o fazer. E isso será uma consequência da Garantia de Emprego.

“Ou se garante o pleno emprego ou se garante o desemprego. Não existem outras alternativas. “

 

Será o programa vítima do seu sucesso ao ponto de ser sobrecarregado pelas candidaturas? Penso que durante um curto período de tempo se podia ver algo do género. Eu vi-o na Argentina; passaram por uma terrível recessão com 40% de desemprego. O governo pôs em prática uma garantia de emprego, apenas para chefes de família. Penso que eles esperavam quinhentas mil pessoas e apareceram dois milhões. Mas a economia recuperou e as pessoas começaram a voltar para o sector privado. Penso que não devemos esperar uma explosão orçamental permanente, mas se prevemos muita procura, temos de perceber que os critérios de Maastricht são limites artificiais. Como disse, a crise demonstrou-o. Se quisermos fazer algo, fazemo-lo. Encontramos o dinheiro. Isto não é um problema, mesmo para os países europeus.

 

LVSL – Quais são as principais lições da experiência argentina, do programa Roosevelt’s Work Projects Administration (WPA) nos Estados Unidos e do sistema de emprego rural garantido na Índia?

Pavlina Tcherneva – Para mim, a principal lição a tirar é que podemos criar rapidamente um programa GE. Uma vez que haja um compromisso claro por parte do governo, a organização segue-se muito rapidamente. A segunda lição a tirar é que conseguir um emprego tem um impacto profundo sobre aqueles que não o conseguiram encontrar. E sabemos que as pessoas mais vulneráveis são as que tiveram a situação de desemprego mais prolongada. Assim, quando as pessoas se opõem à Garantia de Emprego, estão de facto a opor-se a que proporcionemos esse tipo de segurança económica aos mais vulneráveis. Defendem o direito dos empregadores a ter desemprego e a poder explorar, discriminar e assediar. Não existe outra alternativa. Ou se garante emprego ou se garante desemprego. Temos simplesmente de escolher. Para mim, a questão nem sequer se coloca. A Garantia de Emprego, quaisquer que sejam as suas falhas, é muito melhor do que qualquer coisa que façamos hoje. Vemo-lo na Índia. É um país onde milhões de pessoas vivem na pobreza. E no entanto, são capazes de arranjar emprego garantido para cerca de 30% das famílias. Todos os anos há flutuações, mas o programa é permanente. As pessoas vêm e vão, e organizam-no democraticamente de baixo para cima. A Argentina organizou-o de forma democrática. Nos Estados Unidos, as pessoas estavam tão entusiasmadas com este programa que começou a sentir que era da responsabilidade do governo manter o pleno emprego. O programa de Franklin Delano Roosevelt foi abandonado por razões ideológicas. Mas na Índia não o podem fazer porque o direito é garantido por lei. Portanto, não pense na Garantia de Emprego como uma política de crise, faça dela uma política estrutural. Esta é uma terceira lição.

 

LVSL – Na versão francesa do seu livro, a ligação entre o New Deal Verde e a Garantia de Emprego é destacada. Porque é que o considera um aspeto essencial da transição ecológica?

Pavlina Tcherneva – As discussões sobre a transição ecológica foram sempre difíceis porque nunca conseguimos incluir a questão do emprego. O Acordo de Paris é claro: uma transição deve ser compatível com os direitos humanos e ser justa do ponto de vista dos trabalhadores, de acordo com as prioridades nacionais. Sem a Garantia de Emprego, algumas pessoas terão sempre medo de perder a plataforma petrolífera ou a mina de carvão que proporcionam poucos empregos mas bem remunerados. Portanto, existe sempre esta tensão entre o emprego e o ambiente. Mas com a Garantia de Emprego, está-se a pôr em prática um seguro para a transição.

Depois, há realmente três garantias diferentes no New Deal Verde. A primeira é uma garantia de rendimento, para os trabalhadores do petróleo e gás e outros, que lhes dá uma boa pensão com um bom seguro de saúde. A segunda é a garantia de emprego de que estou a falar. A garantia de que os mais vulneráveis terão uma oferta de emprego básica com subsídios sociais. E a terceira garantia é a socialização mais ampla do investimento. As autoridades públicas criarão empregos suficientes para trabalhadores de todos os níveis de qualificação e rendimentos. Assim, a transição é sobretudo apoiada pelo governo. Esta é a parte que as pessoas confundem. Eles pensam que a garantia de emprego é uma socialização mais ampla do investimento. Mas não é! O governo deve liderar a transição ecológica, com todas as competências, todas as tecnologias, todos os atores, públicos e privados. Mas isto não significa que cada pessoa terá um emprego. Sem o GE, as pessoas vulneráveis ainda são suscetíveis de ficarem desempregadas.

 

LVSL – Tomemos o exemplo de um engenheiro ou antes de um técnico que trabalha numa refinaria em França. Trata-se de um trabalho qualificado e bem remunerado. Se ele perder o seu emprego na transição energética, para ele um emprego garantido que não exija qualificações especiais não será satisfatório.

Pavlina Tcherneva – A Garantia de Emprego não é uma solução para todas as perdas de emprego. Se eu for um perito contabilista e perder o meu emprego, a garantia básica de emprego provavelmente não é satisfatória. Provavelmente não vai ser a solução para todos os problemas do mercado de trabalho. Não vou garantir a um advogado ou a um banqueiro de investimentos o seu emprego com um rendimento equivalente. Não vou conceber uma política pública que garanta aqueles salários elevados num mercado de trabalho que, de qualquer forma, determina mal o preço da mão-de-obra. O que o governo precisa de fazer é garantir a base, um limiar. E depois pensar de forma criativa em como apoiar o resto da economia. Mas o Green New Deal fornece uma garantia para o engenheiro através dos investimentos na transição energética. Com uma formação adaptada, é claro. Portanto, num certo sentido, se a sua capacidade técnica é a de trabalhar numa plataforma petrolífera, sim, queremos que essa competência desapareça. É uma competência inútil. Por isso, compreendo que os trabalhadores com rendimentos médios podem não beneficiar com a garantia de emprego. Mas os trabalhadores com rendimentos médios beneficiam do investimento público e do investimento social significativo que o Green New Deal está a realizar. Para fazer uma comparação, basta olhar para o que aconteceu após a Segunda Guerra Mundial. Criámos muitos empregos sindicalizados, muitos empregos fabris, muitos empregos altamente remunerados através de contratos governamentais e investimentos governamentais em infraestruturas. Mas não criámos empregos para todos os desempregados. Não garantimos a base, um limiar. Pusemos em vigor um salário mínimo, mas se não conseguiu um emprego, não se conseguiu. O que proponho é pensar no limite mínimo absoluto e nos mais vulneráveis que também têm valor. Ninguém é não empregável.

 

LVSL – A questão da implementação da Garantia de Emprego suscita muitas dúvidas. Pensa-se em particular na supervisão, na formação ou na necessidade de encontrar empregos úteis. Não se arrisca a que seja necessária uma burocracia gigantesca?

Pavlina Tcherneva – Não é esse o caso. Se países emergentes como a Argentina, a África do Sul – que ainda não mencionei – ou a Índia podem implementá-la rapidamente, um país como a França pode ser perfeitamente fazê-lo. Há inúmeras tarefas que podem ser feitas para melhorar o nosso bem-estar. No ambiente em particular, mas não só aqui. Em primeiro lugar, há muito trabalho disponível. Em segundo lugar, criticar o aspeto burocrático é muito estranho. Temos uma burocracia gigantesca para assegurar a educação. Por causa disso ninguém diz que devemos abolir as escolas. O exército é uma burocracia gigantesca. Se quer implementar a Garantia de Emprego, tem de o fazer corretamente. Claro que vai precisar de uma administração, mas não se esqueça que já existe uma administração enorme para lidar com a pobreza e o desemprego e para lidar com a assistência social, o subsídio de habitação e para verificar os requerentes. Nos Estados Unidos, existe uma enorme burocracia apenas para forçar os desempregados a procurar empregos que não existem. Portanto, a burocracia já lá está.

 

LVSL – Pessoas como Matt Bruenig (presidente do grupo de reflexão People’s Policy Project nos EUA, próximo da esquerda radical) criticam o facto de a Garantia de Emprego exigir empregos não qualificados, que não exigem grandes quantidades de capital e que não sejam essenciais para não competir com o sector público tradicional e não criar um vazio quando os beneficiários de um emprego garantido encontram outro emprego. Para ele, isto significa que apenas empregos de baixa qualidade cumprem as especificações da Garantia de Emprego…

Pavlina Tcherneva – Para um socialista, esse é um ponto de vista muito burguês! É realmente paternalista dizer que vamos criar empregos de baixa qualidade, muito pouco qualificados, sem reconhecer que a pessoa desempregada se encontra numa situação muito deteriorada, e sem reconhecer que a forma como o mercado de trabalho funciona é particularmente injusta e cruel. Não há maus empregos. A limpeza das ruas é um trabalho de baixa qualidade? É o saneamento. É a saúde pública. É essencial. Podemos viver sem saneamento? Absolutamente não. Plantar uma árvore. É um mau trabalho? É o pulmão da cidade. Que trabalho é de má qualidade ? Gostaria de saber o que ele quer dizer com trabalho de má qualidade. Ninguém se propõe partir calhaus. Quem está a propor isso?

 

LVSL – Mas subsiste o problema do vácuo criado quando as pessoas deixam os empregos proporcionados pela Garantia de Emprego…

Pavlina Tcherneva – Esta é uma questão à parte. Resulta do aspeto contra cíclico, aspeto que é mal compreendido. O programa será contra cíclico porque o sector privado é contra cíclico. O desemprego é contra cíclico. Mas o que a maioria das pessoas ignora é que todos os países que atingiram o pleno emprego foram estabilizados economicamente. Olhe para o Japão, olhe para a Suécia, eles têm este modelo de socialismo corporativista. É estável. A taxa de desemprego é baixa e estável. Com a GE, haverá um pouco de flutuação, mas isso é por causa do sector privado. Assim, o sector público terá de ter a estrutura para acomodar as pessoas que entram e, claro, deixá-las ir quando precisarem. As pessoas deixam empregos no sector privado a toda a hora! Porque é que isto deveria ser um problema para a Garantia de Emprego? A Garantia de Emprego deve ser concebida como uma estrutura permanente, porque o desemprego é permanente. Mas o que quero realmente deixar claro é que a Garantia de Emprego não é um substituto para o serviço público que tem uma missão permanente. Não é um substituto das escolas públicas, dos inspetores do trabalho ou das infraestruturas públicas, mas pode levar algumas pessoas a esses gabinetes para fazer formação no local de trabalho e depois redirecioná-las para o emprego privado ou para o emprego público convencional. A Garantia de Emprego é uma opção pública, não um substituto para o serviço público.

“A Garantia de Emprego é uma proposta muito popular! Precisamos de nos organizar em torno de propostas populares.

 

LVSL – Em França, a sua proposta provocou o debate à esquerda. Para além dos aspetos que acabámos de discutir, alguns economistas keynesianos, como Henri Sterdyniak, cuja crítica leu, censuram a Garantia de Emprego pelo seu papel potencial como uma roda de reserva de mão-de-obra para o capitalismo, ou seja, o facto de não tornar possível a superação do capitalismo. A GE seria então um mau combate, mesmo um erro estratégico. Em vez de levar a luta ao coração das empresas, ao ponto da produção onde relação de forças entre trabalho e capital é expresso da forma mais direta, a GE renunciaria a forçar as empresas a garantir o emprego. Pelo contrário, outros economistas keynesianos e o jornalista económico Romaric Godin, autor do posfácio do seu livro, veem a GE como uma arma para as lutas sociais, com um potencial revolucionário.

Pavlina Tcherneva – Deixem-me começar pela questão do colocar em causa o capitalismo. A Garantia de Emprego não é um substituto para outras causas progressivas que possam ser promovidas noutros locais. Mas substitui o sistema atual. Tenho dificuldade em imaginar que possamos defender outra abordagem que seria perturbadora, perpetuando ao mesmo tempo o desemprego em massa e os seus efeitos. Será este o futuro que os socialistas querem construir, nas costas dos desempregados?. Se assim for, discordo. A Garantia de Emprego erradica a abominação que é o desemprego. E se se quiser políticas mais revolucionárias, elas podem ser implementadas em paralelo. Mas repare. Os sindicatos americanos adotaram e apoiam a Garantia de Emprego. A CES (Confederação Europeia de Sindicatos) também a adotou. As pessoas precisam de compreender o seu poder. Se o medo do desemprego já não faz parte do processo de negociação, e se a ameaça de desemprego não estiver constantemente a pairar sobre as cabeças dos trabalhadores, estes têm uma ferramenta que antes não tinham. Não importa o que se quer fazer com ele. Agora, a GE vai ou não salvar o capitalismo, não creio que seja um debate muito relevante, porque a GE traz uma transformação positiva a um sistema económico muito injusto. E é também uma proposta muito popular! Veja as sondagens de opinião. Penso que temos de estar cientes disso. Precisamos de nos organizar em torno de propostas populares. Se alguém quiser militar e lutar, esta é uma proposta que está em cima da mesa. É a base para um novo contrato social. Pode fazer o que quiser com ele. Penso que o Romaric Godin tem razão, que isto poderia ter um potencial revolucionário. Aponta a relação de forças mais a favor dos trabalhadores e dá-lhes mais poder. Mas admito prontamente que o objetivo da GE não é superar o capitalismo. Este programa não foi concebido para oferecer soluções para todos os problemas do capitalismo.

 

LVSL – O sector privado deve temer a Garantia de Emprego? Poder-se-ia argumentar que apoiaria a procura e estabilizaria a economia.

Pavlina Tcherneva – Estou certa de que o sector privado não vai gostar desta proposta. Podemos ver como os representantes dos empregadores e a ala direita estão a falar sobre o assunto. O que é mais interessante é que vemos apoio para a Garantia de Emprego de todos os quadrantes da sociedade civil. A questão é como pô-lo em prática.. Os capitães da indústria opor-se-ão, isso é certo. Eles sempre se opuseram a este tipo de política. Será que a Índia foi bem sucedida? Em certo sentido, sim. Conseguiram fazer dela uma lei. Ou seja, o governo é responsável por garantir o emprego. O programa tem muitos problemas. Os industriais estão sempre a lutar contra isso. Eles tentam minar o seu financiamento. Eles tentam obter contratos privados em vez de emprego público direto. É claro, é um processo. Mas existem alguns elementos determinantes. Se não queremos defender o privilégio capitalista de pagar salários de pobreza, precisamos de estabelecer uma norma. Simplesmente não há outra forma. Se quer realmente ter um salário mínimo e pleno emprego, também tem de garantir a capacidade de obter um emprego com um salário mínimo. E voltando à sua pergunta, não foi Franklin D. Roosevelt que disse: “Tratem os interesses financeiros como bebés. ” Ou foi Keynes que disse numa carta a FDR “Deve aceitar o facto de que eles estão sempre a queixar-se, e ignorá-los. “

 

 

 

 

 

 

 

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