Sobre a tensão em torno da Ucrânia – “Os Russos não querem romper com a Europa”, entrevista com Hélène Carrère d’Encausse. Por Le Point

Seleção e tradução de Francisco Tavares

10 m de leitura

Os Russos não querem romper com a Europa

Entrevista com Hélène Carrère d’Encausse

Conduzida por Etienne Gernelle e  Christophe Ono-dit-Biot

Publicado por  em 8 de Fevereiro de 2022 (original aqui)

 

Em plena crise ucraniana, a académica Hélène Carrère d’Encausse, historiadora especialista da Rússia e do império soviético, recebeu o “Le Point”.

 

Hélène Carrère d’Encausse, secretária perpétua da Academia Francesa, 8 de Junho de 2021. Historiadora, é uma especialista na Rússia e no império soviético. Bruno ARBESU/REA

 

Especialista da URSS (já em 1978, ela previu o seu colapso em L’Empire éclaté) e da Rússia (escreveu biografias de Catarina II, dos Romanovs e, recentemente, de Alexandra Kollontaï), a secretária perpétua da Académie française e antiga eurodeputada analisa a crise russo-ucraniana à luz da história. “Para se ter a verdade“, diz ela, é preciso “ter em consideração ambos os países. Não estou de um lado ou do outro: estou de ambos os lados ao mesmo tempo”. Entrevista.

Le Point: Como conter a Rússia, ou Vladimir Putin?

Hélène Carrère d’Encausse: Querer “conter” Vladimir Putin? Isso não serviria absolutamente para nada! É mesmo um erro de análise! Pode-se compreender com rigor a atitude dos americanos, que costumavam apreciar ser a única superpotência e que, agora confrontados com o império chinês, estão preocupados com a ideia de ver reemergir uma “Rússia soviética”. Mas os europeus devem compreender que quando os russos, liderados por Gorbachev e Ieltsin, sacrificaram o seu império em 1991, não foi apenas a liquidação do sistema soviético que eles estavam a fazer, mas viram nela uma forma de se tornarem novamente um país europeu.

Um país europeu? À pergunta feita aos russos há dois anos por um instituto de sondagens – “Considera-se europeu? – a resposta foi 55% negativa…

Ao responderem dessa forma, os russos tinham em mente uma União Europeia que eles sentiam que os estava a rejeitar. Vêem-na como uma barreira que lhes é colocada pela Europa de Leste, a começar pela Polónia. Mas eles sentem-se profundamente europeus. O problema é que o jogo já não se faz no interior da Europa, mas na relação entre a Europa e a Ásia. Será a Rússia uma ponte entre eles, ou será que se vai distanciar da Europa? O General de Gaulle, e foi criticado por isso, estava bem consciente deste risco, e o Presidente Macron, ao receber Vladimir Putin em Versalhes em 2017, reparando a afronta feita por Luís XIV a Pedro I o Grande em 1697, que não o tinha recebido, mostrou-se atento a esse risco.

Então pensa que precisamos de romper com a ideia de que a Rússia é expansionista por natureza?

De facto! Para Solzhenitsyn – que Vladimir Putin leu perfeitamente – a tragédia da Rússia é que sempre quis conquistar novos territórios, que tinha demasiado, e que isto acabou por a esgotar. Sabe quem é que Solzhenitsyn pensa que foi o grande governante russo do século XIX? Alexandre III, porque foi o único que não quis conquistar nada… De certa forma, 1991 e o fim do Império foi uma libertação para o poder russo. O sonho de Gorbachev, como o de Ieltsin, era criar uma espécie de Commonwealth, uma família reconstituída a partir do antigo império.

“Há um ucraniano em cada família russa e um russo em cada família ucraniana”

Que representa a Ucrânia para a Rússia? E a Rússia, para a Ucrânia?

A questão básica é: é apenas um povo ou são dois? Na realidade, é muito mais complicado do que isso. Têm histórias distintas, e uma longa história comum. É preciso ter ambos os países em consideração para obter a verdade. Não estou de um lado ou do outro: estou de ambos. Não esqueçamos que há um ucraniano em cada família russa e um russo em cada família ucraniana. E é por isso que uma guerra entre os dois países é difícil de imaginar. Além disso, mesmo a Ucrânia é dupla.

Como é isso de duas Ucrânia?

Há uma Ucrânia que foi dominada pelo reino da Polónia nos séculos XIV e XV, e alguns clãs pediram ao segundo governante Romanov, o czar Alexis, que os tomasse sob a sua protecção para os libertar dos polacos. O czar Alexis cedeu em 1654 a pedido do carrasco Khmelnitski. Esta foi a terceira tentativa, pois as duas primeiras vezes o Czar recusou. A partir desse momento, esta Ucrânia, a Ucrânia Oriental, russificou-se. E depois há uma outra Ucrânia, mais a oeste, aquela que se tornará parte do Império Austro-Húngaro. Esta última, no século XIX, deu direitos às suas minorias e assim aceitou uma certa “Ucranização” cultural. Finalmente, foi em Kiev que Vladimir, no século X, adoptou a variante bizantina do cristianismo, que se tornaria Ortodoxia. É por isso que os russos consideram Kiev o berço da sua nação, uma vez que a Rússia e a Ortodoxia são inseparáveis.

E o que é que a União Soviética fez com a Ucrânia?

O poder soviético comportou-se de uma forma muito ambígua. Foi a sua política nacional. A fim de quebrar vontades nacionais, Lenine e Estaline deram-lhes – durante algum tempo – os atributos da nação, língua, cultura, e, ao fazê-lo, encorajaram o nacionalismo. Ao mesmo tempo, a colectivização da Ucrânia foi terrível: para além da terrível fome que atingiu toda a URSS, houve uma política deliberada na Ucrânia para quebrar o nacionalismo, matando a população à fome em 1932. Foi o Holodomor, um verdadeiro genocídio, que viu mesmo o aparecimento do canibalismo. Os ucranianos lembram-se bem disso e não o perdoam.

Depois veio a invasão alemã em 1941…

Ao invadir a União Soviética em 1941, os Alemães chegaram à Ucrânia. Para muitos ucranianos, isto não era uma má notícia. O povo martirizado viu os exércitos alemães a dominar os seus torcionários e pensaram: estão a vir para nos libertar. Os generais alemães eram na sua maioria a favor de uma política nacional na Ucrânia. Alguns receberam a mensagem na perfeição, como Stepan Bandera. Para os ucranianos, ele não é apenas um traidor, mas queria encarnar a resistência ucraniana, enquanto para nós, ele simplesmente colaborou com os nazis… antes de ser preso por Hitler. E a repressão na Ucrânia, o destino dos ucranianos deportados para a Alemanha no período da guerra foi terrível. Esta história deixou ressentimentos profundos e legítimos.

Durante o período pós-estalin, a Ucrânia foi apresentada como o “segundo grande irmão da URSS”…

Sim, e em 1954 Nikita Khrushchev anexou a Crimeia à República da Ucrânia para celebrar o tricentenário do Tratado de Pereslav assinado entre o czar Alexis e Hetman Khmelnitsky, que trouxe a Ucrânia para o espaço russo. Mas, na altura, ninguém estava interessado nisto. Ninguém imaginava o desaparecimento da União Soviética.

Uma Crimeia que eles recuperaram pela força em 2014…

Certamente. Para os russos, a Crimeia é uma conquista de Catarina II. Há lá residências imperiais, a casa de Chekhov, e depois Sebastopol. Quando a União Soviética foi liquidada em 1991, na dacha de Belovej, a única preocupação de Ieltsin era não romper com a Ucrânia. Mas o Presidente ucraniano Kravtchuk fechava-se sempre que a Crimeia era mencionada. Porque é que queria que ele abdicasse de um centímetro de território? Ieltsin preferiu esquecer a Crimeia a fim de manter a ligação com a Ucrânia. Ele acreditava num mundo fraternal. Estávamos a substituir um novo mundo.

Mas há mesmo assim o direito internacional… Os tratados contam…

Não havia tratado, aquilo foi feito por uma decisão interna do Estado soviético em 1954, transferindo um território russo para uma república da União Soviética, neste caso a República da Ucrânia. Em 1991, os três Estados fundadores da URSS (Rússia, Ucrânia, Bielorrússia) decretaram a dissolução da URSS e o fim do tratado de 1922. Ao mesmo tempo, decidiram sobre a inamovibilidade das fronteiras tal como existiam até à dissolução da URSS. Isto implica o reconhecimento da integração da Crimeia na Ucrânia. Em 2014, na sequência do referendo na Crimeia, quando Putin reintegrou a Crimeia no espaço russo, assinalou com isso que considerava esta integração da Crimeia na Ucrânia, que tinha durado sessenta anos, inválida face a uma história que remonta ao século XVII.

O que pensa que se passa na mente de Vladimir Putin, que conhece bem?

Ele é um produto do sistema soviético, que o formou. Putin tinha quase quarenta anos de idade quando a URSS deixou de existir. Ele também leu Solzhenitsyn, e sabe que não se pode reconstruir um império caído. Mas ele quer apaixonadamente preservar uma relação especial com a vizinhança. Que diferença faz isto, basicamente, para a Doutrina Monroe dos Americanos? O que complica o problema para a Rússia são as fronteiras com países como a Polónia ou os Estados Bálticos, com os quais os contenciosos históricos são muito poderosos. Existe um pólo anti-russo que não tem contribuído para a aproximação da Rússia à Europa.

Acha que ao Ocidente lhe falhou alguma coisa?

Não se sai facilmente de setenta e cinco anos de comunismo, e os europeus não compreenderam isso: olharam com indiferença para os dez anos de decomposição do sistema soviético. Putin chegou ao poder na viragem do milénio, num país devastado. Quando os checos, polacos e húngaros aderiram à NATO, e mesmo os Estados Bálticos, ele não pestanejou. Mas com a Ucrânia, estamos a entrar numa categoria diferente. Para a Rússia, isto é impensável. Além disso, digam o que disserem, a verdade é que Gorbachev exigiu, como condição para aceitar a reunificação alemã, que a NATO nunca se aproximasse das fronteiras da Rússia. Baker e Kohl prometeram-lhe que seria assim.

O que é muito contestado hoje em dia…

Contestado pelas autoridades americanas, mas os historiadores sabem que é a verdade, e os arquivos sairão um dia. É claro que não há nada escrito. Fiz pessoalmente esta pergunta a James Baker e Gorbachev há cerca de dez anos. Quando perguntei a Gorbachev porque é que ele não pediu uma garantia por escrito, ele respondeu: “Ouve-me, estávamos a entrar no mundo livre, pensávamos que eram pessoas decentes”.

O que pode acontecer agora?

Neste momento, estamos num jogo de póquer de mentirosos, como fomos habituados durante a Guerra Fria. Putin quer uma garantia escrita de que a Ucrânia não se juntará à NATO, e sabe que não o conseguirá, mas ficará satisfeito com o congelamento do problema, e também sabe que os Estados Unidos não têm qualquer intenção real de integrar a Ucrânia na NATO. Putin não tem qualquer intenção de invadir a Ucrânia, porque a Rússia iria perder muito. Putin não é um idiota ou ignorante das condições internacionais. Mas também se fica com a impressão de que Joe Biden continua a tentar fazer as pessoas esquecerem a sua derrota no Afeganistão e está a agir de forma imprudente. Zelensky é mais cabeça fria e tenta acalmar os americanos. Deve dizer-se que a política americana desde 1991 teve geralmente como objectivo evitar que a Rússia recupere o seu estatuto de potência. Mas Kissinger, que era um homem de negociação, pensou que era necessário compreender a Rússia e poupá-la, e até Brzezinski, por mais anti-russo que fosse, avançou nesta direcção no final.

“A Rússia e a Ucrânia partilham a culpa”

 

O que vai ser da Ucrânia?

Os ucranianos querem ser uma grande nação, um grande país como os outros países da Europa, e acreditam que isto significa aderir à NATO. A Ucrânia existe, e é absurdo acreditar que os russos não o sabem, ou que acreditam que podem mudá-lo! A dificuldade vem também dos ucranianos que têm pouco respeito pelas suas minorias. Queriam “ucranizá-las” marginalizando as suas línguas, especialmente o russo, e os falantes de russo sentiam-se como cidadãos de segunda classe. Isto esteve em jogo na Crimeia em 2014. Putin tirou partido disto. Se os ucranianos tivessem praticado uma política de respeito cultural, teria desinflado o conflito. A culpa é partilhada pelos dois.

Como vê a acção dos europeus?

É uma trapalhada por incompreensão. A política europeia está a empurrar Putin para os chineses, que lhe estão a dar o apoio de que ele necessita. Acabámos de ter uma prova disso nas Nações Unidas. Mas nem tudo está perdido. O desejo de não romper com a Europa, com um destino europeu, está enraizado nos corações dos russos e de Putin. Para sair desta situação, o Presidente Macron e o Chanceler Scholz devem continuar o que Merkel e Hollande fizeram em 2014, ou seja, os acordos de Minsk. Ou seja, uma negociação entre quatro países – Ucrânia, Rússia, França, Alemanha – denominada “formato Normandia”, cujo objectivo era normalizar as relações através da eliminação dos elementos de conflito. Há que admitir que os ucranianos mostraram pouca boa vontade.

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Os entrevistadores

Étienne Gernelle [1976-], jornalista francês, diretor do Le Point desde 2017. É defensor de reformas liberais [n.t. neoliberais] para França e considera a França como uma pequena União Soviética.

Christophe Ono-dit-Biot [1975-], jornalista francês, é diretor adjunto do Le Point.

 

 

 

 

 

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