A GALIZA COMO TAREFA – um dia – Ernesto V. Souza

Um dia, como qualquer outro, chegou a alvorada no mar alto. E, ao enxergar rotineiro de luneta o horizonte deixei de ver qualquer outra vela na distância. Que sobressalto. Mas, por nos ajustar à verdade, fôramos perdendo gradualmente de vista o resto das embarcações. E havia tempo que os grandes navios de linha, acarão da Capitã navegavam muito distantes.

A experiência não queria contar nesta jornada e as estratégias dos almirantes pareciam, quando largamos amarras, apenas atender a propósitos dissimulados e às hierarquias do comando. Mais que nada – é de supor – sumidos nos seus cálculos e atentos às novas tecnologias, às estruturas e materiais dos novos galeões, não davam notícia completa das suas intenções.

A frota era a maior na que nunca navegáramos. Mas a nossa, protótipo ou mistura experimental de nau e carraca, com essa fasquia característica de proa alta e não pouco fora de época, negava-se a tomar rumo contra o mar e o vento. E o capitão hesitava também, perplexo ante as cartas. Resistia-se também a navegar contra a lógica e arte da navegação. Assim reticentes, fôramos perdendo velocidade na carreira. Nas últimas semanas apenas algumas naus, caravelas e galeões, navios pesados e de muita carga, iam ao nosso andar. As demais tomavam distância. Percebíamos que a frota ia se estendendo em grupos que se distanciavam.

Pequenas tempestades foram nos desgarrando. Foram passando os dias, semanas. E na calmaria grande que sucedeu, fomos perdendo contacto. Pairávamos, percebendo, de menos em menos, embarcações arredor. Cada noite afastavam-se mais. Cada dia desaparecia uma nova vela no reconto. Perdêramos finalmente até o contacto intermitente. Ninguém onde era esperado fazer aguada e reunião. Até que foi evidente que navegávamos em solitário.

A ideia que tenho é que não temos mudado o rumo marcado. Mas não damos alcance à frota. Esfumou-se no percurso previsto, sumiu. Não há ronsel, nem esteira, nem rasto à luz do dia, nem farol que se enxergue na noite. Tenho comprovado nas bússolas secundárias, nas estrelas no firmamento, e medido de quanta forma conheço a nossa posição. Parece lógico pensar que fomos ficando a cada vez mais longe das novas derrotas que fosse tomando a principal. Talvez não interpretasse, reticente como andava, bem alguma mudança de rumo, ou que perdesse ou não compreendesse alguma comunicação.

A cousa é que atualmente já não dou avistado as velas brancas na distância. Saímos da rota. Vamos tomando de novo uma alegre velocidade, a navegar de costado, com o vento zoando, entre ondas tamanhas. Mas também voltou a velha sensação de soidade, a mesma sensação de estrangeirice, de perda e de isolamento.

Fica longe no tempo o dia em que a nau chegou desarvorada e aportou no último momento, fazendo água por toda parte, depois de muita tempestade e não poucos encontros desafortunados à Ilha da fantasia ou dos piratas, ao belo porto luminoso e festivo. Eram outros tempos, tempos de entusiasmo, tempos da navegação pioneira e mais livre. Um tempo em que acreditamos de novo fazer parte de uma comunidade.

Mas não faz sentido deixar-se embalar nas ondas da saudade. Temos bastimentos, víveres e água nos porões, o paiol de pólvora está repleto, os canos estão como novos, velhas e novas cartografias e instrumentos na ponte.  Afinal este navio é sólido, muito marinheiro e está bem artilhado. Foi desenhado e fabricado para navegar em solitário, e melhorado para explorar e percorrer grandes cabotagens, para lutar a corsário e reparar-se sem ajuda, e para andar no mar por meses sem amarre, tomar terra, nem dar em porto amigo.

Para onde agora? E quem sabe? onde nos levem a mar e o vento.

 

* Xilogravura, tomada da “Relação da Viagem E sucesso que teve a nau S. Francisco” História Trágico-Marítima T. II, 1736.

 

1 Comment

  1. “essa fasquia característica de proa alta”, caro…. não é tão ruim cousa isso da proa alta….está para voltar
    https://www.youtube.com/watch?v=OOHn95E9AkY

    texto maravilhoso como todos os teus, que adorei, e o final
    “Temos bastimentos, víveres e água nos porões, o paiol de pólvora está repleto, os canos estão como novos, velhas e novas cartografias e instrumentos na ponte. Afinal este navio é sólido, muito marinheiro e está bem artilhado. Foi desenhado e fabricado para navegar em solitário, e melhorado para explorar e percorrer grandes cabotagens, para lutar a corsário e reparar-se sem ajuda, e para andar no mar por meses sem amarre, tomar terra, nem dar em porto amigo”.

    eu enxergo-te bem claro desde a minha posição.
    abraço

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