A Guerra na Ucrânia — “Com a Incursão de Putin na Ucrânia, os Falcões em Washington têm exactamente o que queriam”.  Por Branko Marcetic

Seleção e tradução de Francisco Tavares

10 m de leitura

 

Com a Incursão de Putin na Ucrânia, os Falcões em Washington têm exactamente o que queriam

 Por Branko Marcetic

Publicado por em 23 de Fevereiro de 2022 (original aqui)

 

A última escalada da crise na Ucrânia exige que tenhamos em mente duas ideias ao mesmo tempo: que Vladimir Putin tem muita responsabilidade na crise imediata, e que a recusa de longa data dos EUA em aceitar limites à expansão da NATO ajudou a concretizá-la.

As pessoas chegam a um gabinete de recrutamento para se registarem após declaração de mobilização na região de Donetsk, sob o controlo de separatistas pró-russos, a 23 de à Fevereiro de 2022. (Stringer / Anadolu Agency via Getty Images)

 

Esta semana [1] assistiu-se escalada mais dramática da crise, ainda em lenta combustão, da Ucrânia, uma vez que o presidente russo Vladimir Putin reconheceu formalmente a independência das regiões orientais separatistas de Donetsk e Luhansk, e enviou tropas russas para a área, supostamente para fins de manutenção da paz.A primeira coisa a dizer sobre isto é que é imprudente e ilegal. Ao abrigo dos acordos de Minsk que tanto a Rússia como o Ocidente têm vindo a impulsionar durante anos como um acordo para a mini-guerra civil que tem vindo a assolar a Ucrânia oriental nos últimos oito anos, estas regiões deveriam ganhar autonomia mantendo-se no entanto parte da Ucrânia. A atitude de Putin quebra efectivamente esse acordo.

Em segundo lugar, ao abrigo do direito internacional, existem processos para a realização de missões de manutenção da paz; o envio unilateral de tropas para um país vizinho com o qual se está em conflito não é uma missão de manutenção de paz. É por isso que o representante do Quénia na ONU, que se tinha abstido de votar para discutir as acções da Rússia no início deste mês, disse ontem que a medida “viola a integridade territorial da Ucrânia”, comparando-a com a forma como as fronteiras dos países africanos tinham sido traçadas e redesenhadas por impérios moribundos. A “ordem internacional baseada em regras” pode ter os seus problemas e ser invocada selectivamente, mas no seu cerne é um princípio fundamentalmente bom: que os fortes não podem simplesmente fazer o que querem aos fracos.

E Putin deu agora muitas indicações de que está feliz por aumentar a sua intervenção. Enviar “forças de manutenção da paz” é uma coisa. Fazê-lo depois de reconhecer a independência de regiões controladas por separatistas que ele apoiou – algo que Putin tinha rejeitado apenas na semana passada – e depois de um discurso acusando efectivamente o país em que se encontram, de ser o seu território, sinaliza umas ambições menos que benignas.

Reconhecer tudo isto, porém, não deixa o Ocidente livre de culpa no que está agora a acontecer. Ou, como disse recentemente o cientista político Stephen Walt: “pode-se pensar que as acções actuais da Rússia são totalmente ilegítimas e também pensar que um conjunto diferente de políticas dos EUA nas últimas décadas as teria tornado menos prováveis“.

Ou um conjunto diferente de políticas dos EUA ao longo dos últimos meses. Já o exército de especialistas falcões de guerra que tem vindo a prever – a salivar, poderia ser mais exacto – uma invasão russa aproveitou este último passo como justificação dos seus pontos de vista habituais: Putin é Hitler, procura reavivar a glória da União Soviética, não se pode apelar ao seu bom senso, e apenas uma demonstração de força, e não “apaziguamento” ou negociações que “recompensem” o seu comportamento, pode fazê-lo parar. Esta é, aliás, exactamente a abordagem que Washington e os seus aliados, principalmente o Reino Unido, adoptaram para nos levar até este ponto.

Ao longo desta crise, a posição ocidental tem sido a de adotar uma linha caricaturalmente dura contra a negociação. Em Dezembro, Putin elaborou a sua proposta inicial, maximalista, apelando, sobretudo, a um compromisso legal por escrito, de que a vizinha Ucrânia e a Geórgia não adeririam à NATO, pois Washington tinha reentrado no Tratado das Forças Nucleares Intermédias (INF) de que Trump se tinha retirado imprudentemente, e uma série de exigências menos realistas sobre as actividades da NATO em antigas repúblicas soviéticas. Mas era o primeiro item da lista o que Putin realmente pretendia. Os limites à deriva oriental da NATO, afinal de contas, tinham sido há muito um ponto doloroso não só para Putin, mas mesmo para as elites russas pró-ocidentais durante anos, algo que vários responsáveis e pensadores norte-americanos já tinham reconhecido abertamente como compreensível.

Então, sabendo que Moscovo ameaçava agora uma acção militar contra a Ucrânia se as suas objecções ao alargamento da NATO continuassem a ser ignoradas, o que fizeram os responsáveis ocidentais? Recusaram-se a ceder repetidamente à questão, à medida que os meses se foram prolongando, mesmo quando, absurdamente, reconheceram que a Ucrânia não iria aderir à aliança tão cedo, e deixaram claro que não iriam lutar para a defender. É o equivalente geopolítico de um pistoleiro a acenar com uma pistola ao seu amigo, exigindo-lhe que exclua quaisquer planos futuros de escalar o Monte Evereste, apenas para cruzar os braços e recusar.

A necessidade ocidental de se posicionar de forma dura e intransigente a todo o custo chegou a níveis especialmente tolos no início deste mês, quando a secretária dos negócios estrangeiros britânica Liz Truss – que tinha celebrado anteriormente o seu jantar chique com a esposa de uma pessoa nomeada por Putin que lhe tinha pago uma pequena fortuna ao partido – se sentou para conversações com o ministro dos negócios estrangeiros russo Sergey Lavrov. Quando Lavrov, em resposta às exigências de Truss de que a Rússia retirasse as tropas do seu território fronteiriço com a Ucrânia, perguntou se reconhecia a soberania da Rússia sobre as regiões de Rostov e Voronezh, Truss respondeu que o Reino Unido “nunca reconheceria a soberania russa sobre estas regiões” – o que provocou que um diplomata mais informado interviesse e lhe explicasse que se tratava de regiões russas.

Foi um episódio embaraçoso, mas revelou muito sobre a posição negocial dos EUA e do Reino Unido: nomeadamente, que estavam empenhados em assumir uma postura despropositada e dura nas negociações, mesmo quando isso não fazia qualquer sentido.

Entretanto, ao recusarem-se efectivamente a negociar, os Estados Unidos e o Reino Unido voltaram-se para uma “campanha de comunicação estratégica” na qual, ao longo de semanas e meses, fizeram inúmeras previsões sobre uma “iminente” invasão russa que repetidamente não se concretizou, e alimentaram os repórteres com profecias sombrias de bandeiras falsas e mesmo um golpe de estado. As provas disto não eram claras porque os responsáveis recusaram revelá-las, mas o pânico gerado levou à retirada dos monitores de cessar-fogo da Ucrânia oriental, que por sua vez viu explodir as violações do cessar-fogo na região – criando o próprio pretexto que a Rússia utilizou agora para enviar tropas, que os responsáveis ocidentais têm naturalmente apontado para afirmar que tinham razão desde o início.

Talvez o Kremlin estivesse realmente a fazer exactamente aquilo que os responsáveis ocidentais afirmavam. Mas como as provas disso continuam por revelar, neste momento é igualmente provável que esses responsáveis tenham ajudado a desencadear aquilo que estavam a tentar evitar, com a retirada dos monitores levando a um aumento dos combates que Putin explorou.

Tudo isto nos trouxe até aqui. Não é claro o que Putin está agora a planear. Estará ele simplesmente a subir a fasquia para espremer concessões do Ocidente? Estará ele a planear esculpir um tampão independente e pró-russo da Ucrânia, ou mesmo anexar esta parte do país? Ou está ele a planear a mais exagerada das previsões ocidentais, de marchar até Kiev e derrubar o governo ucraniano, sobrecarregando-o com uma dor de cabeça que poderia facilmente tornar-se o seu próprio Afeganistão? Nesta fase, não podemos dizer.

O que podemos dizer é que as acções de Putin ainda não chegaram ao ponto de uma invasão em grande escala, como até mesmo os responsáveis dos EUA reconhecem, o que significa que ainda é possível uma solução diplomática. E as elites ocidentais seriam sensatas em prossegui-la antes de Putin passar o ponto de não retorno, porque a alternativa não será boa para ninguém.

Considere as potenciais ramificações apenas para Biden. Se os combates na Ucrânia prejudicarem as infra-estruturas energéticas, ou se os governos ocidentais acabarem por sancionar os combustíveis fósseis russos, poderão levar a inflação nos Estados Unidos a níveis ainda mais altos, especialmente com a Rússia agora o segundo maior fornecedor estrangeiro de petróleo aos Estados Unidos.

Poderia ficar ainda pior se, quer através de sanções ou retaliações russas, a secagem das exportações de trigo e mercadorias russas, atingindo os preços dos alimentos, bem como a indústria de semicondutores, cujas dificuldades têm provocado o disparo dos preços dos automóveis americanos e os roubos de automóveis, juntamente com uma variedade de outras indústrias dependentes das matérias-primas e dos consumidores russos. O mesmo ocorre com a Ucrânia, também grande exportador mundial tanto de cereais como de matérias-primas utilizadas para fazer chips para semicondutores e outros produtos.

Mesmo que os Estados Unidos encontrem uma forma de escapar a estes impactos, outros países não o farão, alimentando potencialmente a desestabilização em todo o mundo e criando uma série de incêndios que Washington terá de apagar. A Europa, um grande comprador de petróleo e gás russo, será particularmente atingida, as remessas para os países eurasiáticos secarão, e o preço dos alimentos para países como o Egipto fortemente dependentes da Ucrânia e da Rússia saltarão, aumentando o risco de convulsões políticas. Quando as pessoas ficam com fome suficiente, tendem a revoltar-se.

Depois, há o potencial para uma escalada da guerra. Os combates entre a Ucrânia e a Rússia poderiam facilmente extravasar as fronteiras da primeira, apanhando outros países, mesmo aliados da NATO, criando o cenário para uma escalada nuclear catastrófica. Mesmo o cenário menos mau e mais provável de a Rússia combater indefinidamente uma insurreição treinada pelos EUA na Ucrânia não é bom, com militantes de extrema-direita a ganharem armas e experiência de combate num lugar que, tal como a Síria, já tem os ingredientes de um nexo global com extremistas violentos, estes da variedade supremacista branca. O facto de, neste caso, estar a acontecer às portas da Europa deveria ser ainda mais alarmante para os ocidentais.

Infelizmente, parece que a Casa Branca decidiu agora que a incursão de Putin, quer acabe por ser “limitada” ou algo ainda mais perigoso, significa que a diplomacia está agora fora de questão. Qualquer que seja a explicação para a obstinação ocidental, são os ucranianos comuns que irão sofrer, juntamente com todos os outros que sentem os efeitos do conflito, entre eles a pressão do Congresso para inundar a Ucrânia com armas, onde inevitavelmente irão parar às mãos de neonazis e outros extremistas.

Putin é o último responsável por qualquer horror que ele desencadear. Mas guardem alguma da vossa indignação para os governos e responsáveis ocidentais que optaram por tornar a guerra inevitável, recusando-se a transigir, sacrificando um país que consideram como pouco mais do que uma peça de xadrez.

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Nota

[1] N.T. Este artigo data de 23 de Fevereiro de 2022.

 

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O autor: Branko Marcetic é redator de Jacobin Magazine e bolseiro do Leonard C. Goodman Institute for Investigative Reporting em 2019 – 2020. É autor de Yesterday’s Man: The case against Joe Biden (Verso, 2020).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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