A Guerra na Ucrânia — “Uma oportunidade única num século”.  Por Alastair Crooke

 

Seleção e tradução de Francisco Tavares

15 m de leitura

 

Uma oportunidade única num século

 

 Por Alastair Crooke

Publicado por  em 4 de Abril de 2022 (original aqui)

 

 

“A era da globalização liberal chegou ao fim. Diante dos nossos olhos está a ser formada uma nova ordem económica mundial”

 

Ena! Com que rapidez gira a roda da fortuna. Parece que ainda ontem um Ministro das Finanças francês estava a falar da iminência do colapso da economia russa, e o Presidente Biden celebrava o Rublo a ser “reduzido a escombros” – o Ocidente colectivo tendo apreendido as reservas cambiais do Banco Central da Rússia, ameaçou apreender qualquer ouro russo a que pudesse deitar a mão, bem como impor sanções sem precedentes a indivíduos, empresas e instituições russas. Guerra financeira total!

Bem, não funcionou dessa forma. Os banqueiros centrais de todo o mundo assustaram-se ao saber que as suas reservas também poderiam ser confiscadas se se desviassem da “linha”. No entanto, a arrogante decisão da equipa Biden de tentar novamente o colapso da economia russa (a primeira foi em 2014) pode ainda vir a ser vista como um importante ponto de inflexão geopolítico.

A sua importância em termos geopolíticos pode mesmo, em última análise, equiparar-se ao fecho da ‘janela de ouro’ dos EUA por Nixon em 1971 – embora, desta vez, com os acontecimentos a apontarem completamente na direcção oposta.

As consequências do abandono do ouro por parte do Nixon foram nucleares. O sistema comercial baseado no petrodólar que dele nasceu permitiu à América “bombardear” o mundo com sanções e sanções secundárias – dando aos EUA a sua hegemonia financeira unipolar (depois de o militarismo dos EUA, como principal pilar de apoio da ordem global, ter ficado desacreditado na sequência da Guerra do Golfo de 2006).

Agora, apenas um mês depois, vemos na imprensa financeira artigos de que é o sistema financeiro ocidental e a moeda de reserva mundial que está em franco declínio, e não o sistema económico da Rússia.

Então, o que é que se está a passar?

O sistema pós-1971 evoluiu rapidamente de estar baseado numa matéria-prima – petróleo bruto – para uma moeda fiduciária que é uma “promessa” de pagar uma obrigação de dívida, e nada mais. Uma moeda respaldada por activos sólidos é uma garantia de que o reembolso irá ocorrer. Pelo contrário, um dólar de capital de reserva não está respaldado por nada tangível – apenas a “plena fé e crédito” da entidade emissora.

O que aconteceu é que o sistema fiduciário começou a sua extinção quando os “falcões” russófobos de Washington, estupidamente, começaram a lutar com o único país – a Rússia – que tem as matérias-primas necessárias para gerir o mundo, e para desencadear a mudança para um sistema monetário diferente – para um sistema que está ancorado em algo mais do que dinheiro fiduciário.

Bem, a primeira “golpe” no sistema – a sequela da guerra financeira ocidental contra a Rússia – foi simplesmente um caos nos mercados de matérias-primas, uma vez que os preços subiram astronomicamente. A Rússia é um super fornecedor global de produtos de base, e estava a ser cercada por sanções.

Depois, no início de Março, Zoltan Pozsar, que trabalhou anteriormente no Fed de Nova Iorque, e foi anteriormente conselheiro do Tesouro dos EUA e actualmente estratega do Credit Suisse, publicou um relatório de investigação no qual defende que o mundo está a caminhar para um sistema monetário em que as moedas são respaldadas por matérias-primas, em vez de serem apoiadas apenas pela “plena fé e crédito” de um emissor soberano.

Como uma das vozes mais respeitadas de Wall Street, Pozsar argumentou que este sistema monetário actual funcionava desde que os preços das matérias-primas oscilassem previsivelmente dentro de uma faixa estreita – ou seja, não sob tensão extrema (precisamente porque as matérias-primas são garantia para outros instrumentos de dívida). No entanto, quando todo o complexo das matérias-primas está sob tensão – como está agora – os disparatados preços das matérias-primas conduzem a um generalizado voto de “desconfiança” no sistema. E é a isso que estamos a assistir agora.

Em suma, a guerra financeira contra a Rússia deu ao Ocidente uma lição inequívoca de Moscovo de que as moedas mais duras não são o USD ou o EUR, mas antes o petróleo, o gás, o trigo, e o ouro. Sim, a energia, a alimentação e os recursos estratégicos são moedas.

Depois chegou o segundo golpe no sistema: A 28 de Março, a Rússia anunciou que colocava um limite ao preço do ouro. O seu Banco Central compraria ouro a um preço fixo de 5.000 rublos por grama – até, pelo menos, 30 de Junho (o final do 2º trimestre).

Um preço de 100 rublos por 1 dólar equivale a um preço de ouro de 1.550 dólares por onça, e uma taxa de câmbio Rublo/USD de cerca de 75, mas hoje em dia um rublo troca aproximadamente a 84 rublos por 1 dólar – (ou seja, são necessários mais rublos do que apenas 75 para comprar um dólar). Tom Luongo observou, contudo, que com o Banco Central a comprar ouro a uma taxa fixa, este compromisso dá um incentivo aos russos para manter poupanças em rublos, porque o rublo está a ser “fixado” a uma taxa subvalorizada relativamente a um preço de ouro aberto sobrevalorizado (a aproximadamente 1.936 dólares por onça, no momento em que escrevo).

Em resumo, o compromisso do Banco Central da Rússia põe em marcha uma dinâmica para trazer o Rublo de volta ao equilíbrio com o preço actual do ouro em dólares no mercado aberto. E pronto, ao contrário do esforço europeu-americano para fazer cair o valor cambial do rublo e causar uma crise, o rublo já está de volta ao seu nível anterior à guerra – e foi o dólar que caiu (vs. o rublo).

Mas reparem nisto: Se o valor do rublo subir ainda mais em relação ao dólar, (digamos de 100 para 96:1) – como resultado da força comercial das matérias-primas da Rússia – então o preço imputado do ouro atinge 1.610 dólares por onça. Ou, por outras palavras, o valor do ouro sobe.

Mas há ainda outro problema: Os europeus protestam ruidosamente que Putin tenha insistido que os “Estados não amigos” paguem as suas importações de gás em rublos (em vez de dólares ou euros) a partir de 31 de Março, mas Putin acrescentou uma cláusula estipulando que os europeus, em alternativa, poderiam pagar em ouro. (E outros Estados têm uma outra opção de pagar em bitcoins).

E aqui está a questão: se menos de 75 rublos equivalem a um dólar, os compradores estão a receber petróleo com desconto quando pagam em ouro. Talvez as grandes energéticas europeias não estejam interessadas, mas os comerciantes asiáticos estarão interessados em arbitrar e lucrar com os diferenciais de preços implícitos. E isso, por si só, é susceptível de forçar os mercados físicos de ouro a uma situação de escassez de oferta, que mais uma vez se traduzirá num aumento adicional do preço do ouro físico.

Um componente menos evidente dos gritos de dor europeus (“Não pagaremos em rublos”), é que os banqueiros centrais tentam manter o comércio de ouro num padrão apertado (através da manipulação do mercado de ouro em papel, de modo a não abalar os alicerces do sistema financeiro global).

Mas o que o Banco Central russo acaba de fazer é retirar ao Ocidente o papel de “fazedor de preços” do ouro, e a sua manipulação de preços. Entre eles, a Rússia e a China podem, portanto, controlar eficazmente o preço do ouro e do petróleo. Luongo conclui: “Estão prestes a mudar o denominador nos mercados cambiais globais de USD para ouro/petróleo (moeda de matérias-primas)”.

“Putin decepcionou o mundo facilmente com este anúncio. Ele poderia ter entrado e dito 8000 rublos por grama ou 2.575 dólares a onça e isso teria quebrado os mercados na sexta feira, ao vender o seu petróleo e gás com um desconto acentuado” – forçando assim um aumento do preço do ouro.

Genial, hein?

Ok, ok: que venha o coro trazer o refrão com os clichês habituais: Oh não; não a outra narrativa de “desdolarização! TINA – “Não há alternativa ao dólar como moeda de reserva”.

Muito bem. Todos sabemos que todo o ouro ao valor actual é demasiado pequeno no valor total para sustentar uma moeda de comércio ou comércio global totalmente respaldada pelo ouro. E, a propósito, não se trata de acabar com o dólar como um instrumento de comércio. Não, trata-se de sinalizar uma nova direcção de viagem.

O argumento de Pozsar é mais subtil: está a desenrolar-se uma crise. Uma crise de matérias-primas. As matérias-primas são garantias, e as garantias são dinheiro, e esta crise tem a ver com o crescente fascínio da “moeda vinculada às matérias-primas” em detrimento do dinheiro fiduciário. Em períodos de crise bancária, os bancos estão relutantes em jogar o jogo interno porque não confiam na moeda fiduciária como uma verdadeira garantia. Recusam-se então a emprestar dinheiro aos seus pares bancários. Sempre que isto ocorre, os Bancos Centrais têm de imprimir mais dinheiro para “lubrificar” suficientemente o sistema para que este funcione. Isto, por sua vez, desvaloriza ainda mais a moeda fiduciária, na qual o sistema está baseado.

Mas se a moeda emitida pelos Governos e impressa pelos Bancos Centrais for apoiada por activos duros, este problema é evitado. Neste sistema, a contraparte para transacções comerciais ou de financiamento teria a opção de exigir o pagamento no activo duro ou activos que suportam a moeda – muito provavelmente ouro ou possivelmente um activo de matéria-prima pré-acordado. Recorde-se que a moeda fiduciária nada mais é do que um instrumento de dívida não garantido da entidade emissora – um instrumento que vimos poder ser ‘cancelado’ por capricho do emissor – o Tesouro dos EUA.

Isto torna o esquema de “pagar em rublos” também mais compreensível: Qualquer esquema viável de “pagamento em rublos” terá compradores de gás que vão aos bancos russos para vender dólares ou euros ou libras esterlinas ao banco, para que este compre rublos para oferecer à Gazprom. Isto terá tanto o efeito de aumentar o valor do rublo como meio de comércio, como também pode mitigar a exposição a mais sanções financeiras, tornando as instituições russas no local das operações de pagamento.

Quanto à “direcção da viagem”? “Após a actual história de confiscação das reservas em dólares”, Sergei Glazyev – supervisionando o planeamento da Comissão Económica Eurasiática para o futuro monetário – disse sem rodeios: “Penso que nenhum país vai querer utilizar a moeda de outro país como moeda de reserva. Portanto, precisamos de um novo instrumento”. “Nós (a Comissão Económica da Eurásia) estamos actualmente a trabalhar num tal instrumento, que pode tornar-se primeiro um componente médio ponderado destas moedas nacionais”, disse ele. “Bem, a isto temos de acrescentar, do meu ponto de vista, matérias-primas negociadas em bolsa: não só ouro, mas também petróleo, metal, cereais e água: Uma espécie de pacote de matérias-primas – com um sistema de pagamento baseado em modernas tecnologias de cadeia de blocos digitais”.

“Por outras palavras, a era da globalização liberal terminou. Diante dos nossos olhos, está a formar-se uma nova ordem económica mundial – uma ordem integral, em que alguns estados e bancos privados perdem o seu monopólio privado sobre a emissão do dinheiro”.

__________________

O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leave a Reply