UCRÂNIA, A CAMINHAR PARA UM NOVO APOCALYPSE NOW – I – O HUMANISMO MILITAR: NO CORAÇÃO DAS TREVAS NEOLIBERAIS NOS BALCÃS, de DENNIS RICHES

 

Military Humanism: Heart of Neoliberal Darkness in the Balkans, por Dennis Riches

Lit by Imagination, 18 de Fevereiro de 2017

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota 

Revisão de João Machado

 

 

Date: 2017-02-18 autor:  Dennis Riches

Há alguns pontos positivos na crise política americana que começou a sério em 20 de Janeiro de 2017. Mais americanos, bem como outros habitantes deste planeta, estão a olhar para além da política interna e da política de identidade e a compreender que a crise tem as suas raízes no papel que a América tem desempenhado no mundo na era moderna. Poder-se-ia voltar à fundação das colónias americanas para encontrar provas de quando o caminho errante foi escolhido, mas houve momentos cruciais em todas as épocas desde então que lançaram luz sobre a forma como a América deu passos sucessivos mais profundos nos pântanos que resultam do facto de ser uma potência imperial.

Um desses momentos cruciais foi no final dos anos 90, quando a América e a NATO promoveram o conceito de “intervenção humanitária” e o de “direito de proteger” como uma razão para assegurar que o mundo pós-soviético aderisse às formas ocidentais de dominação económica e militar. Esta política pode ter sido parcialmente impulsionada pelo que foi entendido como uma incapacidade de intervir no genocídio ruandês de 1994. A narrativa padrão diz que o Presidente Clinton  esteve  tragicamente “distraído” durante esse período por uma certa  aventura  sexual, e que o atraso no reconhecimento do genocídio e na resposta rápida poderia ter sido evitado se o Ocidente tivesse estado um pouco  mais atento ao seu papel destinado a manter a ordem e a usar a sua força militar para evitar atrocidades. Esta narrativa ignora convenientemente os papéis desempenhados pela França e pelos Estados Unidos no armamento de ambos os lados do conflito ruandês em anos anteriores, uma vez que estes procuravam aumentar a sua influência na África Central. Uma intervenção contra da França, os Estados Unidos, ou ambos alguns anos antes, poderia ter evitado o genocídio, mas ainda hoje o papel do conflito franco-americano/britânico pela dominação na região é raramente mencionado como fator causal. Enterrado pela narrativa oficial está o facto de que a suposta guerra civil no Ruanda foi uma invasão estrangeira levada a cabo pelo Uganda e pelo seu exército de Tutsis exilados (o RPF), ambos apoiados pelos Estados Unidos. A invasão envolveu numerosas atrocidades contra a população hutu. Destabilizou o país e preparou o palco para as atrocidades que foram levadas a cabo contra a população local tutsi em 1994.[1] Assim, a falsa narrativa do Ruanda gerou outra sobre a ex-Jugoslávia. À medida que a década de guerras decorria, os EUA e a NATO controlavam a perceção de quem eram os maus da fita e decidiram intervir.

Estas ações fizeram muito para criar os problemas do presente. A intervenção “humanitária” tornou-se um mau hábito, como evidenciado nas agressões subsequentes contra o Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria, entre outras ações de menor envergadura em dezenas de países. O ataque à Sérvia também inflamou as tensões com a Rússia, que tinha uma história de laços culturais e políticos com a Sérvia.

Boris Ieltsin tinha sido o caniche obediente do Ocidente durante a década de 1990, acompanhando todas as reformas que empobreceram os russos enquanto abriam o país para ser explorado pelos oligarcas domésticos e pelo mercado livre global.

Na altura das eleições de 1996, Ieltsin era menos popular do que Estaline, mas com uma mistura de fraude eleitoral, apoio financeiro americano e interferência eleitoral (sob a forma de consultores de campanha americanos e especialistas em relações públicas), ele conseguiu arrancar a vitória das mandíbulas da derrota. No entanto, quando o Ocidente interveio na Sérvia, finalmente compreendeu a perfídia de com quem eles tinham estado a lidar. E a pergunta natural era: “Seremos nós os próximos? No final de 1998, a esperança de reformas financeiras foi finalmente esmagada pela enorme “crise do rublo” que tinha levado à falência à  Rússia e a tinha deixado tão instável que havia sérias preocupações de que passaria por um segundo choque de desintegração, ecoando o colapso da União Soviética oito anos antes. Boris  Ieltsin estava doente e com as capacidades mentais diminuídas  devido a anos de alcoolismo, mas deve ter compreendido que o país precisava de um tipo diferente de líder que levasse o país por um caminho mais independente.

Enquanto os EUA e os países da NATO   denigrem  agora o regime autoritário de Putin, não se apercebem de que a Rússia moderna foi feita nos EUA durante os anos de Ieltsin. Clinton apoiou Ieltsin quando Ieltsin trouxe tanques para disparar sobre o parlamento que estava prestes a impugná-lo. Tente imaginar, agora que o apoio político de Trump está a evaporar-se e ele está ameaçado de impeachment, que ele encontraria alguns generais para o apoiar num golpe contra o Congresso, e então ele traria artilharia pesada para disparar sobre os congressistas que estavam fortemente armados e fechados dentro do edifício do Capitólio. Imagine que ele conseguia e recompensava os generais leais com cargos poderosos no novo governo – um governo que foi dotado de uma nova constituição que concentrava mais poder no ramo executivo. Imagine que tudo isto foi apoiado e financiado pela Rússia, tanto na altura como três anos mais tarde, quando Trump estava desesperado por ser reeleito. Este cenário aconteceu na Rússia nos anos 90, com o apoio americano. Depois de Ieltsin ter consolidado o seu poder, Clinton apoiou-o novamente quando enriqueceu ainda mais os oligarcas para roubar as eleições de 1996 [2].

Depois de tudo isto, quando as esperanças de uma democracia vibrante tinham sido extintas, Ieltsin escolheu o seu sucessor, Vladimir Putin. Apesar das deficiências da democracia russa, Putin nunca precisou da ajuda americana para ser reeleito. Ele nunca foi, como Ieltsin, menos popular do que Estaline. Em certa medida as suas vitórias devem-se às deficiências da democracia na Rússia, mas uma razão para a falta de democracia é que o governo está determinado a reprimir qualquer partido ou organização que aceite a assistência de entidades estrangeiras. Consegue imaginar isso? Depois das experiências dos anos 90, eles não gostam que os estrangeiros se imiscuam nas suas eleições. No entanto, apesar da constante interferência, Putin ganhou eleições e conseguiu impedir que comunistas e nacionalistas extremistas chegassem ao poder. Apesar das fantasias americanas de que um partido neoliberal e pró-ocidental poderia ser eleito, os únicos rivais viáveis são mais antiamericanos do que Putin [3]   O maior pecado de Putin aos olhos americanos foi ser sóbrio, inteligente e competente o suficiente para ter reinado  sobre os oligarcas, melhorado a cobrança de impostos, impedido uma maior desintegração do país e melhorado a vida dos russos [4].  Estas são, sem dúvida, as mesmas razões pelas quais Putin é vilipendiado no Ocidente. Todos os russos conhecem agora a regra : amam-nos quando somos fracos, odeiam-nos quando somos fortes.

Toda esta história sublinha a importância de compreender os anos 90 como a época em que a ordem mundial neoliberal e a fé na intervenção humanitária se estabeleceram de uma maneira bem firme. A entrevista abaixo entre o jornalista sérvio Danilo Mandic e Noam Chomsky cobre em detalhe a campanha de propaganda que precedeu o bombardeamento da Sérvia em 1999. Na altura da entrevista, em 2006, muito antes dos ataques à Líbia e à Síria, Chomsky salientou: “Não se pode encontrar em parte alguma da corrente dominante uma sugestão de que é errado invadir outro país, que se invadir  outro país, tem de pagar reparações, tem de se retirar e  a liderança do invasor tem de ser punida”.

Encontrei uma transcrição desta entrevista noutro website, limpei vários erros e criei um ficheiro de legendas em inglês melhorado para o vídeo, o que deverá compensar a qualidade de áudio degradada.

On the NATO Bombing of Yugoslavia[5]

Noam Chomsky entrevistado por Danilo Mandic

RTS (Radio Televizija Srbije)  25 de Abril de 2006

Danilo Mandic: Professor Noam Chomsky, na sua, se não estou enganado, primeira aparição na televisão para os meios de comunicação sérvios, muito obrigado por estar connosco.

Noam Chomsky: Estou contente por estar consigo.

DM: O mês passado marcou o sétimo aniversário do início do bombardeamento da Jugoslávia. Porque é que a NATO travou essa guerra? Ou devo antes dizer porque é que os Estados Unidos travaram essa guerra?

NC: Na verdade, temos pela primeira vez um comentário muito autoritário sobre isso do mais alto nível da administração Clinton, algo que antes apenas  se poderia  suposto mas agora pode afirmar-se. Este comentário  é de Strobe Talbott, que estava encarregado da… Ele dirigiu o Comité Conjunto de Inteligência do Pentágono/Departamento de Estado sobre a diplomacia durante todo o caso, incluindo o bombardeamento, pelo que se pode considerar como o topo da administração Clinton. Acabou de escrever um prefácio para um livro do seu Diretor de Comunicações, John Norris, e nele  diz que se quer realmente compreender qual era o pensamento do topo da administração Clinton, este é o livro que deve ler. Veja o livro de John Norris e o que ele diz é que o verdadeiro propósito da guerra nada teve a ver com a preocupação pelos albaneses kosovares. Foi porque a Sérvia não estava a levar a cabo as reformas sociais e económicas necessárias, ou seja, era o último canto da Europa que não se tinha subordinado aos programas neoliberais geridos pelos EUA, pelo que tinha de ser eliminada. Isso é escrito ao mais alto nível. Mais uma vez, poderíamos tê-lo adivinhado, mas nunca o vi dizer isso antes: que não era por causa dos albaneses do Kosovo, isso já nós sabíamos..

Citação de Strobe Talbott, p. xxiii do prefácio do livro de John Norris Collision Course: NATO, Russia and  Kosovo:

Enquanto as nações da região procuravam reformar as suas economias, mitigar as tensões étnicas e alargar a sociedade civil, Belgrado parecia deliciar-se em avançar continuamente na direção oposta… Foi a resistência da Jugoslávia às tendências mais gerais de reforma política e económica – e não a situação dos albaneses kosovares – que melhor explica a guerra da NATO.

E este é um ponto de fanatismo religioso no Ocidente. Não se pode falar disso, por razões interessantes relacionadas com a cultura ocidental, mas existe apenas uma documentação esmagadora, uma documentação impecável. Duas grandes compilações do Departamento de Estado a tentar justificar a guerra, os registos da OSCE, os registos da NATO, os registos do KIM Monitor, um longo inquérito parlamentar britânico que conduziu à mesma coisa. Todos eles mostraram a mesma coisa – e mais ou menos o que nós sabíamos. Era um lugar horrível. Havia ali atrocidades.

DM: Dado este claro registo documental, quero perguntar-lhe sobre a opinião da elite intelectual, aquilo a que chama… Nos Estados Unidos. … nos Estados Unidos e no Ocidente em geral, porque ao revê-lo, ficaria com a impressão – seria perdoado por imaginar que cada crítico da intervenção da NATO  era uma de duas coisas: ou era um “simpatizante de Milosevic” ou alguém que não se importa com o genocídio. O que é que isto significa?

NC: Antes de mais nada, é uma característica comum da cultura intelectual. Um bom crítico dos Estados Unidos, Harold Rosenberg, descreveu uma vez os intelectuais como uma “rebanho  de mentes independentes”. Eles pensam que são muito independentes, mas funcionam como um rebanho, o que é verdade; quando existe uma linha partidária, é preciso aderir a ela, e a linha partidária é sistemática. A linha partidária é a subordinação ao poder do Estado e à violência do Estado.

Agora é-lhe permitido criticá-lo, mas com base em motivos muito restritos. Pode criticá-lo porque não está a funcionar, ou por algum erro ou intenções benignas de que se desviaram ou algo assim, como vê neste momento na guerra do Iraque, uma tonelada de debate sobre a guerra do Iraque, mas dê uma vista de olhos – é muito semelhante ao debate no Pravda durante a invasão do Afeganistão. Na verdade, falei recentemente disto a um repórter polaco e perguntei-lhe se ele tinha estado a ler o Pravda. Ele apenas se riu e disse que sim, é a mesma coisa. Agora leia o Pravda nos anos 80, é: “O trabalho dos soldados russos. Muitos estão a ser mortos, e agora há estes terroristas que nos impedem de levar justiça e paz aos afegãos.  É claro que não os invadimos. Interviemos para os ajudar, a pedido do governo legítimo. Os terroristas estão a impedir-nos de fazer todas as coisas boas que queríamos fazer, etc.” Li documentos japoneses de contrarrevolta  da segunda guerra mundial, da década de 1930. Era o mesmo: “Estamos a tentar trazer-lhes um paraíso terrestre, mas os bandidos chineses estão a impedi-lo”. Na verdade, não conheço nenhuma exceção na história. Se voltarmos ao imperialismo britânico, é a mesma coisa. Mesmo pessoas da mais alta integridade moral, como John Stuart Mill, falavam de como temos de intervir na Índia e conquistar a Índia porque os bárbaros não se conseguem controlar a si próprios. Há atrocidades. Temos de lhes trazer os benefícios do domínio britânico e da civilização e assim por diante.

Agora nos Estados Unidos passa-se a mesma coisa. Agora tomemos o bombardeamento do Kosovo. Este foi um acontecimento extremamente importante para os intelectuais americanos e a razão disso teve a ver com o que se estava a passar durante os anos 90. E os anos 90 tem a ver com todo o Ocidente, não apenas com  os Estados Unidos. A  França e a Inglaterra foram piores. É provavelmente o ponto mais baixo da história intelectual para o Ocidente, penso eu. Foi como uma banda desenhada a imitar uma sátira do estalinismo, literalmente. Veja-se o The New York Times, a imprensa francesa, a imprensa britânica. Estava tudo cheio de discursos  sobre como existe uma “revolução normativa” que varreu o Ocidente, pela primeira vez na história, um Estado, nomeadamente os Estados Unidos, “o líder do mundo livre”, está a agir por  “puro altruísmo”. A política de Clinton entrou numa “fase nobre”, com um “brilho de santidade”, e assim por diante. Estou a citar os liberais. Agora, esta particular charada humanitária foi…

DM: Isso é pré-Kosovo.

NC: Certo. E foi específico em certo sentido porque se baseava no argumento  de que se estava a impedir o genocídio.

DM: Deixe-me apenas ler algo que disse numa entrevista por volta da altura do atentado. Disse: “o termo ‘genocídio’, tal como aplicado ao Kosovo, é um insulto às vítimas de Hitler”. Na verdade, é revisionista ao extremo”. O que quis dizer com isso?

NC: Antes de mais nada, deixe-me apenas precisar o momento. As coisas que tem vindo a citar são de finais dos anos 90. Antes do Kosovo. Agora, precisavam de algum evento para justificar esta autoadulação em massa, OK? Apareceu o Kosovo, felizmente, e por isso agora tiveram de parar com  o genocídio. O que foi o genocídio no Kosovo?

Sabemos pela documentação ocidental o que isto era. No ano anterior ao atentado, de acordo apenas com as fontes ocidentais, cerca de 2.000 pessoas foram mortas. Os assassínios eram repartidos.  Muitos deles deram-se , de facto, de acordo com o governo britânico (que era o elemento mais belicoso da Aliança)… até Janeiro de 1999, a maioria dos assassínios foram perpetrados pelos guerrilheiros do UCK que vinham, como diziam, para tentar incitar uma resposta sérvia severa, que receberam, a fim de apelar aos humanitários ocidentais para bombardearem. Sabemos pelos registos ocidentais que nada mudou entre Janeiro e Março. De facto, até 20 de Março, nada se modificou. No dia 20 de Março indica-se  um aumento dos ataques do UCK. Mas, embora tenha sido feio, pelos padrões internacionais era quase invisível, infelizmente, e foi muito repartido. Se os britânicos não estiverem a mentir, a maioria [dos ataques] provinha dos guerrilheiros do UCK. E como mais tarde se revelou, o UCK estava também a receber apoio financeiro e militar. Estavam a ser apoiados pela CIA durante esses meses. E chamar a isso genocídio é realmente insultar as vítimas do holocausto.

Os intelectuais ocidentais estavam a autoelogiar-se pelo seu magnífico humanitarismo, enquanto atrocidades muito piores aconteciam mesmo do outro lado da fronteira, na Turquia. Isso é dentro da NATO, não nas fronteiras da NATO. Diziam: “Como podemos permitir isto nas fronteiras da NATO” mas entretanto na Turquia tinham expulsado provavelmente vários milhões de curdos das suas casas, destruído cerca de 3.500 aldeias, devastado todo os lugares, foram exercidas todas as formas concebíveis de tortura e massacre que se possa imaginar, tinha-se morto  um número incalculável de pessoas. Não contamos as nossas vítimas, dezenas de milhares de pessoas. Como foram capazes de o fazer? A razão é  que estavam a receber 80% das suas armas das mãos  de Clinton, e à medida que as atrocidades aumentavam, o fluxo de armas aumentava. De facto, num só o ano, 1997, Clinton enviou mais armas para a Turquia do que em todo o período da Guerra Fria em conjunto! Até à contrainsurreição. Isso não foi noticiado no Ocidente. Não se denuncia os seus próprios crimes. Isso é essencial.

E mesmo no meio de tudo isto, “Como podemos tolerar que um par de milhares de pessoas sejam mortas no Kosovo, guerrilheiros e outras pessoas  e…? De facto, o 50º Aniversário da NATO teve lugar mesmo no meio de tudo isto. E houve lamentações sobre o que se estava a passar do outro lado da fronteira da NATO. Nem uma  só palavra sobre as coisas muito piores que se estavam a passar dentro das fronteiras da NATO, graças ao fluxo massivo  de armas provenientes dos Estados Unidos. Este é apenas um caso.

Coisas comparáveis estavam a acontecer em todo o lado, com os EUA e a Grã-Bretanha a apoiá-los, ou mesmo muito piores, mas era preciso que estivéssemos concentrados nisto. Esse era o tema para “o rebanho de mentes independentes”. Desempenhou um papel crucial na sua autoimagem porque tinham atravessado um período de elogios a si próprios pela sua magnificência na sua “revolução normativa” e na sua “fase nobre”, etc., etc., pelo que foi uma dádiva de Deus, e assim não se podia fazer perguntas sobre isso.

A propósito, o mesmo aconteceu na fase anterior  à  guerra dos Balcãs. Foi terrível, muito terrível  mesmo.  No entanto, olhemos  para a cobertura dos media.  Por exemplo, houve um incidente famoso que remodelou  completamente a opinião ocidental, e  este incidente  foi a fotografia do homem magro por detrás do arame farpado. Uma fotografia fraudulenta. O homem magro por detrás do arame farpado. Assim foi Auschwitz e “não podemos voltar a ter Auschwitz”. Os intelectuais enlouqueceram e os franceses mostravam-se nas televisões em sucessivas e habituais declarações sobre o tema. Foi investigado, e cuidadosamente investigado.

 

De facto, foi investigado pelo principal especialista ocidental no assunto, Philip Knightly, que é um analista mediático altamente respeitado e a sua especialidade é o fotojornalismo. Ele é provavelmente o analista ocidental mais famoso e mais respeitado nesta área. Ele fez uma análise detalhada do assunto. E determinou que eram provavelmente os repórteres que estavam por detrás do arame farpado, e o local era feio, mas era um campo de refugiados. As pessoas podiam sair se quisessem, e perto do homem magro estava  um homem gordo, e assim por diante. Bem, havia um pequeno jornal em Inglaterra, provavelmente com três pessoas, chamado LM[1], em que foi feita  uma crítica, e os britânicos (que não têm o menor conceito de liberdade de expressão), geriram esta fraude total… Uma grande empresa, a ITN, uma grande empresa  de meios de comunicação social, tinha divulgado isto,  por isso a grande empresa dos media  processou o pequeno jornal por difamação.

(Nota do Tradutor) Chamamos a atenção dos nossos leitores para o seguinte, testemunhado no Tribunal de Haia pelo jornalista:

: The picture that came to symbolise the Bosnian war has been condemned by an expert witness to the UN War Crimes Tribunal at The Hague. German journalist Thomas Deichmann says that the image of an emaciated Bosnian Muslim caged behind barbed wire was created by ‘camera angles and editing’.

The picture provoked an international outcry and was seen by much of the world as proof that the Bosnian Serbs were running Nazi-style ‘concentration camps’. But Deichmann, in an exclusive article published in February’s LM magazine, insists that ‘the image is misleading and has fooled the world’.

The picture of Fikret Alic was taken from videotape shot at Trnopolje on 5 August 1992 by an award-winning British television team led by Penny Marshall (ITN) with her cameraman Jeremy Irvin, accompanied by Ian Williams (Channel 4) and Guardian reporter Ed Vulliamy. Deichmann has revisited Trnopolje and has also seen unused video footage that shows how this powerful image was created.

He found that:

  • there was no barbed wire fence surrounding the Trnopolje camp.

  • the camp was a collection centre for refugees, not a prison.

  • the refugees in the picture were not surrounded by barbed wire. The barbed wire surrounded the news team who were filming from inside a small enclosure next to the camp.

Thomas Deichmann says:

‘I am shocked that over the past four and a half years, none of the journalists involved has told the full story about that barbed wire fence which made such an impact on world opinion. The photograph has been taken as proof that Trnopolje was a Nazi-style concentration camp, but the journalists knew that it was no such thing.’

Agora as leis britânicas sobre a calúnia são absolutamente atrozes. A pessoa acusada tem de provar que o que está a denunciar não foi feito com malícia, e não pode provar isso. Assim, e, de facto, quando se tem uma enorme empresa com uma bateria de advogados e assim por diante a levar a cabo um processo contra as três pessoas num escritório, que provavelmente não têm o dinheiro no bolso, é óbvio o que vai acontecer, especialmente sob estas grotescas leis de calúnia. Portanto, sim, conseguiram provar… O pequeno jornal não conseguiu provar que não foi feito por malícia. Eles foram postos fora de serviço, faliram. Havia apenas euforia na imprensa liberal britânica de esquerda. Depois de terem posto o jornal fora de circulação. Sob este caso jurídico absolutamente grotesco das leis britânicas, os jornais liberais de esquerda, como The Guardian, estavam apenas num estado de euforia sobre esta maravilhosa conquista. Tinham conseguido destruir um pequeno jornal porque questionava alguma imagem que os grandes media tinham apresentado e estavam muito orgulhosos de si próprios pelo que tinham feito, o que provavelmente  teria sido  mal compreendido ou mal interpretado.

Bem, Philip Knightly, escreveu uma crítica muito dura aos meios de comunicação britânicos por se comportarem desta forma, e tentou ensinar-lhes uma lição elementar sobre a liberdade de expressão. Acrescentou também que, provavelmente, a fotografia foi mal interpretada. Ele não conseguiu que fosse publicada. Foi então que apareceu o Kosovo. Era a mesma coisa –  não se pode dizer a verdade sobre isso.

Já passei por muitíssimas reportagens sobre isto, e quase invariavelmente inverteram a cronologia. Houve atrocidades, mas após o bombardeamento. A forma como é apresentada é: as atrocidades tiveram lugar e depois tivemos de bombardear para evitar o genocídio – apenas é invertida a situação.

DM: Deixe-me questioná-lo  sobre a condução da guerra propriamente dita. Mencionou The Guardian. É interessante porque você mesmo teve recentemente uma experiência desagradável em que The Guardian  o citou mal… sobre Srebrenica. Citou-o mal para fazer parecer que estava a questionar o massacre de Srebrenica. Mas voltemos  à condução da guerra propriamente dita. Tivemos o bombardeamento de 1999.

NC: O bombardeamento, que também foi ignorado, ou seletivamente coberto pelos meios de comunicação social ocidentais em geral. Agora, a Amnistia Internacional, entre outros, relatou que “a NATO cometeu graves violações das regras da guerra durante a sua campanha”, numerosos grupos de direitos humanos concordam e documentam vários crimes de guerra. Um deles teve o seu aniversário há dois dias, quando a Rádio Televisão Sérvia foi bombardeada, a televisão nacional, a sua sede, matando dezasseis pessoas. Em primeiro lugar, porque é que estes crimes não foram completamente comunicados e, em segundo lugar, existem quaisquer perspetivas de se assumir qualquer responsabilidade por estes crimes?

Eu diria que os crimes foram denunciados, mas foram aplaudidos. Não é que fossem desconhecidos. O bombardeamento da estação de rádio: sim, foi noticiado assim como o da estação de televisão, mas está bem porque a estação de televisão foi descrita como um meio de propaganda, por isso temos o direito de bombardeá-la. Isso acontece a toda a hora. Aconteceu apenas no ano passado, em Novembro de 2004. Um dos piores crimes de guerra no Iraque foi a invasão de Fallujah. Isso é uma coisa, mas houve uma coisa pior. A invasão de Fallujah foi um pouco semelhante a Srebrenica, se olharmos, mas… Eles invadiram Fallujah. A primeira coisa que as tropas invasoras fizeram, tropas americanas, foi tomar conta do hospital geral e atirar os doentes para o chão. Foram retirados das suas camas, colocados no chão, mãos atadas atrás das costas, médicos atirados para o chão, mãos atrás das costas. Havia uma fotografia na primeira página do The New York Times. Eles disseram que era maravilhoso.

DM: A Convenção de Genebra proíbe os hospitais de serem…

NC: Foi uma grave violação das Convenções de Genebra, e George Bush deveria enfrentar a pena de morte por isso, mesmo ao abrigo da lei dos EUA. Mas foi apresentado sem qualquer menção às Convenções de Genebra, e foi apresentado como uma coisa maravilhosa porque o hospital geral de Fallujah era um “centro de propaganda”, ou seja, tratava-se de publicar o número de vítimas e por isso era correto levar a cabo um crime de guerra em massa. Bem, o bombardeamento da estação de televisão foi apresentado da mesma forma. De facto, como certamente se recordarão, houve uma oferta da NATO de que não o bombardeariam, se concordassem em transmitir seis horas de propaganda da NATO. Bem, isto é considerado bastante correto. Como se pode lidar com isto? Um grupo de juristas internacionais recorreu ao Tribunal Internacional para a Jugoslávia. Apresentaram um resumo, dizendo que deveriam analisar os crimes de guerra da NATO. O que eles citaram foram relatórios da Human Rights Watch, Amnistia Internacional e admissões do comando da NATO. Foi o que eles apresentaram, a…. Estou a esquecer-me, mas penso que era Karla Del Ponte na altura. Ela disse que não iria olhar para aquilo,  em violação das leis do Tribunal, porque “tinha fé na NATO”. E essa foi a resposta. Bem, algo mais interessante aconteceu depois disso: A Jugoslávia trouxe um caso para o Tribunal de Guerra.

DM: …. que também o rejeitou.

NC: O Tribunal aceitou-o e, de facto, deliberou durante um par de anos. Pode ainda estar a ser deliberado, mas o que é interessante é que os EUA se escusaram-se do caso e o Tribunal aceitou a excusa. Porquê? Porque a Jugoslávia tinha mencionado a Convenção sobre o Genocídio e os EUA assinou a Convenção sobre o Genocídio, após quarenta anos. Ratificou-a, mas ratificou-a com reserva, dizendo “inaplicável aos Estados Unidos”. Por outras palavras, os Estados Unidos têm, portanto, o direito de cometer genocídio, e foi esse o caso que o Departamento de Justiça dos EUA do Presidente Clinton levou ao Tribunal Mundial e o Tribunal teve de concordar. Se um país não aceita a jurisdição do Tribunal Mundial, tem de ser excluído, pelo que os EUA foram excluídos do julgamento, com o fundamento de que se concede a si próprio o direito de cometer genocídio. Acha que isto foi relatado algures?

DM: O Tribunal Mundial, no entanto, dispensou-se de instruir   o caso julgando a ilegalidade da guerra, com o fundamento de que a Jugoslávia não era membro de pleno direito das Nações Unidas na altura em que o caso foi levado ao…

NC: Durante vários anos estiveram a deliberar, mas essa é a sequência. Alguma destas coisas é relatada? Pode perguntar aos seus amigos em Princeton. Pergunte na faculdade. Eles provavelmente lembram-se do bombardeamento, da captura do Hospital Geral em Fallujah, mas houve algum comentário a dizer que se tratou de um crime de guerra?

DM: O que me impressionou foi que compararam o massacre de Srebrenica com a invasão de Fallujah. Porquê?

NC: Porque há semelhanças. No caso de Srebrenica, mulheres e crianças foram levadas para fora e depois deu-se  o massacre. No caso de Fallujah, as mulheres e as crianças foram mandadas embora. Elas não foram levadas para fora. Foram mandadas embora, mas os homens não foram autorizados a sair, e depois veio o ataque. De facto, verificou-se que as estradas para fora estavam bloqueadas. Bem, nem todas as coisas. Não é a mesma história em tudo , mas essa parte é semelhante.

Na verdade, mencionei isso algumas vezes. Tempestades de protesto, histeria. A propósito, este caso do Guardian – parte dele foi uma fraude total, por parte dos editores, e não do repórter. Culparam o repórter, mas foram os editores. Uma outra coisa que os enfureceu foi que  me perguntaram  sobre o homem magro por detrás do arame farpado. Não será isso uma atrocidade horrível? Eu disse: “Bem, não é certo que estivesse correto”. OK, isso levou à histeria. Foi quando Philip Knightly tentou intervir para apresentar mais uma vez a sua análise, e mais uma vez a sua crítica aos meios de comunicação social não passou, não conseguiu. Ele é uma pessoa muito proeminente e altamente prestigiada. Não se pode quebrar as fileiras. Isso não é tolerado. Temos sorte. Não temos censura. É uma sociedade livre, mas a autocensura é esmagadora.

Na verdade, Orwell escreveu uma vez sobre isto, em algo que ninguém leu. Todos leram A Quinta dos Animais e quase ninguém leu a introdução a esta obra.

DM: Não publicada.

NC: Saiu nos seus trabalhos não publicados, trinta anos mais tarde. Nela, o que ele disse é que a Quinta dos Animais  é uma sátira de um estado totalitário, mas ele disse que a Inglaterra livre não é muito diferente. Na Inglaterra livre, as ideias impopulares podem ser suprimidas sem o uso da força, e ele deu exemplos. É muito semelhante aqui e agora. E não importa quão extremas elas sejam. A invasão do Iraque é um exemplo perfeito. Não há… não se consegue encontrar em parte alguma da corrente principal uma qualquer sugestão de que é errado invadir outro país, que se se invadiu outro país, tem de se pagar reparações,      que tem de se retirar e que os lideres do país devem ser punidos. Não sei se alguma vez leu os Acórdãos de Nuremberga, mas depois dos Acórdãos de Nuremberga, o Procurador Geral da República, Juiz Jackson, fez declarações muito, muito eloquentes sobre como nós estávamos a condenar estas pessoas à morte pelos crimes que cometeram, são crimes que são puníveis quando alguém os comete, incluindo quando nós os cometemos. Temos de estar à altura disso. Ele disse: “Estamos a entregar aos arguidos um cálice envenenado, e se bebermos deste cálice envenenado, temos de ser tratados da mesma forma”. Não se pode ser mais explícito!

Também definiram a agressão. A agressão foi definida em termos que exactamente se aplicam absolutamente e sem exceção, não apenas à invasão do Iraque, mas a todo o tipo de outras invasões, no Vietname e muitas outras. Na verdade, mesmo a guerra terrorista contra a Nicarágua cai tecnicamente sob o crime de agressão, tal como definido em Nuremberga.

DM: Será que o bombardeamento da Jugoslávia pela NATO?

NC: Sim. E isso nem sequer é questionado. De facto, houve uma chamada Comissão de Inquérito Independente sobre o atentado bombista no Kosovo, liderada por um muito respeitado jurista sul-africano Goldstone- e concluíram que o atentado foi, nas suas palavras “ilegal mas legítimo”. Ilegal torna-o um crime de guerra, mas eles disseram que era legítimo porque era necessário pôr fim ao genocídio. E depois vem a inversão habitual da história. Na verdade, o Juiz Goldstone, que é uma pessoa respeitável, reconheceu mais tarde que as atrocidades vieram depois do bombardeamento, e que eram, além disso, as consequências antecipadas do bombardeamento. Reconheceu isso numa palestra, uma palestra Morgenthau em Nova Iorque, há alguns anos atrás. Ela disse: “Bem, no entanto, podemos confortar-nos com o facto de que a Sérvia estava a planeá-las de qualquer forma”, e a prova de que as estavam a planear é – adivinhe o quê – a “Operação Ferradura”, uma provável fabricação dos serviços secretos que foi divulgada após o bombardeamento. Portanto, mesmo que fosse verdade, não teria importância. E além disso, mesmo que isso fosse verdade, era um plano de contingência. Israel tem um plano de contingência para expulsar todos os palestinianos da Cisjordânia se houver um conflito, então isso significa que o Irão tem o direito de bombardear Israel? Os EUA têm planos de contingência para invadir o Canadá. OK, então isso significa que todos têm o direito de bombardear os Estados Unidos? Essa é a última gota de justificação da parte de uma pessoa respeitável. Mas para o “rebanho de mentes independentes” isso simplesmente não importa. O bombardeamento foi devido aos seus “altos valores”, e à sua “nobreza”, e foi para acabar com o genocídio. Se disser mais alguma coisa, recebe uma torrente de vilipêndios e abusos.

Mas não se trata apenas desta questão. Está em todas as questões. Portanto, tente trazer à baila a ideia… Pegue, digamos, na Guerra do Vietname. Já passou muito tempo, houve uma enorme quantidade de bolsas de estudo, toneladas de documentação. Os EUA rebentaram com o país.

DM: Deixe-me só interrompe-lo. Lamento, mas não teremos tempo para falar disso. Gostaria de lhe perguntar sobre alguns dos atuais desenvolvimentos que estão a ser utilizados novamente para fabricar muitas destas questões. Slobodan Milosevic morreu no mês passado. Qual é o significado desta  morte na sua opinião?

NC: Milosevic cometeu muitos crimes, não era uma pessoa simpática, era uma pessoa terrível, mas as acusações contra ele nunca teriam aguentado. Foi primeiro acusado pelos  acontecimentos no Kosovo. A acusação foi emitida mesmo no meio dos bombardeamentos, o que só  por si a anula. Foram utilizados britânicos… Admitidamente  usaram os serviços secretos britânicos e norte-americanos no meio dos bombardeamentos. Não se pode levar isto a sério. No entanto, se olharmos para a acusação, foi por crimes cometidos após o bombardeamento. Havia uma exceção: Racak. Vamos até admitir que as acusações são verdadeiras. Vamos pôr isso de lado. Portanto, houve uma exceção. Não havia provas de que ele estivesse envolvido ou de que tivesse ocorrido, mas quase toda a acusação foi para depois do bombardeamento. Como é que essas acusações se vão manter, a menos que se ponha Bill Clinton e Tony Blair no banco dos réus ao seu lado? Depois perceberam que se tratava de um caso fraco, pelo que acrescentaram as primeiras guerras dos Balcãs. OK, muitas coisas horríveis aconteceram lá. Mas o pior crime, aquele que eles iam realmente acusá-lo, o crime  de genocídio, era Srebrenica. Agora, há um pequeno problema com isso: nomeadamente, houve uma investigação extensa e detalhada sobre o assunto por parte do Governo holandês, que era o governo responsável. Havia aí forças holandesas. É um grande inquérito de centenas de páginas, e a sua conclusão é que Milosevic não sabia nada sobre isso, e que quando  isso foi sabido em Belgrado, eles ficaram horrorizados. Bem, suponhamos que isso tivesse entrado no testemunho.

DM: Isto significa que é um “simpatizante de Milosevic”?

NC: Não, ele foi terrível. Na verdade, ele deveria ter sido expulso. Na verdade, provavelmente teria sido expulso no início dos anos 90, se os albaneses tivessem votado. Esteve muito perto. Ele fez todo o tipo de coisas terríveis, mas não se tratava de um estado totalitário. Houve eleições. Havia uma oposição. Muitas coisas podres, mas há coisas podres por todo o lado, e eu certamente não gostaria de jantar com ele nem de falar com ele. E sim, ele merece ser julgado por crimes, mas este julgamento nunca se iria aguentar, mesmo se fosse apenas  semi-honesta. Foi uma farsa. De facto, eles tiveram sorte por ele ter morrido.

DM: Em que sentido?

NC: Porque não tiveram de ir para a frente com o julgamento. Agora podem construir uma imagem de como ele teria sido condenado como sendo um outro Hitler, se ele tivesse vivido. Mas agora não têm de o fazer.

DM: Só quero que voltemos  ao bombardeamento do RTS. Alguns argumentaram que este ato particular da NATO em 1999 estabeleceu precedentes para o bombardeamento dos meios de comunicação social pelos Estados Unidos a posteriori – nomeadamente no Afeganistão e no Iraque – que estabeleceu um precedente para legitimar os casos dos meios de comunicação social e rotulá-las como propaganda a fim de as bombardear nas invasões americanas. Faz isto  alguma ligação?

NC: Bem, a cronologia está correta, mas penso que não precisam de desculpas. A questão é: bombardeia-se quem se quiser. Tomemos 1998, assim foi antes. Agora, em 1998, eis outra coisa que não está autorizado a dizer nos Estados Unidos ou no Ocidente. Leva à histeria, mas eu digo-o. Em 1998, Clinton bombardeou a maior fábrica farmacêutica do Sudão, OK? Era a fábrica que estava a produzir a maioria dos medicamentos farmacêuticos e veterinários para um país africano pobre que está sob embargo. Eles não os podem substituir. O que é que isso vai fazer? Obviamente, vai matar número desconhecido de pessoas. De facto, os EUA proibiram uma investigação pela ONU, por isso não sabemos, e claro que ninguém quer que se investiguem os seus  próprios crimes, mas havia algumas provas. Assim, o embaixador alemão no Sudão, que é bolseiro da Universidade de Harvard, escreveu um artigo na Harvard International Review no qual estimava as baixas nas dezenas de milhares de mortes. A Near East Foundation, uma fundação muito respeitável, o seu diretor regional tinha feito trabalho de campo no Sudão, fez um estudo. Saiu com as mesmas conclusões: provavelmente dezenas de milhares de mortos. Logo após o bombardeamento, poucas sema<nas depois, a Human Rights Watch emitiu um aviso de que iria haver uma catástrofe humanitária e deu exemplos de trabalhadores humanitários a serem retirados de áreas onde pessoas estavam a morrer a um ritmo muito elevado e assim por diante. Não se pode mencionar isto. Qualquer menção a isto traz a mesma histeria que criticar o bombardeamento da estação de televisão. Por isso, é incontornável. É um crime ocidental e, por isso, era legítimo.

Suponhamos apenas que a Al Quaida fez explodir metade dos fornecimentos farmacêuticos nos EUA, na  Inglaterra, em  Israel, ou em qualquer país em que  as “pessoas” vivessem, “seres humanos”, não “formigas”, “pessoas”. Muito bem. Consegue imaginar a reação? Provavelmente teríamos uma guerra nuclear, mas quando a fazemos a um país africano pobre, quanto a isso nada acontece! Não foi discutida. De facto, a única questão que é discutida, se há discussão, é se  os serviços de informação  estavam corretos, quando afirmaram  que também se estava a produzir armas químicas. Essa é a única questão. Se mencionar mais alguma coisa, a histeria habitual, e as tiradas.

A cultura intelectual ocidental  é muito disciplinada…  é extremamente disciplinada e rígida. Não se pode ir além dos limites fixados. Não é censurada. É tudo voluntário, mas é verdade, e, por acaso, nem todas as sociedades são assim. Na realidade, os países do Terceiro Mundo são diferentes. Portanto, tome-se, digamos, a Turquia, e meio caminho entre o Terceiro Mundo e o nosso. Na Turquia, os intelectuais, os intelectuais de primeiro plano, os escritores mais conhecidos, académicos, jornalistas, artistas – não só protestam contra as atrocidades, os massacres dos curdos, mas contra isso protestam constantemente, mas também foram constantes na execução da desobediência civil contra eles. Também participei com eles, por vezes. E eles publicam escritos proibidos que relatam e apresentam ao Ministério Público, exigindo que sejam processados. Isso não é uma piada, enfrentando… Por vezes são enviados para a prisão. Isso não é uma piada. Não há nada disso no Ocidente. Inconcebível. Quando estou na Europa Ocidental, ouço-os dizerem-me que a Turquia não é suficientemente civilizada para entrar na União Europeia, e eu estou a desatar a rir! É o contrário.

DM: Mencionou os movimentos democráticos em vários países. Houve, claro, um movimento democrático promissor na Sérvia antes e, claro, durante o bombardeamento. E pessoas como Wesley Clark tinham afirmado que este bombardeamento seria benéfico para as forças anti-Milosevic, quando, naturalmente, se revelou um desastre. Foi isto uma avaliação sincera em nome da NATO?

NC: Bem, não posso saber o que lhes passa pela cabeça. Quando se comete um crime, é extremamente fácil encontrar uma justificação para o mesmo. Isso é verdade para a vida pessoal. É verdade para os assuntos internacionais. Portanto, sim, talvez tenham acreditado nisso. Penso que há provas convincentes de que os fascistas japoneses acreditavam que estavam a fazer o bem quando levaram a cabo a sua guerra. John Stuart Mill acreditava certamente que estava a ser um homem de honra  e nobre quando apelava à conquista da Índia logo após algumas das piores atrocidades que mencionei. Você pode acreditar facilmente que se é nobre. Para mim é óbvio que ia prejudicar o movimento democrático. Escrevi sobre isso, e não consegui obter muita informação, mas era óbvio que iria acontecer. Está a acontecer neste momento no Irão. Há um movimento democrático no Irão. Eles estão a implorar aos Estados Unidos que não mantenham um embargo severo, certamente que não ataquem. Está a prejudicá-los, e reforça os elementos violentos mais reacionários da sociedade, é claro.

DM: Deixe-me fazer-lhe uma última pergunta sobre o futuro. As negociações sobre o estatuto final do Kosovo estão em curso neste preciso momento. Os Estados Unidos estão a apoiar Agim Ceku, que foi alguém envolvido na limpeza étnica, não só em…

NC: Ele próprio era um criminoso de guerra. O que é que  há com   a expulsão da Krajina, que foi …

DM: Em primeiro lugar, o que é que considera ser uma solução adequada e realista para o estatuto final do Kosovo, e como é que isso difere do que os Estados Unidos estão agora a promover?

NC: Há muito tempo que tenho a sensação de que a única solução realista é aquela que, de facto, foi oferecida pelo presidente da Sérvia, penso eu, por volta de 1993, nomeadamente uma espécie de partição, com os sérvios – agora restam muito poucos sérvios , mas com o que eram as zonas  sérvias que faziam parte da Sérvia, e o resto sendo o que eles chamam “independente”, o que significa que se iriam  juntar à Albânia. Não vejo… Não vi nenhuma outra solução viável há dez anos atrás. Ainda não vejo nenhuma outra.

DM: Vamos terminar? Professor Chomsky, muito obrigado.

Notas

[1] Helen Epstein, “The Mass Murder We Don’t Talk About,” The New York Review, June 7, 2018. https://www.nybooks.com/articles/2018/06/07/rwanda-mass-murder-we-dont-talk-about/

[2] Mark Ames on Post-Soviet Russia, Made in the USAMedia Roots, January 2017.

[3] Stephen Cohen, Soviet Fates and Lost Alternatives: From Stalinism to the New Cold War (Columbia University Press, 2011), 186-187.

[4] Catherine Browne, “Deconstructing Russophobia,” June 6, 2014.

[5] Noam Chomsky, “The New Military Humanism: Lessons from Kosovo (Pluto Press, 1999).


[1] Nota do Tradutor: O leitor pode aprofundar este caso lendo o artigo de LM disponível em: http://www.srpska-mreza.com/lm-f97/LM97_Bosnia.html  ou ainda uma síntese em:

http://www.srpska-mreza.com/lm-f97/LM97_Bosnia-press.html

E pode ler mais em:

The picture that fooled the world (srpska-mreza.com)


Para ler este trabalho de Dennis Riches no original clique em:

Military Humanism: Heart of Neoliberal Darkness in the Balkans – Lit by Imagination (wordpress.com)

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