Para lá da guerra na Ucrânia — As Muitas ‘Guerras’ Entrelaçadas – Um Guia Rudimentar Através da Névoa.  Por Alastair Crooke

Seleção de Francisco Tavares

8 min de leitura

As Muitas ‘Guerras’ Entrelaçadas – Um Guia Rudimentar Através da Névoa 

 Por Alastair Crooke

Publicado por  em 24 de Outubro de 2022 (original aqui)

 

© Foto: REUTERS/Dado Ruvic

 

Temos agora um emaranhado de “guerras” das quais, paradoxalmente, a Ucrânia é talvez de menor importância estratégica, escreve Alastair Crooke.

Temos agora um emaranhado de “guerras” das quais, paradoxalmente, a Ucrânia é talvez de menor importância estratégica – embora conserve um conteúdo simbólico significativo. Uma “bandeira” em torno da qual as narrativas giram e se reúnem os apoios.

Sim, há nada menos que cinco “guerras” sobrepostas e interligadas em curso – e precisam de ser claramente diferenciadas para serem bem compreendidas.

Estas últimas semanas testemunharam várias mudanças epocais: A Cimeira de Samarkand; a decisão da OPEP+ de reduzir a produção de petróleo das nações membros em dois milhões de barris por dia a partir do próximo mês; e a declaração explícita do Presidente Erdogan de que “a Rússia e a Turquia estão juntas; a trabalhar em conjunto”.

Firmes aliados dos EUA, a Arábia Saudita, Turquia, EAU, Índia, África do Sul, Egipto e agrupamentos como a OPEP+ estão a dar um grande passo em direcção à autonomia, e em direcção à incorporação de nações não ocidentais num bloco coerente – agindo em função dos seus próprios interesses e fazendo política “à sua maneira”.

Isto aproxima-nos do mundo multipolar que a Rússia e a China têm vindo a preparar ao longo de vários anos – um processo que significa “a guerra” de desacoplamento geoestratégico da “ordem” global ocidental.

Combate-se, por um lado, apresentando a Rússia e a China como demasiado desconfiadas uma da outra para serem parceiras. E por outro lado, apresentando a Rússia como um país tão fraco, tão disfuncional e errático (pronto a usar bombas nucleares tácticas), que o binário “connosco” ou “contra nós” obriga os Estados a colocarem-se ao lado do Ocidente. Neste caso, a Ucrânia é apresentada como o brilhante “Camelot” em torno do qual nos devemos reunir, para combater a “escuridão”.

Isto leva-nos directamente à longa ‘guerra’ financeira global – uma guerra de dois níveis:

A um nível, o Fed dos EUA está a jogar um ‘jogo global’. Está a aumentar as taxas de juro por muitas razões. Aqui, porém, é para proteger o ‘privilégio do dólar’ de poder trocar dinheiro que imprime do nada, por trabalho real e mercadorias reais em todo o mundo. Este “privilégio da moeda de reserva” tem sido a base do elevado nível de vida dos EUA (muito mais elevado do que seria de outro modo). É um benefício enorme, e o Fed vai proteger este benefício.

Para o fazer, o maior número possível de estados precisa de estar no ‘canal’ do dólar e de negociar em dólares. E colocar as suas poupanças nos títulos do Tesouro dos EUA. O Fed está agora a fazer tudo o que pode para fazer ruir a quota de mercado do euro e, assim, transferir euros e euro-dólares para o sindicato do dólar. Os EUA ameaçarão a Arábia Saudita, os Estados do Golfo e a Turquia para os impedir de sair do canal.

Esta é a “guerra” contra a Rússia e a China porque estão a fazer passar uma grande parte do globo para fora do sindicato do dólar, e para uma esfera não-dólar. O não cumprimento da adesão ao sindicato do dólar é enfrentado com vários instrumentos, desde sanções, congelamento de bens e tarifas, até à mudança de regime.

Se o Fed não proteger o “privilégio do dólar”, correm o risco de todos saírem do canal. O bloco Eurásia está a trabalhar para sair do canal do dólar; para criar resiliência económica e negociar fora do canal. O que o Fed está a tentar fazer é impedir isto.

A segunda dimensão da guerra financeira dos EUA é a longa luta travada pelos EUA (Yellen e Blinken, mais do que o Fed) para manter o controlo sobre os mercados de energia, e a capacidade dos EUA de fixar o preço dos combustíveis. Os BRICS (com os sauditas interessados em aderir) têm a intenção de desenvolver um “cabaz” de moedas e mercadorias destinado a servir de mecanismo de comércio alternativo ao dólar para o comércio internacional.

A questão aqui é que o grupo eurasiático não só planeia negociar em moedas nacionais, e não o dólar, mas quer ligar esta moeda de troca comercial a mercadorias (petróleo, gás, alimentos, matérias-primas) que têm valor inerente – que são “moedas” por direito próprio. Mais do que isso, o grupo procura tirar o controlo dos mercados energéticos dos EUA, e relocalizar esses mercados na Eurásia. Washington, contudo, pretende recuperar o controlo dos preços (através de controle dos mesmos).

E aí reside um problema fundamental para Washington: O sector das matérias-primas – com o seu valor tangível inerente – torna-se, em si mesmo, uma “moeda” muito procurada. Uma moeda, que, na sequência de uma inflação galopante, supera a desvalorização do dinheiro fiduciário. Como Karin Kneissl, uma antiga Ministra dos Negócios Estrangeiros austríaca, salienta, “em apenas 2022, o dólar americano imprimiu mais papel-moeda do que em toda a sua história. A energia, por outro lado, não pode ser impressa”.

Esta ‘guerra energética’ assume a forma de perturbar ou destruir o transporte – e o fluxo – do produto dos produtores de energia eurasiáticos para os seus clientes. A UE acabou de provar esta “guerra” particular com a destruição dos gasodutos Nordstream.

Agora chegamos às grandes ‘guerras’: Primeiro, a guerra para forçar o Fed a girar – para girar para taxas de juro zero e a QE [flexibilização quantitativa].

A revolução social nos EUA que viu uma elite das grandes cidades radicalizada buscar a diversidade, o clima e a justiça racial como ideais utópicos, encontrou a sua ‘marca’ fácil com uma UE já à caça de um ‘Sistema de Valores’ para tapar o seu próprio ‘défice democrático’.

Assim, a burguesia da Europa saltou com entusiasmo para o “comboio” liberal [atento às questões sociais importantes, como justiça racial e social] dos EUA. Com base no contributo político de identidade deste último, mais o “messianismo” do Clube de Roma para a desindustrialização, a fusão parecia oferecer um conjunto imperial ideal de “Valores” para preencher o défice da UE.

Só que … só que, os republicanos americanos pró-guerra, bem como os neoconservadores democratas pró-guerra, já se tinham subido “àquele comboio”. As forças cultural-ideológicas mobilizadas adequavam-se perfeitamente ao seu projecto intervencionista: “O nosso primeiro objectivo é evitar o ressurgimento de um novo rival” (doutrina de Wolfowitz) – a Rússia primeiro, depois a China em segundo lugar.

O que tem isto a ver com a guerra contra o Fed? Muita coisa. Estas correntes estão empenhadas na impressão e nos grandes gastos, caso contrário verão os seus projectos falhar. O Re-set [Reiniciar] requer a impressão [de dinheiro]. O verde requer impressão [de dinheiro]. O apoio ao ‘Camelot’ ucraniano exige impressão [de dinheiro]. O Complexo Industrial Militar também precisa disso.

Os liberais dos EUA e os Verdes da UE precisam que a torneira do dinheiro esteja totalmente aberta. Precisam de imprimir dinheiro a todo o custo. Por conseguinte, precisam de “chantagear” o Fed para não aumentar as taxas, mas sim para regressar à era do custo zero, de modo a que o dinheiro permaneça a custo zero, e a fluir livremente. (E para o inferno com a inflação).

A UNCTAD implorando a todos os bancos centrais que parem de aumentar as taxas para evitar uma recessão é uma das frentes desta guerra; a continuação da guerra da Ucrânia, com o seu enorme défice financeiro associado, é outra tábua para forçar um ‘giro’ do Fed. E forçar o Banco de Inglaterra a ‘girar’ para a QE é mais uma.

No entanto, até agora, Jerome Powell resiste.

Depois há uma outra “guerra” (largamente invisível) que reflecte a convicção de certas correntes conservadoras dos EUA de que a era pós-2008 foi um desastre, colocando o sistema económico americano em risco existencial.

Sim, os que estão por detrás de Powell estão certamente preocupados com a inflação (e compreendem também, que as subidas das taxas de juro andaram atrasadas em relação à inflação galopante), mas estão ainda mais preocupados com o “risco social” – ou seja, o deslizamento para a guerra civil na América.

O Fed pode continuar a aumentar as taxas durante algum tempo – mesmo à custa de algum afundamento do mercado, fundos de cobertura e colapso de pequenas empresas. Powell tem o apoio de certos grandes bancos de Nova Iorque que vêem o que está escrito na parede para o modelo liberal-atento: O fim do seu negócio bancário à medida que os resgates se tornam digitais e são pagos directamente nas contas bancárias dos requerentes (como propôs o Governador Lael Brainard).

Powell diz pouco (é provável que ele se mantenha afastado da política partidária dos EUA neste momento sensível).

O Fed, contudo, pode estar a tentar implementar uma demolição contrária e controlada da bolha da economia norte-americana, orientada precisamente para arrastar a América de volta para caminhos financeiros mais tradicionais. Para quebrar a “cultura dos ativos alavancados” … Começa-se a resolver o enorme fosso de desigualdade social que o Fed ajudou a criar, através da QE facilitando bolhas gigantescas de activos … Começa-se a rejuvenescer uma economia americana, acabando com as distorções. Desfaz-se o impulso para a guerra civil, porque o problema deixa de ser apenas entre os ‘que têm’ e os ‘que não têm’.

Esta visão pode por si só ser um pouco utópica, mas quebra o ‘tudo bolha’, quebra a cultura de alavancagem, e pára o torniquete extremo dos beneficiários da bolha contra 18 meses seguidos de queda dos salários reais nos EUA.

Mas … mas isto só é possível se não se quebrar nada que seja sistémico.

Quais são as implicações geoestratégicas? Obviamente, muito depende do resultado a médio prazo dos EUA. Já parece (dependendo precisamente de quais os candidatos do Partido Republicano que o façam melhor) que o financiamento para a guerra na Ucrânia será reduzido. O grau de redução dependerá da margem de sucesso alcançada pelos “populistas” do Partido Republicano.

Não é plausível, portanto, que a UE – enfrentando a sua própria crise devastadora – continue a financiar Kiev como antes.

Mas a importância da luta para voltar a sentar os EUA num paradigma económico dos anos 80 sugere que o Ocidente estará muito próximo de uma ruptura sistemática durante estas próximas semanas.

Os Euro-élites estão demasiado investidos no seu caminho actual para mudar a sua narrativa num futuro próximo. Por isso, continuarão a culpar e a falar mal da Rússia – têm poucas opções se quiserem afastar a raiva popular. E há também poucos sinais de terem assimilado mentalmente o desastre que os seus erros provocaram.

E em relação a Bruxelas, o mecanismo de rotação dos líderes da UE está largamente ausente. A União nunca esteve equipada com uma marcha atrás – uma necessidade inimaginável na era inicial.

A questão é, antes, qual será a situação na Europa em Janeiro-Fevereiro?

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O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).

 

 

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