É Natal. Aqui vos deixo o segundo texto desta série evocativa da quadra que atravessamos.
Trata-se de um texto profundamente poético, este do Dr. Jean-Pierre Willem, que na minha tradução talvez tenha perdido um pouco, ou mesmo muito, da sua profundidade poética. Mas poeta, ensinaram-nos os gregos, é ser-se artesão da palavra e, nesta matéria-prima, a matéria bruta que é a palavra, não sou nem marceneiro, nem carpinteiro. Longe disso, no máximo serei um simples aprendiz de uma antiquada carpintaria.
JM
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Texto 2. Há palavras que tudo podem mudar. É Natal.
, em 23 de Dezembro de 2022 (original aqui)
Caro leitor, cara leitora
Desde o início dos tempos que as pessoas celebram o solstício de Inverno. Finalmente, no final da noite mais longa do ano, após meses de austeridade, a vida em pousio pode voltar a florescer.
Que razão mais legítima para que nos regozijemos?
Pois a natureza, que ressuscita por si própria após o sono de Inverno, aparece como um espelho no oco das nossas vidas, que muitas vezes nada têm de um longo rio tranquilo.
Em Retour à Tipasa, Albert Camus escreve: “Em pleno Inverno, aprendi finalmente que havia em mim um Verão invencível“.
É difícil dizer mais sublimemente que, para além da inércia, a centelha da vida permanece intacta em nós.
E que apenas pede para ser reacendida.
A história mostra-nos que o Natal tem as suas origens em ritos pagãos.
Num país onde a religião dominante é católica, o presépio suplantou gradualmente as celebrações anteriores.
O período no final do ano, nos doze dias entre o Natal e a Epifania, tem sido sempre marcado por festas, banquetes, troncos de árvores nas lareiras e vegetação nos interiores: é um cenário especial para celebrar os últimos dias em que a noite prevalece sobre o dia, o regresso à luz e o renascimento da natureza.
Um tempo de generosidade, de presentes, de promessa da primavera, da exuberância da terra e da colheita…
O berço, símbolo da natividade, encaixa perfeitamente neste imaginário popular e bastante “pagão”.
O Natal é a época da Palavra.
Das profundezas das nossas noites silenciosas, espalha-se um murmúrio.
Sim, para anunciar, para dizer, para gritar, para gritar na cara do mundo que de agora em diante é o amor impossível que é agora o único possível, o único digno do homem e de Deus.
Dizer, ou melhor, deixar dizer em nós, por vezes através de nós, uma Palavra que pensávamos estar selada, amuralhada, sufocada; uma Palavra contra a desordem do mundo e a dor infinita de viver.
O Natal, como um itinerário sagrado, um caminho interior que nos conduz diretamente à fraternidade, não a dos belos discursos, mas a das mãos estendidas para além do sofrimento e da morte, do ódio e da indiferença.
Um caminho elevado do impossível que de repente se torna um caminho escarpado de possíveis.
E o homem que caminha, que sobe por este caminho, sobe e volta a subir e cresce a cada passo que dá em direção ao cume da Palavra que lhe sussurra, sempre e incessantemente: “Vem, segue-me!” É um caminho difícil, um caminho para se perder o fôlego. Pois a vida é pesada, difícil, deprimente e inesperada, como a estamos a viver hoje, especialmente com este pequeno vírus que está a virar as nossas vidas de pernas para o ar.
Façamos nossos mais do que nunca este ensinamento de Jesus que veio à terra há 2020 anos atrás: amemo-nos uns aos outros, amemos mesmo aqueles que se comportam como inimigos e que distorcem [o sentido da vida] .
Chegou o momento da compaixão, da reconciliação, da compreensão, do perdão e do amor.
Um rito eterno
Acredito no sagrado e no poder do rito.
E este rito é tanto mais eficiente quanto mais estiver integrado num ritmo portador de sentido.
A persistência com que a celebração do Natal foi perpetuada, apesar do gradual desvanecimento da sua dimensão religiosa, mostra até que ponto a humanidade necessita de pontos de referência firmemente ancorados.
Estes pontos de referência são tanto mais indispensáveis para os urbanos em que quase todos nós nos tornámos, quanto a maioria de todos nós nos isolámos do ciclo natural das estações do ano.
Que razão mais legítima para nos regozijarmos?
As decorações brilhantes, o cheiro da árvore de Natal na sala de estar, o som do embrulho do presente a ser rasgado ou os cantos entoados pelos membros da família: o Natal é verdadeiramente uma questão de sentido.
É através destes pontos de referência que se transmite o ambiente especial deste dia festivo.
É através destes pontos de referência que vivemos este 25 de Dezembro, tão ansiosamente aguardado por crianças e adultos, cujas mentes estão perturbadas por estes malditos vírus.
Uma vez que estas festividades são organizadas em torno da celebração do nascimento de Cristo, podemos perguntar-nos como é que este misterioso e escondido acontecimento de há dois mil anos atrás poderia assumir tal dimensão, porque é que uma emoção sincera toma conta de tantos homens e mulheres, cristãos convencidos ou não, quando chega a altura do Natal.
Será um velho sonho de paz e harmonia que habita os nossos corações, ou será nostalgia dos Natais da nossa infância?
Quando um nascimento acontece hoje numa família, enviamos um SMS para toda a nossa agenda de endereços, com uma fotografia do recém-nascido.
Gostaríamos de anunciar a notícia a todo o mundo, para que a alegria encha os nossos corações!
No Evangelho, encontramos a mesma atmosfera, o mesmo cenário: milhões de estrelas iluminam-se na noite e o anjo proclama: “Trago-vos boas notícias e de grande alegria para toda a humanidade”.
Pois a alegria só pode ser genuína se todos a puderem viver.
É por isso que as primeiras pessoas a quem é anunciado são pastores, homens pobres que vivem à margem das cidades, suspeitos de serem “ladrões”, muitas vezes desprezados e rejeitados.
Assim, a alegria é partilhada pela comunidade dos homens.
Se existe algo como “magia de Natal”, é a magia que viu este dia de festa tornar-se universalmente aceite.
Em todo o lado, nas montras, nas ruas, nas casas, sentimos a aproximação do Natal. Árvores de Natal decoradas, grinaldas de Advento, presépios, iluminações…
Os mais belos Natais não são aqueles que giram em torno de decorações, presentes e festividades, mas aqueles em que o amor é rei. É o amor que faz o Natal.
E o Natal é passar o tempo com a família e amigos. Trata-se de apreciar e valorizar o amor que se partilha.
Infelizmente, o amor é facilmente esquecido na excitação da quadra festiva que é o Natal.
Por vezes é enterrado sob as decorações, os presentes, as compras intermináveis, as festas de passagem do ano e de outras festividades.
O Natal pode ser uma época para partilhar uma refeição com um estudante solitário, um refugiado longe da sua família, ou para visitar uma avó ou avô que esteja confinado por uma deficiência física.
Há muitas oportunidades para sermos úteis para com os que precisam.
Claro que todos nós fomos alimentados com o folclore desta festa que, apesar da descristianização, se tornou o ponto alto do nosso calendário, a festa para todos – quer sejamos de facto cristãos ou agnósticos, ateus, religiosamente indiferentes, muçulmanos, judeus ou mesmo hindus.
O espírito de Natal
Até agora, o período que nos foi apresentado era sobretudo sinónimo de paz e reunião, sorrisos, atenção e, digamos de outra forma, estas celebrações natalícias tinham um sabor encantador de infância e perfumes acolhedores.
A este período foi chamado a “pausa dos debates políticos”, a oportunidade de fazer uma pausa neste turbilhão de debates cada vez mais desequilibrados.
Mas isto sem ter em conta o terrível “wokismo“, um veneno absoluto que se infiltra em todo o lado, que gostaria de apagar a memória e silenciar as diferenças.
Na era da “inclusão total”, este famoso wokismo, até agora confinado a certos círculos, particularmente universidades, está a ganhar em confiança e quer silenciar todos aqueles que se lhe opõem.
Assim, há já algum tempo que ouvimos aqui e ali vozes indignadas que se indignam com o facto de o Natal poder ser celebrado.
Poderá a véspera de Natal transformar-se num combate de boxe?
E se tiver a ideia de decorar uma árvore de Natal, ou seja, uma “árvore morta” assim considerada por um lenhador, será acusado de não ter consciência.
Estará a acumular os pecados mortais…
Mas agora, para além de tudo isto, os autoproclamados procuradores estão a repreendê-lo por proferir a simples frase “Feliz Natal”, que poderia chocar aqueles que não desejam celebrar nada. Que se lixe!
A arte dos detalhes é um dos grandes desafios que se avizinham, mas é uma luta nobre para assegurar que os comunitarismos de todos os quadrantes não prevaleçam sobre o viver-em-conjunto.
Este é também o espírito de Natal.
Assim, neste ano, tão atribulado e cheio de incertezas, contemplemos os nossos presépios de Natal com os olhos de todos aqueles que vivem vidas difíceis e que encontram grande conforto nesta criança desamparada, que vem ao mundo no estábulo do gado, no meio dos pastores.
Em vez de chorar desesperadamente sobre o que não será “como habitual”, talvez esta seja uma oportunidade para nos interrogarmos sobre o significado mais profundo desta “vinda” e sobre como nos prepararmos para a receber, como a devemos acolher.
A história de Natal não é uma historieta maravilhosa. Fala de esperança, apesar de tudo.
De uma estrela que vem para guiar viajantes perdidos.
De um desejo realizado após uma espera tão longa.
Da fragilidade de uma criança recém-nascida como uma realização do poder divino.
Uma Boa-Nova, sim, a ser celebrada como deve ser, mas que não ignora nenhuma das dificuldades da vida.
Aqueles que vivem na miséria e humilhação diárias têm uma forma particular de ler o Evangelho a partir da sua experiência de vida. Estão imersos na história… e interpelam-nos fazendo-nos descobrir como uma nova vida pode surgir a partir das nossas fragilidades e fracassos.
Assim, este ano, vamos contemplar os nossos berços de Natal com os olhos de todos aqueles que vivem vidas difíceis.
E unamo-nos, juntos, para levar esta esperança a todos.
A criança divina nasce, toca o oboé, ressoa gaita-de-foles.
Nasce a criança divina, vamos todos cantar a sua vinda.
Os anjos dos nossos campos agrícolas cantaram o hino do céu.
E o eco das nossas montanhas repete esta canção melodiosa.
Gloria in excelsis Deo !
Memórias de Natal
– Durante a última guerra, eu e a minha família, composta por 6 crianças (3 rapazes e 3 raparigas), vivemos numa pequena aldeia ao lado de Sedan (a cidade através da qual os alemães atravessaram o Mosa para invadir a França em 2 semanas).
Na época do Natal, toda a aldeia vinha à igreja. Entre os neo-paroquianos, muitos soldados alemães; todos nós partilhámos juntos a comunhão.
Apenas os franceses cantavam “Il est né le divin enfant…”.
No final da missa, o padre desejou a todos paz e, dirigindo-se aos alemães: Liebe Brüder und Schwestern, dass die Fride immer mit Euch sei. Caros irmãos e irmãs, que a paz esteja sempre convosco!
Em casa, como prenda, cada criança recebeu uma laranja, um fruto simbólico na altura, que deu origem a uma fotografia a preto e branco (tanto pior para a laranja!)
– Em Dezembro de 2013, fui a Damasco na Síria, no seio de um grupo de “cristãos do Oriente”, fomos acompanhados por uma jornalista de Valeurs Actuelles: Charlotte d’Ornellas, que hoje ilumina os estúdios de CNews. Os dois jornalistas do Le Figaro tinham -se sumido no último momento, assim como três enfermeiras! Partilhámos uma refeição de Natal com um grupo de jovens voluntários russos numa missão humanitária.
– Em Dezembro de 2019, regressei à Síria acompanhado por um jornalista para visitar Maaloula, um Património Mundial da UNESCO, um dos últimos quatro sítios do mundo onde o aramaico (a língua de Jesus) é falado.
Foi um famoso local de vilegiatura e de peregrinação. Era um local com uma série de abadias e igrejas, até que uma centena de jihadistas vieram para destruir a história e esvaziar a fé dos cristãos. A partir das montanhas, atiraram-nos pneus cheios de explosivos.
Todas as igrejas foram destruídas, as estátuas decapitadas, os ícones desfigurados, os Evangelhos queimados. Três jovens cristãos que se recusaram a converter-se ao islamismo foram fuzilados. O Padre Toufik, pároco da paróquia grega católica, fez os arranjos necessários com o Vaticano para que Sarkis, Antoine e Michail, os novos mártires, fossem beatificados.
Neste contexto macabro, celebrámos o Natal com o Padre Toufik, as freiras e os últimos cristãos que se recusaram a deixar a sua terra natal.
– No Natal de 2022, eu pretendia ir a Kiev ou Odessa para ajudar os meus colegas cirurgiões. Há três meses, fui chamado ao Ministério da Justiça por um comandante da polícia, para me informar que estava proibido de me referir ao título de médico. A sanção do procurador em caso de recusa: um ano de prisão e 130 mil euros de multa!
Desgastado por esta enésima decisão arbitrária proveniente da Ordem dos Médicos, e enojado por esta ladainha de ameaças e perseguições que me atormentam há 40 anos, eu queria juntar-me à Ucrânia. O tempo de resiliência está ultrapassado.
Os meus filhos opõem-se a esta partida, talvez sem regresso. Assim, vou partilhar esta festa de família com os meus 5 filhos. Tenho de esperar pelo próximo passo.
A Providência chegará algum dia?
“Nenhuma festa litúrgica é mais popular que o Natal. Só ela conhece a singular fortuna de reconciliar, numa comum alegria, aqueles para quem ela comemora o nascimento de Deus e aqueles para quem ela nada significa. O mais incrédulo ainda a celebra com o champanhe e a morcela branca; é um facto da história que essa veneração é universal; os festejos da véspera de Ano Novo testemunham-no à sua maneira.”
Daniel-Rops, Jesus no seu tempo II
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O autor: O Dr Jean-Pierre WILLEM, médico e cirurgião, é o fundador da associação humanitária Les Médecins aux Pieds Nus (https://medecinsauxpiedsnus.com/), da qual ele é o Presidente.
Licenciado em epidemiologia da SIDA e antropologia médica, é um dos pioneiros da reanimação urbana na origem do SAMU (Argélia, 1961) e o iniciador do conceito de etnomedicina, uma síntese entre a medicina ocidental e a terapêutica tradicional e natural de diferentes países.
Doutoramento em Medicina, Faculdade de Medicina de Lille, França. D.U. em Epidemiologia da SIDA, Medicina Humanitária e Antropologia Médica, Universidade de Paris XII de Bobigny e Universidade de Paris X de Nanterre, e em Cronobiologia (Faculdade de Medicina Pierre e Marie Curie – La Pitié Salpêtrière). Especialista em Medicina Natural. Fundador da Associação Biológica Interncaional (https://association-biologique-internationale.com/)
Criador e Presidente da Faculdade Livre de Medicina Natural (FLMNE – https://flmne.org/) , foi um dos últimos assistentes do Dr Albert Schweitzer em 1964 em Lambaréné, no Gabão, e ainda participa em muitas missões humanitárias.
Obras e Descobertas: Inventor do conceito de ressuscitação urbana (Bône, Argélia), na origem do SAMU (1962); Iniciador do conceito de etnomedicina em missões humanitárias (1987); Contribuição para a compreensão das patologias degenerativas: Esclerose múltipla, cancro, esquizofrenia, Parkinson, miopatia, Alzheimer. (1988); Desenvolvimento de fórmulas eficazes em várias patologias virais (hepatite, herpes, gripe aviária, SARS, chikungunya, …). Prémios: Mérito francês e devoção por serviço excepcional à comunidade humana (1979); Grande Prémio Humanitário (1982); Medalha da Cidade de Paris, Vermeil echelon (1983); Medalha da Cruz Vermelha (1984); Medalha de Caridade, “Rainha Helena de Itália “1992; Figurado em Who’s Who (1996); Listado no Livro de Recordes como ‘Cirurgião das 14 Guerras’ (2000)