Um texto de homenagem a Maria Manuel Leitão Marques . Por Júlio Marques Mota

Nota prévia

Ao arrumar o meu computador, preparando-o para um Novo Ano, deparo-me com um texto de homenagem a alguém que muito considero, Maria Manuel Leitão Marques. Um texto escrito antes da sua última aula, escrito em princípios de outubro.

Disse-me ela que há aqui pontos de vista de que discorda. Ótimo, uma vez que sendo também um texto de reflexão, em grande parte sobre um tempo de há muito já passado, é natural que haja pontos de vista diferentes. Respeitá-los e respeitarmo-nos nas nossas diferenças é a riqueza da Democracia. E é isso que se faz, publicando o referido texto.

Coimbra, 4 de janeiro de 2023

JM


12 min de leitura

 Por Júlio Marques Mota

Coimbra, em 4 de Outubro de 2022

 

Soube agora que atingiste o termo do teu percurso académico institucional. Quanto ao futuro, desejo-te felicidades, a ti, como a todos os teus e, já agora, para não sermos egoístas, felicidades para mim e para todos os meus também.

Vai haver uma sessão na FEUC, uma sessão de homenagem que é bem mais do que “a tua última aula”. Não estarei presente mas uma coisa quero, quero associar-me à homenagem que te vai ser feita e da forma mais singela: com esta pequena nota de reconhecimento que não pode ser nunca entendida como uma nota do politicamente correto mas sim de um reconhecimento sentido, vivido, alimentado a partir de uma época rica em trabalho conjunto. Deambular por essa realidade e por esse tempo longínquo parece ser a melhor homenagem que te posso e sei fazer.

Dir-te-ei que neste fim de carreira foi um prazer para mim ter-te como colega de Faculdade, como colega de trabalho nos teus primeiros anos de assistente e depois como amiga, sobretudo, como amiga no quadro dos momentos difíceis que passei.

Desses tempos, recordo o teu trabalho empenhado em Economia 1 nos teus primeiros anos de assistente, recordo a dedicação brutal e de espírito de equipa havido quando um docente da cadeira claudicou por esgotamento e obrigou a que os restantes revissem as suas provas de exame em tempo recorde. Tudo se passou como nada de anormal se tivesse passado. E tudo correu bem.

Há dias, o meu colega do ISEG Carlos Bastien pediu-me uma nota que assinalasse a minha passagem pelo ISEG que vai ser colocada no site do ISEG no aniversário da morte de Ribeiro Santos. Foi o que fiz e mando-te essa nota em anexo, com o pedido de não divulgação uma vez que ainda não foi publicada. Falar de acontecimentos passados há cinquenta anos é utilizar lentes desfocadas pelo tempo e, por muito boa memória que se possa ter, há sempre detalhes que poderão não estar certos mesmo que colocados na moldura certa. É o que pode acontecer nos parágrafos seguintes.

Esses anos da década de 70 foram um tempo em que circulava por nós o livro de Claudio Napoleoni, Lições sobre o capítulo VI, onde de forma séria se dava algumas lições didaticamente muito boas sobre o ensino do marxismo, onde se fala de mais-valia absoluta e relativa, de submissão formal e real do trabalho ao capital, de trabalho intensivo e de produtividade entre muitas outras ideias. O livro era uma tradução minha com revisão do Joaquim Feio. Circulava também por nós um outro livro do mesmo autor, Smith, Ricardo e Marx. Por aí se queria que os estudantes apreendessem de uma forma séria e simples para o seu nível de conhecimentos o que era a dinâmica do capitalismo. Eram questões complementares ao que se ensinava mas eram relevantes, ainda hoje penso isso.

Desses primeiros anos, recordo ainda fragmentos do programa das práticas, como a apresentação de cenários das formações sociais como articulação de diversos modos de produção. Ainda me lembro de se estudar o que representava uma moagem ou um lagar de azeite como caraterístico de um pré-capitalismo inserido numa formação social onde o capitalismo puro e duro era dominante.

Hoje, falar destes exemplos, parece irónico ou mesmo patético tal a lavagem que o neoliberalismo tem feito aos nossos cérebros. Mas será mesmo patético, será mesmo irónico falar disso? Penso que não e expliquemo-nos quanto a isso.

De imediato, poderei é dizer que se fôssemos bruxos ou mágicos poderíamos ter inventado para essa altura o que se verificou com a Troika e com Passos Coelho sobre estes cenários. Por decreto, os lagares deixam de poder receber em natura a compensação pelo serviço de  armazenagem e moagem praticado. Os lagares recebem à cabeça e em numerário o valor da sua prestação do serviço prestado, o produtor tem direito a 80 litros de azeite para consumo próprio, e o restante azeite, se o há, entra no sistema de circulação capitalista como mercadoria, não como produto, sujeito a todos impostos que enquanto mercadoria devem ser pagos. Leva-se com a Troika ao máximo de mercantilização possível no que resta de produção pré-capitalista. Outra via de extensão do capitalismo é fazer desaparecer esta produção agrícola pré-capitalista, como acontece agora no Alentejo, com a aquisição de terrenos, com a criação de olivais em extensão e temos a submissão real do trabalho no quadro da produção capitalista – tudo está sob o controlo do capital, espanhol ou português, tanto faz!

Mas o Diabo tece-as: procura-se ainda nos lagares de submissão formal o que resta do azeite que aí não é escoado em autoconsumo para misturar com o azeite que é obtido em grande escala dos grandes olivais e por kilo de azeitona espremida até ao milésimo da gota para que este azeite possa saber a azeite. Talvez ainda te lembres de um aluno nosso de Coimbra, de nome Jerónimo penso eu, cujo pai era armazenista de azeite e que me dizia mais ou menos o seguinte: o nosso azeite também tem azeite.

Esta segunda via, a da destruição da fronteira entre pré-capitalismo e capitalismo extensivo pode ser vista em duas fases:

Fase 1. Desaparecimento do modo de produção pré-capitalista por substituição pelo capitalismo extensivo ( aumento de produção capitalista com as mesmas técnicas) .

Fase 2. Substituição parcial ou total do capitalismo extensivo por capitalismo intensivo (aumento de produção com intensificação do capital por trabalhador, com a introdução de novas tecnologias)

O exemplo do lagar ou da moagem significava estar a explicar o desaparecimento das fronteiras dos modos de pré-capitalistas e capitalistas com domínio absoluto destes últimos.

Irónica ou dramaticamente dois marcos de referência para esta expansão e/ou aprofundamento:

– capitalismo extensivo.

A guerra do ópio na China em que se queria submeter uma formação social aos ditames do capitalismo puro e duro, do imperialismo britânico, sintetizada na expressão: um século de humilhação. E os chineses não o esqueceram, como bem assinala Jean-Michel Quatrepoint.um antigo jornalista do Le Monde. E lembremo-nos de que a justificação teórica dada para a violência verificada era de que a implantação das ideias da Riqueza das Nações de Adam Smith justificava a violência praticada.

– capitalismo extensivo/intensivo.

No sistema do capitalismo da grande indústria antecipado por Marx ou no sistema capitalista da era da vigilância, para utilizar a expressão de Shoshana Zuboff, o capitalismo tomou cada vez mais conta da vida e do emprego dos trabalhadores e levou a que os indivíduos se vejam como meros apêndices nas mãos de patrões abstratos e algorítmicos: Nos Grundrisse temos das mais belas páginas de Marx sobre o tema. Alguns excertos:

“ a máquina já não tem nada de comum com o instrumento do trabalhador individual. Ela distingue-se completamente do instrumento de trabalho, do instrumento que transmite a atividade do trabalhador ao objeto. De facto, a atividade manifesta-se bem mais como sendo o resultado da máquina do que do trabalhador vigiando a atividade transmitida pela máquina às matérias-primas e protegendo-a contra as avarias.

Com o instrumento de trabalho era precisamente o contrário: o trabalhador animava-o com a sua arte e a sua habilidade própria porque a utilização do instrumento de trabalho dependia do seu virtuosismo” (…)

A atividade do operário reduzida a uma pura abstração é determinada em todos os sentidos pelo movimento do conjunto das máquinas, o inverso deixa de ser verdadeiro. (…)

A riqueza real desenvolve-se agora, por um lado, graças à enorme desproporção entre o tempo de trabalho utilizado e o seu produto, e, por outro lado, graças à desproporção qualitativa entre o trabalho, reduzido a uma pura abstração. E capacidade do processo de produção que ele vigia: é o que revela o sistema da grande indústria.(…)

Com esta mudança, não é nem o tempo de trabalho utilizado, nem o tempo de trabalho imediato que aparecem como o fundamento principal da produção de riqueza, é a apropriação da capacidade produtiva geral, a sua inteligência da natureza e a sua faculdade de a dominar, desde que constituído num corpo social: numa palavra, o desenvolvimento do indivíduo social representa o fundamento essencial da produção e da riqueza.

A apropriação do tempo de trabalho de outrem sobre o qual assenta a riqueza atual aparece como uma base miserável relativamente à base nova, criada e desenvolvida, pela própria grande indústria. (…)

O sobre-trabalho das grandes massas deixou de ser a condição do desenvolvimento da riqueza geral” Fim de citação

 

No mundo de Marx para explicar a violência de um capitalismo intensivo e de exploração intensiva (formação de mais-valia absoluta) e em que entram em jogo todos os conceitos que se aprendiam nessa altura em Economia, podemos tomar como exemplo a intensificação dos métodos de trabalho controlados por algoritmos no mundo em que funcionam Jeff Bezos e a sua Amazon.com. As descrições sobre os métodos de funcionamento desta empresa abundam e são terríveis para os milhares de empregados da Amazon.com.

Nos anos das décadas de 70 e 80 do que não se poderia falar na altura era do capitalismo da vigilância simplesmente porque este não existia. Mas será que a arquitetura mental que com este ensino se criava permitia a transposição para este novo tipo de capitalismo? Penso que sim. Com efeito, este pode ser encarado como um capitalismo extensivo, o campo de extensão não é o lagar, é a alma dos consumidores, o produto a extrair não é azeite mas sim ao moldar e aprofundar o estudo dos comportamentos daqueles que vigia, os consumidores em geral, pode-se daí retirar os dados comportamentais que lhes permitam definir perfis de consumidores que são depois vendidos no mercado aos vendedores de bens e serviços. Neste campo, impõe-se um ritmo intenso de inovação cavando cada vez mais fundo na alma do consumidor, daí o dizer-se que se trata de um capitalismo intensivo. E o quadro de referência de partida na nossa disciplina de Economia I de então continuaria a ser útil ainda hoje, com um detalhe de pormenor importante: explicar aos alunos que o capitalismo de vigilância faz desaparecer a independência suposta entre produtos e consumidores, uma vez que estes últimos são um produto dos primeiros!

Deixando Marx e saindo da grande indústria, deixando o mundo de Henry Ford, por exemplo, entremos no capitalismo da vigilância, mesmo que de forma sucinta.

Diz-nos Shoshana Zuboff:

“Tal como ocorrera com a Ford um século antes, os engenheiros e cientistas da [Google] foram os primeiros a conduzir integralmente a sinfonia da vigilância comercial, integrando uma vasta gama de mecanismos, desde os cookies aos métodos analíticos [próprios da Google] e às capacidades de software algorítmico, numa nova e vasta lógica que consagrava a vigilância e a expropriação unilateral dos dados comportamentais [dos cidadãos]. O impacto desta invenção foi tão dramático como o de Ford. (…)

É importante ressalvar as diferenças vitais para o capitalismo entre estes dois momentos de originalidade, na Ford para o capitalismo da grande indústria, na Google para o capitalismo da vigilância. As invenções de Ford revolucionaram a produção. As invenções da Google revolucionaram a extração e estabeleceram o primeiro imperativo económico do capitalismo da vigilância: o imperativo da extração. O imperativo da extração significa que o abastecimento de matérias-primas devia ser procurado numa escala cada vez maior. O capitalismo industrial [à Marx] exigiria economias de escala na produção para alcançar produtividades elevadas combinadas com um custo unitário baixo. Por contraste, o capitalismo da vigilância exige economias de escala na extração do excedente comportamental (…) Ao invés de aprofundar a relação entre oferta e procura com as suas gentes, a Google optou por reinventar o negócio em torno da procura ascendente dos anunciantes, ansiosos por espremerem e rasparem os comportamentos online, recorrendo a qualquer meio disponível na corrida para obterem vantagem de mercado. Na nova operação, os utilizadores deixam de ser fins em si-mesmos, mas meios para fins alheios.(…)

[N]esta nova forma de mercado (…) servir as necessidades das pessoas é menos lucrativo e, portanto, menos importante do que vender previsões do nosso comportamento. A Google descobriu que valemos menos do que as apostas alheias sobre o nosso comportamento futuro (em itálico no original).

A Google descobriu uma forma de traduzir as suas interações extramercado com os utilizadores numa matéria-prima bruta para o fabrico de produtos orientados para as transações de mercado genuínas com os verdadeiros clientes: os seus anunciantes. (…)

Já não somos os sujeitos da realização de valor. Nem somos (…) os produtos das vendas da Google. Pelo contrário, somos os objetos dos quais se extraem e expropriam matérias-primas para as fábricas preditivas da Google. Os produtos da Google são as previsões sobre os nossos comportamentos que ela vende aos seus verdadeiros clientes, mas não a nós. Somos os meios para os propósitos alheios.

O capitalismo industrial transformava as matérias-primas da natureza em mercadorias e o capitalismo de vigilância reclama agora a substância da natureza humana em nome da invenção de uma nova mercadoria. Agora é a natureza humana que se colhe, desfaz e apropria, com destino a um projeto de mercado de um outro século. (…) Aqui a essência da exploração é a transformação das nossas vidas em dados comportamentais, para atribuir a outrem maior controlo sobre nós”. Fim de citação

 

O ensino na altura praticado tinha esta largueza de horizontes facilmente dedutível quando se garante que os pontos acima referidos eram apenas questões complementares ou mesmo marginais dentro de um programa [1]. Note-se ainda que muito do que acima foi dito era depois aprofundado em múltiplas disciplinas e com um rigor que não encontramos hoje. Disso, dou dois exemplos tomando como referência disciplinas em que trabalhei. As curvas de indiferença e as isoquantas, assim como a complicada questão da agregação de curvas individuais para as curvas coletivas, o ótimo do consumidor e do produtor, as funções de produção, tudo isso era dissecado ao detalhe em economia internacional. As outras categorias acima referidas e ligadas aí à teoria do valor recebiam tratamento formal aprofundado na disciplina de Economia Marxista tomando como uma das grandes referências na disciplina não Marx mas sim Piero Sraffa e, depois, alguns neoricardianos modernos como Luigi Pasinetti, professor emérito na Universidade Católica de Milão, ou Bertram Schefold, hoje professor de Economia da Universidade Goethe em Frankfurt am Main, pelo que vejo na Wikipedia.

Sublinhe-se, porém, que nada do que acabamos de dizer é hoje possível em qualquer Faculdade de Economia deste país, e é pena, muita pena. Possivelmente nem como economia isto seria hoje considerado, porque fora das belas curvas desenhadas a partir de equações exotéricas representativas de um mundo que não existe, bem cunhado por Samuelson como o mundo As IF, e que definem o modelo neoclássico nas suas múltiplas vertentes, não há ciência económica, há apenas ideologia. É, no entanto Samuelson que bem mais tarde vem a Lisboa dizer que se alguém merecia o Nobel não era ele, era Piero Sraffa. Trinta anos depois verificamos que o que domina por inteiro no ensino de economia é a versão simplificada do que era o mundo As IF de Samuelson naquele tempo, uma versão exercida tanto pelas gentes de direita como de esquerda e isto não tem nada a ver comigo.

Dos debates abertos desse tempo entre, por um lado, neoricardianos e neokeynesianos e, por outro lado, os neoclássicos, restam apenas sombras e mesmo essas, muito esbatidas. O pensamento único impôs-se, eliminando no que é importante no ensino de economia tudo o que é pensamento heterodoxo, tudo o que é pensamento fora da caixa oficial, “democraticamente” assim. O que ensinaram Sraffa, Passinetti, Schefold, Roncaglia e tantos outros no quadro destas duas linhas de pensamento económico fica no caixote do lixo da História do Pensamento Económico. E os resultados desta prática estão bem à vista para quem os quer ver e podem ser exemplificados na pergunta feita pela rainha Isabel II na London School of Economics quando rebentou a crise dita de subprime: não viram nenhum sinal do que estava a chegar? E aqui cito de memória.

Fomos uma comunidade de gente empenhada que contra ventos e muitas marés levámos a FEUC a bom porto e tanto é assim que um professor do ISEG na década dos anos 80 considerava o curso de Economia da FEUC como o curso de economia mais equilibrado do país na época (cito de memória). E porque sinto que assim o fomos, todos nós, sinto que nesta hora de fim de um ciclo teu, devo dizer-te obrigado por ter também trabalhado em conjunto contigo e no que a mim me diz respeito.

Situando-me neste texto exclusivamente no reconhecimento da tua vida de docente, pois quanto ao resto quem sou para me pronunciar?

Devo ainda, a terminar, referir o período em que foste Presidente do Conselho Científico. Deste período guardo a ideia bem viva de uma mulher de Estado, salvaguardando sempre o fundamental na dinâmica da FEUC e deixando cair o acessório quando isso era necessário para salvaguardar o equilíbrio de qualquer colega que estivesse em causa. E algumas vezes isso foi necessário quanto a datas de apresentação de teses, entre muitos outros exemplos possíveis. O respeito pelo Outro ou pelo que nele era fundamental, era pela tua parte e na qualidade de Presidente do Conselho Científico ou nas relações simples entre colegas uma constante o que é tanto mais de saudar quanto hoje é uma prática que no plano coletivo se reconhece cada vez menos. Mesmo aqui e do fundo de mim mesmo, no que a mim me diz respeito especificamente quanto a esse período, aqui deixo expresso o meu reconhecimento pela disponibilidade havida na qualidade de Presidente do Conselho Científico e pela compreensão pessoal para com a minha situação. Por contraponto a esse tempo, tempo de respeito pelo Outro e de solidariedades múltiplas, como exemplifico com a nota para o livro do ISEG, vivemos hoje um tempo de individualismos extremos, uma diferença que vale sempre a pena assinalar.

Que o teu próximo ciclo de vida seja tão rico em contribuições para a sociedade quanto o foram os anteriores, são os meus votos. E é tudo.

 

 

Nota

[1] Mesmo aqui não creio que hoje se ensine em Portugal, em qualquer Universidade e em qualquer dos 3 anos do curso, o modelo input-output como era ensinado naquela época e em Economia I, a partir de um trabalho do nosso colega e amigo Joaquim Feio.

 

 

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