Para lá da guerra na Ucrânia… sobre o capitalismo moderno — Três Reis Magos do capitalismo moderno.  Por Carlos Matos Gomes

 

Seleção de Francisco Tavares

5 min de leitura

Três Reis Magos do capitalismo moderno

 Por Carlos Matos Gomes

Publicado em 6 de Janeiro de 2023 (original aqui)

 

 

Quanto a reis magos há histórias para todos os gostos — desde não serem reis, não serem três, mas doze, de não serem magos — até à crença mais ou menos generalizada no ocidente cristão que Belchior, Gaspar e Mechior eram homens poderosos, muito ricos, que vieram oferecer bens representativos da sua riqueza e poder, ouro, incenso e mirra a um ser que alguém lhes dissera que seria um novo Deus e com quem eles queriam estar de bem.

Ao longo da História tem sido recorrente o aparecimento de Magos a oferecer presentes a deuses com o fim de manterem o seu poder sobre os homens e para manter um sistema de domínio que lhes permita fazê-lo em segurança e com o seu apoio.

O jornal The Guardian, num artigo de 24 de Dezembro, regressou ao tema dos reis magos e apresentou o último trio. Atribuiu-lhe nomes e revelou onde exerciam as artes que lhes permitiram acumular poder e riqueza: «Trump, Bankman-Fried e Musk são os monstros do capitalismo americano!»

Quem são?

Trump é conhecido e dispensa apresentações. Assim como Elon Musk. Falta o Sam Bankman-Fried — um jovem americano nascido em 1992 e especulador financeiro que criou a FTX, uma start up que foi a Bolsa de Valores de criptomoedas. O património líquido de Bankman-Fried atingiu o máximo de 26 mil milhões de dólares. Em outubro de 2022, ainda tinha um patrimônio líquido estimado em 10 mil milhões. No entanto, em 8 de novembro de 2022, a FTX entrou em falência e de um dia para o outro perdeu 94% do seu valor, a maior queda em um dia da história do índice Bloomberg Billionaires Index. Em 11 de novembro de 2022, o Bloomberg Billionaires Index considerou que Bankman-Fried não tinha riqueza material, mas enquanto foi rico, este jovem rei mago era (tal como os seus sucessores de há dois mil anos) um grande doador (filantropo) para campanhas políticas, e planeava gastar dezenas de milhões nas eleições de 2024.

Sam Bankman-Fried foi acusado dos habituais crimes dos reis magos, adaptados aos tempos: fraude fiscal, fraude eletrónica eletrônica, fraude de commodities, fraude de valores mobiliários, lavagem de dinheiro e lei de financiamento de campanhas políticas. Trump anda agora a passar pelos mesmos assados e Musk parece ser o único dos magos que ainda não perdeu as graças dos deuses, muito por graça da guerra na Ucrânia em boa parte possível de ser conduzida pelo aluguer dos seus sistemas de informações, de dados e de satélites.

O artigo do The Gardian conclui: Para eles, e para todos que ainda os consideram heróis, não há moralidade nos negócios ou na economia. Os lucros vão para os mais implacáveis. Se a ação destes seres apresentar qualquer lição, são os dos custos sociais da ganância. O capitalismo tem como premissa a ganância, mas também as grades de proteção — leis e normas — que impedem que a ganância se torne tão excessiva que ameace o sistema como um todo.

No entanto, as grades de proteção não podem funcionar quando a avareza se torna o traço definidor de uma era, como é agora. Leis e normas não são barreira para a possibilidade de arrecadar bilhões se o autor (o mago) for suficientemente implacável e sem princípios.

As declarações de impostos de Donald Trump, recentemente tornadas públicas, revelam que ele apresentou deduções falsas para reduzir sua responsabilidade fiscal até zero em 2020.

Trump já é sinónimo de ganância e violação agressiva de leis e normas para acumular dinheiro e poder, mas o grave é que esse tipo de atitude é apresentado como um exemplo para a sociedade, pois ele foi presidente dos Estados Unidos, que exemplifica e até celebra esses traços, como o caminho para fazer a América grande de novo!

Enquanto isso, as autoridades do comércio do governo norte-americano acusaram Sam Bankman-Fried de usar ilicitamente o dinheiro dos clientes da FTX, desde o início da empresa, para financiar seu império cripto: “Desde o início, ao contrário do que os investidores da FTX e os clientes comerciais foram informados, Sam Bankman-Fried desviou continuamente os fundos dos clientes da FTX e, em seguida, usou esses fundos para fazer crescer o seu império, usando bilhões de dólares para investimentos de risco privados não revelados, contribuições políticas e compras de imóveis.”

Uma das maiores fraudes da história americana, mas até há pouco Bankman-Fried era considerado um herói capitalista cuja filantropia era um modelo para aspirantes a bilionários (ele e seu parceiro de negócios também doavam generosamente a políticos).

As ações de Trump e de Bankman-Fried desencadearam não apenas perdas para clientes e investidores, mas uma profunda desconfiança e cinismo sobre o sistema capitalista como um todo, a suposição implícita de que isso é exatamente o que os bilionários fazem, que a maneira de fazer uma fortuna é desrespeitar descaradamente as normas e leis. O que nos leva a Elon Musk, cujas manobras de corte e a destruição do Twitter podem fazer até mesmo o capitalista mais raivoso estremecer.

Musk nunca esteve preocupado com leis e normas (manteve a fábrica da Tesla em Freemont, Califórnia, a funcionar durante a pandemia, mesmo quando as autoridades de saúde pública lhe recusaram permissão para fazê-lo, daí resultando uma onda de infeções por Covid entre os trabalhadores). Para ele, trata-se de impor a sua vontade aos outros.

Trump, Bankman-Fried e Musk são os monstros do capitalismo americano — simultaneamente produtos dele e seus criadores. (figuras de dupla personalidade como o dos filmes de terror baseados no romance Dr. Jekyll e Mr Hide, de Robert Stevenson). Para eles, e para todos que ainda os consideram heróis, não há moralidade nos negócios ou na economia. Os princípios são para os anjinhos! Eles são os novos Reis Magos do capitalismo moderno, muito longe do que Adam Smith, julgou que ele viria a ser na sua pouco divulgada Teoria dos Sentimentos Morais, onde argumentava sobre a base ética da sociedade! Adam Smith teria lamentado as crescentes desigualdades, corrupção e cinismo gerados pelo capitalismo moderno e três de seus principais heróis — Trump, Bankman-Fried e Musk.

 

The Guardian 24/12/2022 — Robert Reich

https://www.theguardian.com/business/2022/dec/24/trump-bankman-fried-and-musk-are-the-monsters-of-american-capitalism

 

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O autor: Carlos Matos Gomes [1946-] é coronel reformado do exército, cumpriu três missões na Guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné, nas tropas especiais dos “Comandos”. Ficou ferido em combate e foi condecorado com as Medalhas de Cruz de Guerra de 1.ª e 2.ª Classe.

Capital de Abril pertenceu à Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné.

Investigador de história contemporânea de Portugal. É escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz. Autor de: Nó Cego (1982), Os Lobos não Usam Coleira (1995), Soldadó (1996), Flamingos Dourados (2004), Fala-me de África (2007), Basta-me Viver (2010), A Mulher do Legionário (2013), A Estrada dos Silêncios (2015), A Última Viúva de África (2017, Prémio Fernando Namora 2018), Que fazer contigo, pá? (2019), Angoche-Os fantasmas do Império (2021). Em co-autoria com Aniceto Afonso: Guerra Colonial (2000), Guerra Colonial – Um Repóter em Angola (2001), Portugal e a Grande Guerra 1914-1918 (2013), Os Anos da Guerra Colonial 1961-1975 (2010), Alcora. O Acordo Secreto do Colonialismo. Portugal, África do Sul e Rodésia na última fase da guerra colonial (2013), Portugal e a Grande Guerra 1914 – 1915. Uma História Diferente (2014), Portugal e a Grande Guerra 1914 – 1915. As Trincheiras (2014), Portugal e a Grande Guerra 1917 – 1918. Uma Guerra Mundial (2014), Portugal e a Grande Guerra 1919-. O Pós-Guerra (2014), Portugal e a Grande Guerra 1918 – 1919. O fim da Guerra (2014), Portugal e a Grande Guerra 1914- O Início da Guerra (2014), A Conquista das Almas. Cartazes e panfletos da acção psicológica na guerra colonial (2016).

 

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