CARTA DE BRAGA – “do largo da aldeia ao Desassossego” por António Oliveira

Todas as segundas feiras, às dez horas da manhã, lá estava eu, no largo da aldeia, com os títulos dos cinco livros que podia levar nessa semana. Foi a minha avó que me meteu este vício no corpo e, ainda hoje, assim que tenho tempo, ala para a biblioteca com a minha filha. Ela, apesar da pouca idade, já escolhe as leituras e, vamos depois para o jardinzito das traseiras, beber um chá e ler o que podemos!’ 

Foi assim, seriam estas as palavras exactas? que a minha amiga me contou a razão de ter sempre um livro por companhia, aproveitar os intervalos que o emprego lhe permite, para falar das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, as enormes carrinhas Citroen, chapa ondulada, grandes vidros à frente e atrás, as portas logo abertas, assim que se abriam vinha logo o cheirinho dos livros!- para as pessoa poderem entrar e escolher. 

Quantas pessoas teriam ali aprendido a ver as imagens que só a leitura permite, quantas pessoas lamentaram o desaparecimento já em 2002, apesar dos esforços de David Mourão-Ferreira, último director do Serviço de Bibliotecas Itinerantes, porque muitas das povoações mais afastadas deixaram de ter qualquer apoio à leitura, agravado ainda pelo ‘aparecimento’ do império dos telemóveis e das redes sociais, com a quase ausência de incentivos à leitura, como tem sido salientado por críticos variados. 

Aliás, no DN de 28 de Janeiro, o professor, poeta e critico literário António Carlos Cortez, afirma ‘Todos, encarregados de educação, directores de escolas, Universidades, famílias, empresas – vamos ouvindo dizer que há uma falta de educação geral na sociedade portuguesa’. 

Mas Carlos Cortez vai mais longe, ‘Atrevo-me a dizer que a insensibilidade e a rudeza (Camões já condenava esta realidade no século XVI) é transversal a todas as gerações, mas é especialmente grave nas mais novas’ para, depois de uma série de declarações de gente comum a validar esta afirmação, terminar com um quase lamento, ‘Sem livros, sem História, sem Artes, sem Literatura, sem crianças e adolescentes cultos, sem professores que o sejam, Portugal nada será senão o terreno propício dos atavismos de sempre, país sem alma, mero fogo-fátuo, entregue aos futebóis, à estupidez e à ditadura da banalidade. Outra forma de ditadura’. 

Apetece deixar aqui uma série de perguntas, aliás já feitas por outros professores e críticos, ‘Qual será o futuro da leitura como actividade humana? Que importância e funções virá a ter na sociedade? Vai crescer ou desaparecer o apetitepela leitura?; e, por último, uma pergunta que li um dia destes, aparentemente um paradoxo, ‘Será verdade que a actividade de ler se retrai, na mesma medida em que a operação de ler se universaliza?

Tal pergunta nasce da constatação de as campanhas de alfabetização de massas em todo o mundo, incidirem muito mais na capacidade de ler que na capacidade de escrever; estados, igrejas, instituições bibliotecárias e indústria editorial, criadoras da ideologia democrática da leitura pública, estão aparentemente mais interessados na criação de um público cada vez maior de pessoas que leiam, mas não nas que escrevam. 

Note-se que antes do aparecimento da net, da liberdade e do controlo que arrasta, a leitura era o meio mais adequado para a divulgação e difusão de valores e ideologias, até pela facilidade em regular a produção, a distribuição, o ‘armazenamento’ e até o ‘índex’ de textos não convenientes a qualquer sistema; a escrita seria, ‘à partida’, uma actividade inteiramente livre, que se poderia exercer em qualquer lugar e de qualquer modo, fora de qualquer controlo ou censura… mas só ‘à partida’!

Hoje vemos como vigilâncias e controlos se estão a alargar cada vez mais, como a incultura e a boçalidade parecem estar cada vez mais fortes e atrevidas, de tal maneira que, receio bem, a produção do discurso venha a ser seleccionada, controlada, organizada e distribuída de acordo com normas feitas só para proteger os poderes estatuídos. 

Talvez seja bom terminar esta Carta com Bernardo Soares/Pessoa no ‘Livro do Desassossego’, ‘Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em quem se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse’.

 Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra só fica completa quando lida ou ouvida!

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

 

 

2 Comments

  1. Este bocadinho de leitura entro-me na alma
    Não era à segunda que essa ondulada citroem (literalmente onda dos livros que trazia)mas todas as quintas.

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