Assim vai a Espanha… — Ayuso radicaliza a sua estratégia de desmantelamento do sector público e compara a educação escolar com o Holocausto, por Juan Losa

Seleção e tradução de Francisco Tavares

4 min de leitura

Ayuso radicaliza a sua estratégia de desmantelamento do sector público e compara a educação escolar com o Holocausto

 Por Juan Losa

Publicado por  .es, em 1 de Fevereiro de 2023 (original aqui)

 

A Presidente da Comunidade de Madrid mergulha numa narrativa que se apoia em postulados extremistas e procura o confronto. Uma deriva na qual a educação e os cuidados de saúde são utilizados como moeda de troca para criar a divisão.

 

A Presidente da Comunidade de Madrid, Isabel Díaz Ayuso, fala durante uma cerimónia para comemorar o Holocausto, na Assembleia de Madrid, a 31 de Janeiro de 2023, em Madrid. – Fernando Sánchez / EUROPA PRESS.

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Ela fê-lo novamente. A presidente da Comunidade de Madrid, Isabel Díaz Ayuso, endureceu – ainda mais se possível – o seu discurso. Esta terça-feira, num discurso recente por ocasião do Dia da Memória e Prevenção de Crimes Contra a Humanidade, Ayuso comparou o início do Shoah, que em hebraico significa Holocausto, com a situação actual em Espanha.

“Tudo tem uma origem. O Shoah [Holocausto] não começou com a Solução Final. Começou com o apontar do dedo, a criminalização, a desumanização e a discriminação. Exercidas e promovidas pelas autoridades públicas e com os recursos do Estado. Como ainda hoje acontece em todo o mundo, também em Espanha, em escolas públicas, em bairros, em algumas ruas, praças”, chegou mesmo a dizer o líder do PP de Madrid.

Declarações que causaram estupefacção e que se juntam a um argumentário que mergulha em postulados extremistas e o liga à extrema-direita. “Não deixarei uma batalha por acabar, enquanto impuserem unilateralmente um modelo de Espanha em que ninguém votou nas urnas”, disse há apenas quinze dias durante uma entrevista na Trece TV, a estação de televisão da Conferência Episcopal Espanhola.

E na sua disputa pelos votos de Vox, Ayuso não tem qualquer problema em deslegitimar um governo eleito nas urnas, criminalizar os protestos dos profissionais de saúde e educação, ou negar o consenso científico sobre a crise climática. Uma deriva que, univocamente, nos remete para uma estratégia de radicalização do discurso no contexto de um ano eleitoral.

 

O sector público na linha de mira

Nesta deriva extremista, Ayuso mede bem o alvo das suas diatribes. O sector público, com a educação e a saúde em primeiro plano, constitui a maior parte de um discurso que visa apoiar o desmantelamento progressivo do que pertence a todos. Um modus operandi típico da direita que Ayuso levou a novas alturas.

Para isso, usa um argumento que namorisca o ódio, a caricatura e as meias verdades. “Ayuso transformou o exagero e o absurdo numa forma de fazer política, copiada das estratégias de Trump. Isso não é ingénuo, de certa forma mostra uma autenticidade que é valorizada pelos seus eleitores que, quando têm de dar a sua opinião sobre as suas palavras, podem considerá-las exageradas, mas com uma base de verdade. É a política da tensão e do confronto levada ao último extremo”, explica ao Público Verónica Fumanal, assessora de comunicação política.

De facto, para além da dialéctica, mesmo do vocabulário utilizado pela líder conservadora, é a narrativa o que marca a diferença. Uma clara aposta pelas trincheiras e tensões que, nas palavras do especialista em comunicação Pedro Marfil, consegue “posicionar” o eleitorado e aprofundar a divisão: “Ayuso consegue um discurso simples e eficaz, apela à rivalidade, ao conflito, e é isto que torna este tipo de narrativa tão nociva”.

Segundo Marfil, Ayuso é capaz de “manter todo o seu eleitorado alerta, deixando cair no seu discurso que há uma mão oculta que faz e desfaz como quer, há sempre um inimigo próximo, seja ele a esquerda comunista ou o independentismo, coloca as pessoas num dualismo constante que torna a sociedade tensa”.

 

A sombra de MAR [Miguel Ángel Rodríguez]

E, neste guião de crispação e desacordo, é evidente que Miguel Ángel Rodríguez desempenha um papel fundamental. “Pelas minhas mensagens, pela minha agenda, pelo meu trabalho, penso que é ele que vai desempenhar o melhor papel neste momento”, disse a Presidente Ayuso em Janeiro de 2020 sobre o seu chefe de gabinete, mais conhecido como MAR.

Um binómio que lhes trouxe êxitos eleitorais e intensificou a agressividade das mensagens da presidente, impulsionando o confronto com o governo central. Além disso, a forte presença mediática de Ayuso, enquadrada num clima constante de polarização, permite à presidente construir uma narrativa na qual consegue aparecer como líder activa.

No entanto, como salienta Fumanal, é importante relativizar a marca de MAR, uma vez que é ela que, em última análise, sobe ao palco e acende o mecanismo de confronto: “Nenhum conselheiro tem a capacidade de coagir um líder político a pronunciar-se e a fazer sua uma ideia. Portanto, quando um político pronuncia palavras, não importa quem as escreveu ou pensou, ele ou ela torna-as suas para a história”.

 

O engodo do liberalismo

Finalmente, uma das suas ilusões de ótica favoritas: o liberalismo. Ayuso erige-se frequentemente como garante desta doutrina quando, nas suas arengas públicas, mostra um extremismo dificilmente compatível com o pensamento de Adam Smith. Fumanal, de facto, contesta categoricamente esta suposta filiação do presidente da Comunidade de Madrid: “De modo nenhum. Os períodos de iluminismo na Europa são fruto do liberalismo, baseado na razão, na ciência… a sua forma de fazer política é mais característica do obscurantismo, baseado no exagero, no dogma e na fé dos períodos em que a crença era a lei. Se falarmos em termos históricos”.

Marfil, por seu lado, sublinha outra incoerência de natureza ideológica em torno da ideia do Estado. Segundo este especialista em comunicação política, “Ayuso adopta uma narrativa de vitimização que funciona muito bem para ela, que consiste em denunciar um suposto abandono do Estado, alegando uma falta de investimento, o que, de certa forma, contradiz a máxima do liberalismo que procura minimizar a sua intervenção”.

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O autor: Juan Losa, jornalista afável com uma trajectória difusa. Começou como crucigramista num extinto jornal catalão e desde então não deixou de trabalhar onde quer que pudesse como editor de informação local, desportiva e internacional.

 

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