Seleção e tradução de Francisco Tavares
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Como os EUA Eliminaram o Gasoduto Nord Stream
O New York Times chamou-lhe “mistério”, mas os Estados Unidos executaram uma operação marítima secreta que foi mantida em segredo – até agora
Substack, publicado em 8 de Fevereiro de 2023 (original aqui)
O Centro de Mergulho e Salvamento da Marinha dos EUA pode ser encontrado num local tão obscuro como o seu nome – o que outrora foi uma pista de campo na cidade rural do Panamá, uma cidade resort agora em expansão no sudoeste da Florida, 70 milhas a sul da fronteira do Alabama. O complexo do centro é tão desinteressante como a sua localização – uma estrutura draconiana de betão pós Segunda Guerra Mundial que tem o aspecto de uma escola secundária profissional no lado oeste de Chicago. No outro lado do que é agora uma estrada de quatro faixas há uma lavandaria operada por moedas e uma escola de dança.
O centro tem vindo a treinar mergulhadores de águas profundas altamente qualificados há décadas que, uma vez destacados para unidades militares americanas em todo o mundo, são capazes de mergulhar tecnicamente para fazer o bom uso de explosivos C4 para limpar portos e praias de detritos e de material por explodir – bem como o mau, como explodir plataformas petrolíferas estrangeiras, entupir válvulas de admissão para centrais eléctricas submarinas, destruir eclusas em canais de navegação cruciais. O centro da Cidade do Panamá, que ostenta a segunda maior piscina interior da América, foi o local perfeito para recrutar os melhores, e mais taciturnos, licenciados da escola de mergulho que fizeram com sucesso no Verão passado o que tinham sido autorizados a fazer a 260 pés abaixo da superfície do Mar Báltico.
Em Junho passado, os mergulhadores da Marinha, operando sob a cobertura de um exercício da NATO amplamente divulgado em meados do Verão conhecido como BALTOPS 22, colocaram os explosivos accionados à distância que, três meses mais tarde, destruíram três dos quatro oleodutos Nord Stream, de acordo com uma fonte com conhecimento directo do planeamento operacional.
Dois dos gasodutos, que eram conhecidos colectivamente como Nord Stream 1, estiveram a fornecer à Alemanha e a grande parte da Europa Ocidental gás natural russo barato durante mais de uma década. Um segundo par de gasodutos, denominado Nord Stream 2, tinha sido construído mas ainda não estava operacional. Agora, com as tropas russas a juntarem-se na fronteira ucraniana e a guerra mais sangrenta na Europa desde 1945 a aproximar-se, o Presidente Joseph Biden via os gasodutos como um veículo para Vladimir Putin utilizar como arma o gás natural para as suas ambições políticas e territoriais.
Pedida para comentar, Adrienne Watson, porta-voz da Casa Branca, disse num e-mail: “Isto é falso e uma ficção completa”. Tammy Thorp, porta-voz da Agência Central de Inteligência, escreveu igualmente: “Esta afirmação é completa e totalmente falsa”.
A decisão de Biden de sabotar os oleodutos veio depois de mais de nove meses de debate altamente secreto dentro da comunidade de segurança nacional de Washington sobre a melhor forma de atingir esse objectivo. Durante grande parte desse tempo, a questão não era saber se a missão deveria ser cumprida, mas sim como fazê-lo sem qualquer indício claro de quem era o responsável.
Havia uma razão burocrática vital para confiar nos graduados da escola de mergulho hardcore do centro na Cidade do Panamá. Os mergulhadores eram apenas da Marinha, e não membros do Comando de Operações Especiais da América, cujas operações secretas devem ser comunicadas ao Congresso e informadas com antecedência ao Senado e à liderança da Câmara – o chamado Gangue dos Oito [1]. A Administração Biden estava a fazer todos os possíveis para evitar fugas, uma vez que o planeamento teve lugar no final de 2021 e durante os primeiros meses de 2022.
O Presidente Biden e a sua equipa de política externa – o Conselheiro Nacional de Segurança Jake Sullivan, o Secretário de Estado Tony Blinken, e Victoria Nuland, a Subsecretária de Estado para a Política – têm sido eloquentes e consistentes na sua hostilidade aos dois oleodutos, que corriam lado a lado durante 750 milhas sob o Mar Báltico a partir de dois portos diferentes no nordeste da Rússia perto da fronteira com a Estónia, passando perto da ilha dinamarquesa de Bornholm antes de terminarem no norte da Alemanha.
A rota directa, que contornava qualquer necessidade de transitar pela Ucrânia, tinha sido uma bênção para a economia alemã, que usufruía de uma abundância de gás natural russo barato – suficiente para gerir as suas fábricas e aquecer as suas casas, ao mesmo tempo que permitia aos distribuidores alemães vender o excesso de gás, com lucro, em toda a Europa Ocidental. Uma acção que pudesse ser rastreada até à administração violaria as promessas dos EUA de minimizar o conflito directo com a Rússia. O segredo era essencial.
Desde os seus primórdios, o Nord Stream 1 foi visto por Washington e pelos seus parceiros anti-russos da NATO como uma ameaça ao domínio ocidental. A holding por detrás dela, Nord Stream AG, foi constituída na Suíça em 2005 em parceria com a Gazprom, uma empresa russa cotada na bolsa que produz lucros enormes para os accionistas e que é dominada por oligarcas conhecidos por estarem sob controlo de Putin. A Gazprom controlava 51% da empresa, com quatro empresas energéticas europeias – uma em França, uma na Holanda e duas na Alemanha – partilhando os restantes 49% do capital, e tendo o direito de controlar as vendas a jusante do gás natural a distribuidores locais na Alemanha e na Europa Ocidental. Os lucros da Gazprom foram partilhados com o governo russo, e as receitas estatais de gás e petróleo foram estimadas, em alguns anos, em 45 por cento do orçamento anual da Rússia.
Os receios políticos da América eram reais: Putin teria agora uma importante fonte de rendimento adicional e muito necessária, e a Alemanha e o resto da Europa Ocidental ficariam viciados em gás natural de baixo custo fornecido pela Rússia – ao mesmo tempo que diminuiriam a dependência europeia da América. Na realidade, foi exactamente isso que aconteceu. Muitos alemães viram o Nord Stream 1 como parte do cumprimento da famosa teoria Ostpolitik do antigo Chanceler Willy Brandt, que permitiria à Alemanha do pós-guerra reabilitar-se e a outras nações europeias destruídas na Segunda Guerra Mundial, entre outras iniciativas, utilizando gás russo barato para alimentar um próspero mercado e economia comercial da Europa Ocidental.
O Nord Stream 1 era suficientemente perigoso, na opinião da NATO e de Washington, mas o Nord Stream 2, cuja construção foi concluída em Setembro de 2021, iria, se aprovado pelos reguladores alemães, duplicar a quantidade de gás barato que estaria disponível para a Alemanha e a Europa Ocidental. O segundo gasoduto também forneceria gás suficiente para mais de 50 por cento do consumo anual da Alemanha. As tensões entre a Rússia e a NATO estavam constantemente a aumentar, apoiadas pela agressiva política externa da Administração Biden.
A oposição ao Nord Stream 2 incendiou-se na véspera da tomada de posse de Biden em Janeiro de 2021, quando os Republicanos do Senado, liderados por Ted Cruz do Texas, levantaram repetidamente a ameaça política do gás natural russo barato durante a audiência de confirmação de Blinken como Secretário de Estado. Nessa altura, um Senado unificado tinha aprovado com sucesso uma lei que, como disse Cruz a Blinken, “parou em seco [o gasoduto]”. Haveria uma enorme pressão política e económica por parte do governo alemão, então chefiado por Angela Merkel, para colocar em linha o segundo gasoduto.
Será que Biden enfrentaria os Alemães? Blinken disse que sim, mas acrescentou que não tinha discutido os pontos de vista específicos do novo Presidente. “Conheço a sua forte convicção de que se trata de uma má ideia, o Nord Stream 2”, disse ele. “Sei que ele gostaria que usássemos todas as ferramentas persuasivas que temos para convencer os nossos amigos e parceiros, incluindo a Alemanha, a não avançar com ele”.
Alguns meses mais tarde, quando a construção do segundo gasoduto se aproximava da conclusão, Biden pestanejou. Em Maio, numa reviravolta surpreendente, a administração renunciou às sanções contra a Nord Stream AG, tendo um funcionário do Departamento de Estado admitido que tentar parar o oleoduto através de sanções e diplomacia tinha sido “sempre um tiro no escuro”. Nos bastidores, funcionários da administração alegadamente instaram o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, enfrentando então uma ameaça de invasão russa, a não criticar a medida.
Houve consequências imediatas. Os Republicanos do Senado, liderados por Cruz, anunciaram um bloqueio imediato a todos os nomeados para a política externa de Biden e atrasaram a aprovação do projecto de lei anual da defesa durante meses, entrados já no Outono. Mais tarde, o Politico descreveu a viragem de Biden quanto ao segundo gasoduto russo como “a única decisão, provavelmente mais do que a caótica retirada militar do Afeganistão, que pôs em perigo a agenda de Biden”.
A administração estava a hesitar, apesar de ter obtido um adiamento da crise em meados de Novembro, quando os reguladores de energia da Alemanha suspenderam a aprovação do segundo gasoduto Nord Stream. Os preços do gás natural subiram 8% em poucos dias, no meio de receios crescentes na Alemanha e na Europa de que a suspensão do gasoduto e a possibilidade crescente de uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia levassem a um Inverno frio muito indesejado. Não era claro para Washington onde se encontrava Olaf Scholz, o recém-nomeado chanceler alemão. Meses antes, após a queda do Afeganistão, Scholtz tinha apoiado publicamente o apelo do Presidente francês Emmanuel Macron a uma política externa europeia mais autónoma num discurso em Praga – sugerindo claramente menos confiança em Washington e nas suas acções volúveis.
Ao longo de tudo isto, as tropas russas tinham vindo a acumular-se de forma constante e sinistra nas fronteiras da Ucrânia, e no final de Dezembro mais de 100.000 soldados estavam em posição de atacar a partir da Bielorrússia e da Crimeia. O alarme aumentava em Washington, incluindo uma avaliação de Blinken de que o número dessas tropas poderia ser “duplicado em curto prazo”.
A atenção da administração centrou-se mais uma vez no Nord Stream. Enquanto a Europa permanecesse dependente dos gasodutos de gás natural barato, Washington receava que países como a Alemanha estivessem relutantes em fornecer à Ucrânia o dinheiro e as armas de que necessitava para derrotar a Rússia.
Foi neste momento inseguro que Biden autorizou Jake Sullivan a reunir um grupo inter-agências para elaborar um plano.
Todas as opções deveriam estar em cima da mesa. Mas apenas uma surgiria.
O Plano
Em Dezembro de 2021, dois meses antes dos primeiros tanques russos entrarem na Ucrânia, Jake Sullivan convocou uma reunião de um grupo de trabalho recentemente formado – homens e mulheres dos Chefes do Estado-Maior Conjunto, da CIA, e dos Departamentos de Estado e do Tesouro – e pediu recomendações sobre como responder à iminente invasão de Putin.
Seria a primeira de uma série de reuniões ultra-secretas, numa sala segura num andar superior do antigo edifício do Gabinete Executivo, adjacente à Casa Branca, que era também a casa do Conselho Consultivo de Informações Externas do Presidente (PFIAB). Houve as habituais conversas de ida e volta que acabaram por conduzir a uma questão preliminar crucial: Seria a recomendação transmitida pelo grupo ao Presidente reversível – como outra camada de sanções e restrições monetárias – ou irreversível – isto é, acções cinéticas, que não poderiam ser desfeitas?
O que ficou claro para os participantes, segundo a fonte com conhecimento directo do processo, é que Sullivan pretendia que o grupo apresentasse um plano para a destruição dos dois gasodutos Nord Stream – e que ele estava a cumprir os desejos do Presidente.

Nas várias reuniões seguintes, os participantes debateram opções para um ataque. A Marinha propôs a utilização de um submarino recentemente encomendado para atacar directamente o oleoduto. A Força Aérea discutiu o lançamento de bombas com fusíveis atrasados que poderiam ser detonados remotamente. A CIA argumentou que o que quer que fosse feito, teria de ser encoberto. Todos os envolvidos compreenderam o que estava em jogo. “Isto não é coisa de criança”, disse a fonte. Se o ataque fosse rastreável até aos Estados Unidos, “seria um acto de guerra”.
Na altura, a CIA era dirigida por William Burns, um antigo embaixador de temperamento suave na Rússia, que tinha servido como secretário de Estado adjunto na administração Obama. Burns rapidamente autorizou um grupo de trabalho da Agência cujos membros ad hoc incluíam por acaso – alguém que estava familiarizado com as capacidades dos mergulhadores de alto-mar da Marinha na Cidade do Panamá. Durante as semanas seguintes, os membros do grupo de trabalho da CIA começaram a elaborar um plano para uma operação secreta que utilizaria mergulhadores de alto mar para desencadear uma explosão ao longo do oleoduto.
Algo como isto já tinha sido feito antes. Em 1971, a comunidade de inteligência americana soube de fontes ainda não reveladas que duas importantes unidades da marinha russa estavam a comunicar através de um cabo submarino enterrado no mar de Okhotsk, na costa do Extremo Oriente russo. O cabo ligava um comando regional da Marinha ao quartel-general continental em Vladivostok. Uma equipa escolhida a dedo de agentes da Agência Central de Inteligência (CIA) e da Agência Nacional de Segurança (NSA) foi reunida algures na área de Washington, em segredo, e elaborou um plano, utilizando mergulhadores da Marinha, submarinos modificados e um veículo de resgate submarino profundo, que conseguiu, após muita tentativa e erro, localizar o cabo russo. Os mergulhadores colocaram um sofisticado dispositivo de escuta no cabo que interceptou com sucesso o tráfego russo e o gravou num sistema de gravação.
A NSA soube que oficiais superiores da marinha russa, convencidos da segurança da sua ligação de comunicação, conversaram com os seus pares sem encriptação. O dispositivo de gravação e a sua cassete tinham de ser substituídos mensalmente e o projecto continuou alegremente durante uma década, até ser comprometido por um técnico civil da NSA de quarenta e quatro anos, chamado Ronald Pelton, que era fluente em russo. Pelton foi traído por um desertor russo em 1985 e condenado a uma pena de prisão. Os russos pagaram-lhe apenas $5.000 pelas suas revelações sobre a operação, além de $35.000 por outros dados operacionais russos que ele forneceu e que nunca foram tornados públicos. Este sucesso submarino, com o nome de código Ivy Bells, foi inovador e arriscado, e produziu informação de inteligência inestimável sobre as intenções e planeamento da Marinha russa.
Ainda assim, o grupo inter-agências foi inicialmente céptico quanto ao entusiasmo da CIA por um ataque encoberto em alto mar. Havia demasiadas perguntas por responder. As águas do Mar Báltico eram fortemente patrulhadas pela marinha russa, e não havia plataformas petrolíferas que pudessem ser utilizadas como cobertura para uma operação de mergulho. Será que os mergulhadores teriam de ir à Estónia, mesmo do outro lado da fronteira das docas de carregamento de gás natural da Rússia, para treinar para a missão? “Seria uma chatice de merda”, foi dito à Agência.
Ao longo de “todo este esquema”, disse a fonte, “alguns tipos da CIA e do Departamento de Estado estavam a dizer: ‘Não faças isto. É uma estupidez e será um pesadelo político se se souber”.
No entanto, no início de 2022, o grupo de trabalho da CIA apresentou um relatório ao grupo inter-agências de Sullivan: “Temos uma forma de fazer explodir os gasodutos”.
O que se seguiu foi espantoso. A 7 de Fevereiro, menos de três semanas antes da aparentemente inevitável invasão russa da Ucrânia, Biden encontrou-se no seu gabinete da Casa Branca com o Chanceler alemão Olaf Scholz, que, depois de algumas oscilações, se encontrava agora firmemente na equipa americana. Na conferência de imprensa que se seguiu, Biden disse desafiadoramente: “Se a Rússia invadir… deixará de haver um Nord Stream 2. Acabaremos com ele“.
Vinte dias antes, a Subsecretária Nuland tinha transmitido essencialmente a mesma mensagem num briefing do Departamento de Estado, com pouca cobertura por parte da imprensa. “Quero ser muito clara para vós hoje”, disse ela em resposta a uma pergunta. “Se a Rússia invadir a Ucrânia, de uma forma ou de outra o Nord Stream 2 não avançará“.
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Vários dos envolvidos no planeamento da missão do gasoduto ficaram consternados com o que consideraram como referências indirectas ao ataque.
“Foi como colocar uma bomba atómica no chão em Tóquio e dizer aos japoneses que a vamos detonar”, disse a fonte. “O plano era que as opções fossem executadas após a invasão e não fossem anunciadas publicamente. Biden simplesmente não o entendeu ou ignorou-o”.
A indiscrição de Biden e Nuland, se é isso que foi, pode ter frustrado alguns dos planeadores. Mas também criou uma oportunidade. Segundo a fonte, alguns dos altos funcionários da CIA determinaram que explodir o gasoduto “já não podia ser considerado uma opção encoberta porque o Presidente acabou de anunciar que sabíamos como o fazer”.
O plano de fazer explodir o Nord Stream 1 e 2 passou subitamente de uma operação encoberta exigindo que o Congresso fosse informado, para passar a ser uma que foi considerada como uma operação de inteligência altamente classificada com o apoio militar dos EUA. Nos termos da lei, a fonte explicou: “Já não havia a obrigação legal de informar o Congresso sobre a operação. Tudo o que tinham de fazer agora era apenas fazê-lo – mas ainda assim tinha de ser secreto. Os russos têm uma vigilância máxima do Mar Báltico”.
Os membros do grupo de trabalho da Agência não tiveram contacto directo com a Casa Branca, e estavam ansiosos por descobrir se o Presidente queria dizer o que disse – isto é, se a missão estava em marcha. A fonte recordou: “Bill Burns voltou e disse: ‘Façam-no'”.

A Operação
A Noruega era o local perfeito para a base da missão.
Nos últimos anos de crise Leste-Oeste, o exército dos EUA expandiu enormemente a sua presença no interior da Noruega, cuja fronteira ocidental se estende por 1.400 milhas ao longo do Oceano Atlântico Norte e se funde acima do Círculo Árctico com a Rússia. O Pentágono criou empregos e contratos altamente remunerados, no meio de alguma controvérsia local, ao investir centenas de milhões de dólares para modernizar e expandir as instalações da Marinha e da Força Aérea americanas na Noruega. As novas obras incluíram, o mais importante, um avançado radar de abertura sintética muito a norte, capaz de penetrar nas profundezas da Rússia e que entrou em funcionamento precisamente quando a comunidade de inteligência americana perdeu o acesso a uma série de locais de escuta de longo alcance dentro da China.
Uma base submarina americana recentemente remodelada, que estava em construção há anos, entrou em funcionamento e mais submarinos americanos puderam agora trabalhar de perto com os seus colegas noruegueses para monitorizar e espiar um grande reduto nuclear russo a 250 milhas a leste, na Península de Kola. Os estados Unidos também expandiram amplamente uma base aérea norueguesa no norte e entregaram à força aérea norueguesa uma frota de aviões de patrulha P8 Poseidon construídos pela Boeing- para reforçar a sua espionagem de longo alcance sobre tudo o que se relacionasse com a Rússia.
Em troca, o governo norueguês enfureceu os liberais e alguns moderados no seu parlamento em Novembro passado ao aprovar o Acordo Suplementar de Cooperação em matéria de Defesa (SDCA). Ao abrigo do novo acordo, o sistema jurídico norte-americano teria jurisdição em certas “áreas acordadas” no Norte sobre os soldados americanos acusados de crimes fora da base, bem como sobre os cidadãos noruegueses acusados ou suspeitos de interferirem com o trabalho na base.
A Noruega foi um dos signatários originais do Tratado da NATO em 1949, nos primeiros dias da Guerra Fria. Hoje, o comandante supremo da NATO é Jens Stoltenberg, um anti-comunista empenhado, que serviu como primeiro-ministro da Noruega durante oito anos antes de se mudar para o seu alto posto na NATO, com o apoio americano, em 2014. Ele foi um partidário da linha dura em tudo o que Putin e a Rússia tinham cooperado com a comunidade dos serviços secretos americanos desde a Guerra do Vietname. Desde então, tem-se confiado completamente nele. “Ele é a luva que se ajusta à mão americana”, disse a fonte.
De volta a Washington, os planeadores sabiam que tinham de ir para a Noruega. “Odiavam os russos, e a marinha norueguesa estava cheia de excelentes marinheiros e mergulhadores que tinham gerações de experiência na exploração altamente lucrativa de petróleo e gás em alto mar”, disse a fonte. Também se podia confiar neles para manter a missão em segredo. (Os noruegueses podem também ter tido outros interesses. A destruição do Nord Stream – se os norte-americanos conseguissem fazê-lo – permitiria à Noruega vender muito mais do seu próprio gás natural à Europa).
Algures em Março, alguns membros da equipa voaram para a Noruega para se encontrarem com os Serviços Secretos e a Marinha norueguesa. Uma das questões-chave era onde exactamente no Mar Báltico era o melhor local para colocar os explosivos. Nord Stream 1 e 2, cada um com dois conjuntos de gasodutos, estavam afastados entre si pouco mais de uma milha no seu percurso para o porto de Greifswald, no extremo nordeste da Alemanha.
A marinha norueguesa encontrou rapidamente o ponto certo, nas águas pouco profundas do mar Báltico, a poucos quilómetros da ilha de Bornholm, na Dinamarca. Os gasodutos corriam a mais de uma milha de distância ao longo de um fundo do mar que tinha apenas 260 pés de profundidade. Isso estaria bem dentro do alcance dos mergulhadores, que, operando a partir de um caçador de minas norueguês de classe Alta, mergulhariam com uma mistura de oxigénio, nitrogénio e hélio a correr dos seus tanques, e colocariam cargas C4 configuradas nos quatro gasodutos com coberturas protectoras de betão. Tratava-se de um trabalho fastidioso, demorado e perigoso, mas as águas de Bornholm tinham outra vantagem: não existiam grandes correntes de maré, o que teria tornado a tarefa de mergulhar muito mais difícil.
Depois de algumas investigações, os americanos estavam todos envolvidos.
Nesta altura, o obscuro grupo de mergulho profundo da Marinha na Cidade do Panamá entrou mais uma vez em jogo. As escolas de mergulho profundo na Cidade do Panamá, cujos alunos participaram em Ivy Bells, são vistas como um indesejável remanso pelos graduados de elite da Academia Naval em Annapolis, que normalmente procuram a glória de ser designados como Seal [equipa de operações especiais da marinha dos EUA], piloto de caça, ou submarinista. Se alguém tem de se tornar um “Sapato Negro” – isto é, um membro da menos desejável comando dos navios de superfície – há sempre pelo menos um dever num contratorpedeiro, num cruzador ou num navio anfíbio. O menos glamoroso de tudo é a guerra contra as minas. Os seus mergulhadores nunca aparecem em filmes de Hollywood, nem na capa de revistas populares.
“Os melhores mergulhadores com qualificações de mergulho profundo são uma comunidade muito restrita, e apenas os melhores são recrutados para a operação e são instruídos para estarem preparados para serem convocados pela CIA em Washington”, disse a fonte.
Os noruegueses e americanos tinham uma localização e os operacionais, mas havia outra preocupação: qualquer actividade subaquática fora do comum nas águas ao largo de Bornholm poderia chamar a atenção das marinhas suecas ou dinamarquesas, que poderiam denunciá-la.
A Dinamarca também tinha sido um dos signatários originais da NATO e era conhecida na comunidade dos serviços secretos pelos seus laços especiais com o Reino Unido. A Suécia tinha-se candidatado à adesão à NATO, e tinha demonstrado a sua grande habilidade na gestão dos seus sistemas de som e sensores magnéticos submarinos que rastreavam com sucesso os submarinos russos que ocasionalmente apareciam em águas remotas do arquipélago sueco e eram forçados a vir à superfície.
Os noruegueses juntaram-se aos americanos insistindo que alguns altos funcionários na Dinamarca e na Suécia tinham de ser informados em termos gerais sobre possíveis actividades de mergulho na área. Desta forma, alguém superior poderia intervir e manter um relatório fora da cadeia de comando, isolando assim a operação do gasoduto. “O que lhes foi dito e o que eles sabiam era propositadamente diferente”, disse-me a fonte (a embaixada norueguesa, pedida para comentar esta história, não respondeu).
Os noruegueses foram a chave para resolver outros obstáculos. A marinha russa era conhecida por possuir tecnologia de vigilância capaz de detectar e despoletar minas submarinas. Os dispositivos explosivos americanos precisavam de ser camuflados de uma forma que os fizesse aparecer ao sistema russo como parte do fundo natural – algo que exigisse uma adaptação à salinidade específica da água. Os noruegueses tinham uma solução.
Os noruegueses também tinham uma solução para a questão crucial de quando a operação deveria ter lugar. Todos os anos em Junho, nos últimos 21 anos, a Sexta Frota Americana, cujo navio principal está baseado em Gaeta, Itália, a sul de Roma, tem patrocinado um importante exercício da NATO no Mar Báltico, envolvendo dezenas de navios aliados em toda a região. O exercício actual, realizado em Junho, seria conhecido como Baltic Operations 22, ou BALTOPS 22. Os noruegueses propuseram que esta seria a cobertura ideal para colocar as minas.
Os americanos forneceram um elemento vital: convenceram os planificadores da Sexta Frota a acrescentar um exercício de investigação e desenvolvimento ao programa. O exercício, como tornado público pela Marinha, envolveu a Sexta Frota em colaboração com os “centros de investigação e guerra” da Marinha. O evento no mar seria realizado ao largo da costa da Ilha de Bornholm e envolveria equipas da NATO de mergulhadores colocando minas, com equipas concorrentes utilizando a mais recente tecnologia subaquática para as encontrar e destruir.
Foi ao mesmo tempo um exercício útil e uma cobertura engenhosa. Os rapazes da Cidade do Panamá fariam o seu trabalho e os explosivos C4 estariam no local no final do BALTOPS22, com um temporizador de 48 horas ligado. Todos os americanos e noruegueses já teriam desaparecido há muito aquando da primeira explosão.
Os dias estavam em contagem decrescente. “O relógio estava a contar, e estávamos prestes a cumprir a missão”, disse a fonte.
E depois: Washington mudou de opinião. As bombas ainda seriam colocadas durante o exercício BALTOPS, mas a Casa Branca temia que um espaço de dois dias para a sua detonação estivesse demasiado próximo do fim do exercício, e seria óbvio que a América tinha estado envolvida.
Em vez disso, a Casa Branca tinha um novo pedido: “Poderão os homens no terreno arranjar alguma forma de rebentar os gasodutos mais tarde com comando à distância?”
Alguns membros da equipa de planeamento ficaram indignados e frustrados com a aparente indecisão do Presidente. Os mergulhadores da Cidade do Panamá tinham praticado repetidamente a colocação de C4s em gasodutos, como fariam durante BALTOPS, mas agora a equipa na Noruega tinha de arranjar uma forma de dar a Biden o que ele queria – a capacidade de emitir uma ordem de execução bem sucedida numa altura da sua escolha.
Ser incumbido de uma mudança arbitrária e de última hora era algo que a CIA estava habituada a gerir. Mas também renovou as preocupações que alguns partilhavam sobre a necessidade, e a legalidade, de toda a operação.
As ordens secretas do Presidente também evocaram o dilema da CIA nos dias da Guerra do Vietname, quando o Presidente Johnson, confrontado com o crescente sentimento anti-Vietname da Guerra, ordenou que a Agência violasse a sua carta – que a impedia especificamente de operar dentro da América – espionando os líderes antiguerra para determinar se eles estavam a ser controlados pela Rússia comunista.
A agência acabou por aceitar, e ao longo dos anos 70 tornou-se claro até onde tinha estado disposta a ir. Houve revelações posteriores em jornais no rescaldo dos escândalos do Watergate sobre a espionagem da Agência a cidadãos americanos, o seu envolvimento no assassinato de líderes estrangeiros e a sua atividade de minar o governo socialista de Salvador Allende.
Estas revelações levaram a uma série dramática de audiências em meados dos anos 70 no Senado, lideradas por Frank Church de Idaho, que deixaram claro que Richard Helms, o director da Agência na altura, aceitou que tinha a obrigação de fazer o que o Presidente queria, mesmo que isso significasse violar a lei.
Em testemunho não publicado e de portas fechadas, Helms explicou com pesar que “quase se tem uma Imaculada Conceição [concepção imaculada] quando se faz algo” sob ordens secretas de um Presidente. “Quer esteja certo ou errado que seja assim, [a CIA] funciona sob regras e normas básicas diferentes das de qualquer outra parte do governo”. Essencialmente, estava a dizer aos senadores que ele, como chefe da CIA, compreendia que tinha estado a trabalhar para a Coroa [o poder], e não para a Constituição.
Os americanos a trabalhar na Noruega operavam sob a mesma dinâmica, e obedientemente começaram a trabalhar no novo problema – como detonar remotamente os explosivos C4 por ordem de Biden. Era uma tarefa muito mais exigente do que se pensava em Washington. Não havia maneira de a equipa na Noruega saber quando é que o Presidente poderia carregar no botão. Seria em poucas semanas, em muitos meses ou em meio ano ou mais?
Os C4 ligados aos gasodutos seriam accionados por uma bóia de sonar largada por um avião num curto espaço de tempo, mas o procedimento envolvia a tecnologia mais avançada de processamento de sinais. Uma vez colocados no lugar, os dispositivos de temporização retardada ligados a qualquer uma das quatro condutas poderiam ser acidentalmente accionados pela complexa mistura de ruídos de fundo oceânico em todo o Mar Báltico, de navios próximos e distantes, perfuração subaquática, eventos sísmicos, ondas e mesmo criaturas marinhas. Para evitar isto, a bóia de sonar, uma vez instalada, emitiria uma sequência de sons tonais únicos de baixa frequência – tais como os emitidos por uma flauta ou um piano – que seriam reconhecidos pelo dispositivo de cronometragem e, após horas pré-definidas de atraso, desencadeariam os explosivos. (“Querem um sinal suficientemente robusto para que nenhum outro sinal possa acidentalmente enviar um impulso que detone os explosivos”, foi-me dito pelo Dr. Theodore Postol, professor emérito da ciência, tecnologia e política de segurança nacional no MIT. Postol, que serviu como conselheiro científico do Chefe de Operações Navais do Pentágono, disse que a questão que o grupo enfrentava na Noruega devido ao atraso de Biden era uma questão de sorte: “Quanto mais tempo os explosivos permanecerem na água, maior será o risco de um sinal aleatório que faria rebentar as bombas”).
A 26 de Setembro de 2022, um avião de vigilância P8 da Marinha Norueguesa fez um voo aparentemente de rotina e largou uma bóia de sonar. O sinal espalhou-se debaixo de água, inicialmente para Nord Stream 2 e depois para Nord Stream 1. Algumas horas mais tarde, os explosivos C4 de alta potência foram activados e três dos quatro gasodutos foram postos fora de serviço. Em poucos minutos, as poças de gás metano que ficaram nas condutas fechadas puderam ser vistas a espalhar-se na superfície da água e o mundo soube que algo irreversível tinha acontecido.
Repercussões
Na sequência imediata do bombardeamento do gasoduto, os media americanos trataram-no como um mistério não resolvido. A Rússia foi repetidamente citada como um provável culpado, impelida por fugas calculadas da Casa Branca – mas sem nunca estabelecer um motivo claro para tal acto de auto-sabotagem, para além da simples retaliação. Alguns meses mais tarde, quando se verificou que as autoridades russas tinham estado a receber discretamente estimativas dos custos de reparação dos gasodutos, o New York Times descreveu a notícia como “teorias complicadas sobre quem estava por detrás” do ataque. Nenhum grande jornal americano se debruçou sobre as anteriores ameaças aos gasodutos feitas por Biden e pela Subsecretária de Estado Nuland.
Embora nunca fosse claro por que razão a Rússia procuraria destruir o seu próprio gasoduto lucrativo, a justificação mais eloquente para a acção do Presidente veio do Secretário de Estado Blinken.
Questionado numa conferência de imprensa em Setembro passado sobre as consequências do agravamento da crise energética na Europa Ocidental, Blinken descreveu o momento como sendo potencialmente bom:
“É uma tremenda oportunidade para eliminar de uma vez por todas a dependência da energia russa e assim retirar a Vladimir Putin a arma da energia como meio de fazer avançar os seus desígnios imperiais. Isso é muito significativo e oferece uma tremenda oportunidade estratégica para os próximos anos, mas entretanto estamos determinados a fazer tudo o que pudermos para garantir que as consequências de tudo isto não sejam suportadas pelos cidadãos dos nossos países ou, aliás, de todo o mundo”.
Mais recentemente, Victoria Nuland expressou satisfação com o desaparecimento do mais recente dos gasodutos. Testemunhando numa audiência da Comissão de Relações Externas do Senado no final de Janeiro, disse ao Senador Ted Cruz: “Tal como vós, estou, e penso que a Administração está, muito satisfeita por saber que o Nord Stream 2 é agora, como gostais de dizer, um pedaço de metal no fundo do mar”.
A [minha] fonte tinha uma visão muito mais realista da decisão de Biden de sabotar mais de 1500 milhas de gasoduto Gazprom à medida que o Inverno se aproximava. “Bem”, disse ele, falando do Presidente, “tenho de admitir que o tipo tem um par de tomates. Ele disse que o ia fazer, e fê-lo”.
Perguntado porque pensava que os russos não respondiam, disse cinicamente: “Talvez eles queiram ter a capacidade de fazer as mesmas coisas que os EUA fizeram”.
“Foi uma bela história de capa”, prosseguiu ele. “Por detrás dela estava uma operação encoberta que colocou peritos no terreno e equipamento que funcionava com um sinal encoberto”.
“A única falha foi a decisão de o fazer”.
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Nota
[1] N.T. O Gangue dos Oito é um termo coloquial para um conjunto de oito líderes dentro do Congresso dos Estados Unidos que são informados sobre assuntos de inteligência classificada pelo ramo executivo. Especificamente, o Gangue dos Oito inclui os líderes de cada um dos dois partidos, tanto do Senado como da Câmara dos Representantes, e os presidentes e membros minoritários do Comité do Senado e do Comité da Câmara para os serviços secretos, tal como estabelecido pelo título 50 do Código dos EUA. (ver wikipedia aqui).
O autor: Seymour Hersh [1937 – ] é um jornalista de investigação estado-unidense. Hersh ganhou o seu primeiro reconhecimento em 1969 por ter exposto o Massacre de My Lai (a 16 de Março de 1968, por tropas dos EUA) e o seu encobrimento durante a Guerra do Vietname, pelo qual recebeu o Prémio Pulitzer de 1970 para a Reportagem Internacional. Durante a década de 1970, Hersh cobriu o escândalo Watergate para o The New York Times e revelou a Operação Menu, o bombardeamento clandestino do Camboja. Em 2004, Hersh relatou os casos de tortura infligidos pelos militares norte-americanos aos detidos na prisão de Abu Ghraib no Iraque. Ganhou também dois prémios da National Magazine e cinco prémios George Polk. Em 2004, recebeu o Prémio George Orwell.
Hersh acusou a administração Obama de mentir sobre os acontecimentos em torno da morte de Osama bin Laden, e contestou a alegação de que o regime de Bashar al-Assad utilizou armas químicas contra civis na Guerra Civil síria.
Sobre o envenenamento de Sergei Skripal (no Reino Unido) disse que Skripal “estava muito provavelmente falar com os serviços secretos britânicos sobre o crime organizado russo”, e que a contaminação de outras vítimas sugeria que o envenenamento era da responsabilidade do crime organizado, em vez de ser patrocinado pelo Estado russo.
Muito naturalmente Hersh tem acérrimos críticos que transmitem a narrativa dos poderes estabelecidos nos meios de comunicação social dominantes (v.g. CNN, Washington Post, New Yorker).
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