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Coimbra, em 15 de Fevereiro de 2023
Meu caro Mário
Brindou-me amável e ironicamente com alguns adjetivos curiosos, mas os meus amigos, e os que o não são também, já me adjetivaram de tantas formas que as suas palavras de ontem estavam simplesmente carregadas de adjetivos para mim já habituais. Mas há uma pergunta sua e uma respostam minha que não são banais.
O curto diálogo terá sido aproximadamente este:
Então, professor, por aqui? Não deveria estar noutro lado?
Onde, perguntei.
Com as forças comunistas de Leste.
Porquê?
Não é esse o sítio onde deve estar a esquerda?
A direita não tem cura na sua teimosia, reagi. E continuei: porque é que a esquerda há de estar a defender Putin, não me diz?
Sim, sou de direita, sim, mas voto nos liberais, reagiu com ar de alguma satisfação por pertença política.
Ah, então será que essa é a posição própria dos liberais, a de assimilar esquerda a marxismo, marxismo a comunismo e comunismo a Putin? Uma assimilação que não bate bem com a sua cultura, com os diabos!
O professor não é marxista?
Meu caro Mário, já lhe disse mais que uma vez que o se passa Leste nada tem a ver com o marxismo nem com o comunismo. Trata-se de um regime puramente autocrático e numa lógica de capitalismo de Estado degradado. Nem de longe nem de perto esta assimilação pode ter sentido. E poderia ter acrescentado: Trata-se de um absurdo histórico, caro Mário. Mas sublinho que é também muito diferente do capitalismo de gangsters que os americanos instalaram com Boris Yeltsine em Moscovo. Aliás, os relatores do Senado francês sobre as relações França -Rússia de 2014 sublinhavam a diferença: com Yelltsine o povo russo sentiu-se roubado, com Putin ganharam a noção de terem uma Pátria. Não estranhe, não sou eu que o digo, está escrito num relatório do Senado francês e assinado por dois relatores que julgo serem gaulistas.. Não perceber isso, é não perceber a década perdida com Clinton quanto ao desanuviamento na Europa, é não perceber que o silêncio a esse nível de tudo permitir aos oligarcas de cá e de lá, inclusive de colocarem a saque os recursos naturais russos, é um dos fatores que levou à situação perigosa que atualmente atravessamos. É essa fatura que se está agora a pagar e bem caro no presente e será bem mais cara no futuro que se avizinha sombrio.
De resto, pergunto-lhe: quando é me ouviu dizer que sou marxista?
Então, se não é marxista é então o quê, perguntou-me com ar seriamente interrogativo, sinal de que estava convicto da sua amável provocação!
Sou um neo-ricardiano de esquerda. E acrescentei: sou-o, não de agora por conveniência política, como pode querer acusar-me, sou-o desde o terceiro ano da Faculdade, no ISEG no início dos 70 [quando percebi que a teoria do valor de Ricardo-Marx era ou insuficiente ou desajustada ou mesmo errada para perceber a dinâmica do capitalismo [1]]. Garanto-lhe que pode contar com os dedos das suas duas mãos quantos neste país lhe poderão dar a mesma resposta que eu. Se pudesse contá-los, veria que ainda lhe sobrariam dedos!
Na fila de espera para pagamento alguém sorri quando ouve esta parte da minha resposta. Não sei se terá entendido o significado do que eu disse, creio que não, ou se sorriu devido à firmeza da minha resposta.
Ser neo-ricardiano de esquerda, isso quer dizer o quê? De esquerda, isso significa que é marxista, foi a sua reação.
E ficámos por aqui neste diálogo na fila de espera para pagamento de um café.
Fica no ar a sua satisfação em afirmar-se como de direita, mas da Iniciativa Liberal, fica no ar a sua pergunta, se não é marxista é o quê, fica no ar a minha resposta de que sou um neo-ricardiano de esquerda.
A sua pergunta e a minha resposta de que sou um neo-ricardiano de esquerda merecem um comentário mais desenvolvido e é isso que tento agora fazer em texto escrito, apesar de saber que não é formado em Economia. Este dado torna difícil escrevê-lo, asseguro-lhe.
Passemos por cima da sua reação quando ouve a expressão neo-ricardiano de esquerda e me diz, ah, de esquerda? Isso é então a mesma coisa! Não, não é verdade, não é mesma coisa, é o que lhe posso dizer. Acrescento então um ou outro comentário às questões por si postas e que não podiam caber logicamente numa resposta dada numa fila de espera. Convenhamos.
Agora, em termos de texto escrito, deixe-me dizer-lhe um pequeno detalhe. Deixei Deus pela estrada difícil do que foi a minha adolescência nas ruas de Lisboa, a lembrar um pouco o drama de Jean Barois, de Roger Martin du Gard mas à escala da minha situação como é óbvio. Um livro que alguém me deu a ler nessa altura. Não foi nada fácil. Tanto assim, que nesse tempo, com 16-17 anos e marçano na Rua Afonso Lopes Vieira, uma cliente entre várias outras coisas pede-me para lhe levar a casa 400 gramas de atum e que escrevi eu relativamente a esse pedido? Escrevo 400 gramas de filosofia. Imagine agora o meu patrão, o dono da pequena mercearia, a ler o meu caderno de encomendas. O que é isto berrou, com o caderno de papel pardo com as encomendas na mão? Bom, gramei uma série de insultos e ia perdendo o emprego!
Depois passo à condição de operário a trabalhar na Rua Central Cultural, em Alvalade, Lisboa, a ganhar 24 escudos por 8 horas de dia de trabalho! Marx foi aqui muito importante na minha formação de cidadão. Ajudou-me ou ensinou-me mesmo a perceber a dinâmica do mundo camponês, de onde tinha saído, ajudou-me a compreender o mundo operário, para onde tinha entrado. Ter-me-ei cruzado com um outro operário filiado no PC, penso eu, sem que o possa afirmar, com conversas que me foram muito úteis naquela época. Direi mesmo que as ruas de Lisboa se me configuravam de forma diferente, a partir da conceção do sistema como um sistema de classes antagónicas, onde eu era um grão de areia solitário num mundo que me esforçava por compreender.
Nesse caminho difícil, mais de uma década depois, tenho uma outra perda, talvez ainda mais significativa do que a de Deus: perdi Marx. Porquê? Não esqueçamos que sou filho de camponeses muito pobres, camponeses sem terra. Vou para Lisboa, porque queria e havia de estudar. Porque naquela altura, terceiro ano de Economia, já sabia que o modelo marxista não foi capaz, não era capaz, de explicar a determinação dos preços de produção, ou “preços naturais” num mundo com capital e, se não era capaz, se não era então capaz de explicar os mecanismos da concorrência e da formação dos preços, então a teoria do valor-trabalho não serviria para nada, e estas são palavras de Marx, não minhas.
É com este tipo de formação que se deu a perda de Marx. A solução intelectual encontrada, para meu conforto e estabilidade pessoal, foi a semelhante à que tive com a perda de Deus. Fiquemo-nos com a mensagem, foi o que fiz com Cristo, fiquemos com a visão dos antagonismos de classe que Marx magistralmente expõe em toda a sua obra, desde os textos da sua juventude, desde os Grundrisse, até às obras de maturidade, como O Capital, foi o que fiz com, Marx. Foi isto, nada mais que isto, que me lançou no mundo neo-ricardiano. No fundo trata-se de um tipo de ligação que ainda hoje mantenho.
Vivíamos um tempo de revoluções intelectuais menores, de marxistas, de comunistas, de maoistas, de cristãos de esquerda e de direita, e da extrema-direita também. No ISEG, ser de esquerda e ser neo-ricardiano naquela época, isto é, não ser marxista, não era coisa fácil. Para alguns dos líderes mais radicais dos movimentos de massas estudantis eu era uma espécie de OVNI. Para si, meu amigo, e pela mesma razão, cinquenta anos mais tarde, pareço ser igualmente a mesma coisa, um OVNI. Mas o meu amigo sabe bem que não existem OVNI’s e sabe também, como médico, que todos nós temos horror ao vazio, até a natureza o tem, e, portanto, não sendo um OVNI, inventa então um fantasma na minha pessoa, o de ser um marxista, um comunista, um putinista, para explicar o que não consegue entender, que se possa ser sério, intelectualmente sério e profundamente critico do mundo neoliberal que o meu amigo defende, sem ter caído na propaganda política típica do esquerdismo.
Curiosamente alguma da direita inteligente daquele tempo não pensava assim e aqui refiro-me, em particular, a Alfredo de Sousa, meu professor daquele terceiro ano, e mais tarde Presidente da Comissão Instaladora da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa. Alfredo de Sousa oferece-me emprego para trabalhar com ele, ainda eu era estudante, tendo como objetivo, se a minha memória não me falha, fazer o estudo comparado dos conceitos de economia utilizados por cada uma das mais conhecidas escolas do Pensamento Económico. Recusei então, hoje não o faria.
Curiosamente, hoje, lendo a reprodução de uma conversa ocorrida em 2022 entre um dos mais brilhantes economistas da atualidade em Itália, Emiliano Brancaccio, com Vernon Smith, o prémio Nobel de Economia de 2002, leio o seguinte:
“Nas suas análises, Vernon Smith descobriu que um equilíbrio pode ser alcançado sem recorrer às hipóteses irrealistas da teoria neoclássica. Isto levou recentemente Smith e um dos seus co-autores a sugerir que este resultado está de certa forma em linha com a velha abordagem dos economistas clássicos, em particular com o processo muito mais realista de “descoberta de preços” evocado por Adam Smith e outros (Inoua e Smith, 2020a,2020b,2022)
Que um membro de tanta autoridade na comunidade académica global encontre uma alternativa precisa à teoria neoclássica pela via de um relançamento dos Clássicos é um avanço epistemológico e teórico importante. Em alguns aspetos, esta rutura da tradição neoclássica é novidade entre os laureados com o Nobel da economia (Brancaccio e Bracci,2019). É certo que estou entre aqueles que sempre insistiram na necessidade de uma abordagem comparativa entre paradigmas alternativos da teoria económica. Insisti na relevância desta abordagem nos meus debates com Olivier Blanchard, Daron Acemoglu, e outros (Blanchard e Brancaccio,2019; Acemoglu e Brancaccio, 2021; Brancaccio e Califano,2022; Brancaccio e De Cristofaro,2022). Por conseguinte, só posso dar as boas-vindas à nova linha de investigação de Vernon Smith.” Fim de citação
Pelo que aqui está proposto, embora seja a uma escala bem maior do que o que Alfredo de Sousa pretendia, não podemos deixar de sublinhar o paralelismo existente entre os dois projetos, distanciados no tempo, em cerca de 50 anos. Curioso. Sublinhe-se, porém, que Alfredo de Sousa era um homem politicamente muito à direita e este projeto propõe-no a um tipo, ainda seu estudante, politicamente situado muito à sua esquerda, e ele sabia-o. Havia respeito pelas duas posições políticas, e é isto, pelo menos isto, o quero dizer com esta história, embora o seu significado possa ser bem mais amplo. Fazemos parte de uma geração que aprendeu a respeitar-se nas suas diferenças. Mantenhamos esse comportamento.
As inferências feitas pelo meu amigo significam dizer que, na sua lógica, no mundo binário em que se quer provocatoriamente situar, no seu mundo mental em que ser marxista quer dizer ser comunista, ser comunista quer dizer ser putinista, então, uma vez que garantidamente não sou marxista também não posso ser rotulado de comunista (e além do mais, comunismo não primitivo, é coisa que não existe, nem nunca existiu).
Dizer que sou um neo-ricardano de esquerda significa que toda a sua sequência além de ser falsa, erra logo no primeiro elo da sua cadeia de ligações : não sou marxista, e este é o seu pressuposto.
Neo-ricardano de esquerda significa que se é fiel à lógica de análise de Ricardo e de Marx através de um elemento-chave: a obra de Piero Sraffa. Esta obra, Produção de Mercadorias Através de Mercadorias [e do Trabalho [2]], dá origem a uma reconstrução da teoria do valor-trabalho tal como formulada, por um lado por Ricardo, e, por outro lado, por Marx. Ora a teoria do valor trabalho própria a cada um destes dois clássicos da economia é uma peça central no trabalho científico destes dois grandes autores clássicos. E essa reconstrução, assente num dado, a de que a sociedade capitalista é caracterizada por um lado, por lhe ser inerente um conflito constante na repartição do rendimento entre as três grandes classes em presença, capitalistas, trabalhadores e rentistas [3] e, por outro lado, pelo trabalho ser a fonte e a medida do próprio valor das mercadorias.
Nada disto tem a ver com a sua cadeia de ligações.
A terminar esta curta nota deixe-me dizer-lhe que nesta visão do capitalismo que emerge dos grandes clássicos e de Sraffa, encontramos nomes como Keynes, Robinson, Kalecky, Harrod, Domar, Kaldor, Pasinetti, Garegnani, Michael Pettis e Minsky entre muitos outros. Curiosamente, estes são nomes hoje proibidos ou ignorados – o resultado é o mesmo, não são ensinados… – em qualquer Faculdade de Economia que se orgulhe da sua marcha para o neoliberalismo. Não será assim por acaso, como é evidente. A “verdade” das harmonias universais geradas e sustentadas pelo mercado é dominante e é hoje a Bíblia das nossas universidades e das suas direções, autointitulem-se elas de direita ou de “esquerda”. Falar de harmonias universais significa, utilizando a descrição de Emiliano Brancaccio sobre a eficiência dos mercados proferida num debate ocorrido na Fundação Giangiacomo Feltrinelli com Olivier Blanchard, significa que “ de acordo com a abordagem prevalecente, o livre jogo das forças de mercado, pelo menos em princípio, trará a distribuição única de rendimentos entre salários, lucros e juros que, dadas as dotações de recursos escassos e outros constrangimentos relevantes, garante níveis eficientes de produção e emprego. A produção e a distribuição estão então ligadas entre si por um fio duplo, de acordo com uma lei inexorável de eficiência. Isto significa, entre outras coisas, que, na opinião da corrente dominante, os esforços para aumentar os salários para além do nível determinado pelo equilíbrio do mercado conduzirão necessariamente a uma queda no emprego e na produção. Por outras palavras, o conflito social só pode causar danos.
A morte ao pensamento crítico é “decretada” pela Reforma de Bolonha e é levada a cabo por aqueles que gerem os destinos das Instituições Universitárias. Deixa de haver espaço para pensamento crítico, deixa de haver capacidade dos estudantes para o entender e dentro de alguns anos vai haver incapacidade dos docentes para o ensinarem, e exatamente porque não o aprenderam! Um mal nunca vem só. Não é, pois, nem por pedantismo nem é por acaso que lhe disse acima:
Garanto-lhe que pode contar com os dedos das suas duas mãos quantos neste país lhe poderão dar a mesma resposta. a de ser um neo‑ricardiano de esquerda) Se pudesse contá-los, veria que ainda lhe sobrariam dedos.
Sobre o quadro mental em que o meu amigo se situa, quadro este que transparece imediatamente da Iniciativa Liberal e até dos partidos do arco do poder, deixe-me oferecer-lhe três textos de referência, cada um centrado sobre um país igualmente de referência quanto ao neoliberalismo puro e duro praticado: a Inglaterra de Truss e Sunak, a India de Modi e os Estados Unidos de Obama, Trump e Biden. Estes textos são um bom exemplo histórico do que significa a desregulação dos mercados, do que é a situação tortuosa e igualmente perigosa que as sociedades destes países enfrentam hoje, como resultado das políticas neoliberais praticadas durante estas 4 últimas décadas.
Mas devo também sublinhar que as suas teses, em Portugal, são partilhadas, são defendidas, por muito boa gente de outros partidos, não está, pois, sozinho na sua cadeia de ligações acima referida. Estas suas teses são defendidas de forma direta pela Iniciativa Liberal, pelo Chega e pelo PSD, e de forma indireta são igualmente defendidas por partidos como o PS ou até o PAN. É significativo que tenha mais gente na rua a protestar pela falta de cuidados com os animais domésticos do que teríamos agora na defesa do Serviço Nacional de Saúde!
E ficamos por aqui.
Um abraço
Júlio Mota
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Os artigos a publicar são:
- David Edgerton, Sim, estamos em apuros. Mas atolarmo-nos nos mitos do “declinismo” britânico não nos vai ajudar a sair deles (original aqui)
- Adam Tooze, A crise de Adani – o castelo de cartas de Modi em risco? (original aqui)
- Liz Theoharis, Sobreviver num mundo de pobreza (original aqui)
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Notas
[1] Curiosamente, Marx no Tomo I do livro I do Capital, cito de memória, é bem explicito: ou a teoria do valor consegue explicar a formação dos preços e a concorrência que lhe está implícita ou então não serve para nada. Desde Bortkiewicz que se sabe que a solução de Marx para determinar a formação dos preços das mercadorias no quadro do sistema capitalista está formalmente incorreta.
No entanto, parafraseando Emiliano Brancaccio e a referência anterior ao Capital de Marx, somos levados a afirmar que nenhuma teoria económica pode escapar à necessidade de tomar uma posição sobre a determinação dos preços. A determinação dos preços no quadro da concorrência capitalista foi o drama de Ricardo, por ele assumido no final da sua vida, foi o erro de Marx, reconhecido apenas mais tarde, e é a farsa do pensamento económico hoje dominante, o que se ensina nas nossas Universidades, uma vez que a teoria neoclássica só consegue explicar a formação dos n preços das diferentes mercadorias no mundo capitalista desde que não haja capital!
[2] Refira-se que em Sraffa o rendimento criado é tomado como unidade de medida e, portanto, igual a 1. Por outro lado, o valor deste rendimento é igual à quantidade de trabalho vivo utilizado na sua produção, também ele considerado igual a 1. Desta forma, o trabalho é “recuperado” como unidade de medida e substância do “valor” das mercadorias, sem os erros formais ou conceptuais de Ricardo e de Marx, expressando o preço de cada uma das mercadorias não a quantidade de trabalho nelas incorporado, mas sim a quantidade de trabalho socialmente validado no mercado, ou seja de trabalho socialmente necessário à sua reprodução no sistema.
Só depois da sua morte e com a classificação do seu espólio, é que se soube que o título pensado para a sua obra acima referida, que descreve a formação dos preços num mundo com capital, deveria ser Produção de Mercadorias Através de Mercadorias e do Trabalho em que o trabalho vivo aparece como unidade de medida do trabalho socialmente necessário à reprodução de cada uma das mercadorias vendidas no mercado. No fundo, se temos duas classes com direito à repartição, capitalistas e trabalhadores, são estas que disputam a repartição do valor criado pelo trabalho, o rendimento líquido. No caso de serem três classes sociais com “direito” à repartição teremos os capitalistas, os rentistas e os trabalhadores a disputarem a repartição da riqueza produzida. O conflito de classes está assim no centro da formação dos preços e da repartição e os preços dependem deste mesmo conflito de classes.
[3] Sobre o tema da repartição no sistema capitalista, Olivier Blanchard, ex-economista chefe do Fundo Monetário Internacional de 2008 a 2015, num debate havido com Emiliano Brancaccio diz-nos o seguinte:
“Na sua apresentação, Emiliano levantou vários outros pontos interessantes. Não estou de acordo com todos eles. O primeiro diz respeito à distribuição. Creio que isto é absolutamente central tanto para as questões de curto como de longo prazo. Sempre vi o nível de desemprego como refletindo em parte uma luta distributiva entre trabalhadores e empresas. Os trabalhadores querem salários que correspondam ao que precisam de gastar e as empresas querem fixar os preços com base nos salários que têm de pagar. Todos querem mais. Como se pode resolver este conflito? A minha tese é que, infelizmente, ele é parcialmente resolvido através do desemprego, que aumenta ao ponto de as exigências salariais dos trabalhadores corresponderem ao que as empresas estão dispostas a pagar”.
“Sou um neo-ricardiano de esquerda.” Muito bem; e do ponto de vista da transformação do mundo e da inevitável superação do sistema capitalista, com a consequente necessidade de estabelecimento de um novo paradigma económico-político, jurídico e social, esse mesmo neo-ricardianismo de esquerda traduz-se mais exactamente em quê?
Caro leitor Francisco, eis a resposta de Júlio Mota ao seu comentário:
O que é ser neo-ricardiano de esquerda
Uma pergunta tão simples e ao mesmo tempo tão difícil: o que é ser neo-ricardiano de esquerda?
Não quero fazer nenhum texto à volta disto, sobre o que significa ser neo-ricardiano. Dizer que sou neo-ricardiano de esquerda significa que sou primeiro que tudo anti-neoclássico, anti harmonias universais geradas pelos mercados livres, que sou partidário de muitas das teses de Marx quanto à dinâmica do capitalismo, que rejeito a teoria do valor de Marx como chave explicativa do capitalismo concorrencial e da formação dos preços, que substituo essa leitura da realidade capitalista pela leitura bem precisa de Sraffa quanto à repartição e à formação dos preços num mercado capitalista. Com Sraffa evita-se a enorme confusão bem patente no livro III, volume VI, de O Capital quanto a valores de mercado e valores “naturais” quanto a preços de Produção, ditos também preços “naturais”, e preços de mercado, confusão esta que torna ininteligível em grande parte o livro III. E é-nos permitido também manter a ideia de exploração do trabalho, não encarada ex-ante à produção mas pós validação da produção no mercado (isto é, pós venda das mercadorias aos preços de produção), assim como nos é permitido a ideia central de Marx quanto à luta de classes. A taxa de exploração poderá ser deduzida via construção teórica de Sraffa, via preços de produção.
Mais ainda, considero ainda que para se ler e interpretar o mundo capitalista de hoje precisamos dos apoios fornecidos pelos autores citados na carta a um amigo meu, como Keynes, na sua vertente de regulação de mercados, Joan Robinson, Kalecky, Harrod, Domar, Kaldor, Pasinetti, Garegnani, Michael Pettis e Minsky, entre muitos outros. Digo estes porque estes serão nomes a deixarem de ser utilizados nos nossos cursos de economia. O neoliberalismo tem a sua força, não o ignoremos.
Para evitarmos discursos enfadonhos e fórmulas exotéricas diremos que o capitalismo como fotografia pode ser cristalizado, fixado, numa única fórmula: r= R(1-W) .
Onde r pequeno é a taxa de lucro em vigor e que depende de:
1. W que é a parte do rendimento criado que constitui o montante total dos salários que é auferida pela quantidade total de trabalho vivo utilizado na produção do excedente, o rendimento líquido do país. Em termos modernos é a parte dos salários no rendimento e com este último a ser tomado como unidade de medida. Mas não esqueçamos que na construção teórica de Sraffa o trabalho utilizado no sistema produtivo é igual a um, o que significa que o excedente de produção, o rendimento, é igual, em termos de horas de trabalho, ao trabalho vivo materializado na produção.
2. R é a relação entre o valor do excedente criado e o valor dos bens de capital utilizado na sua produção que, por construção do sistema padrão de Sraffa, estão na mesma proporção, relação esta que é independente da repartição e é insensível à variável da repartição, uma vez que ambas as grandezas são medidas na mesma estrutura de produtos e de preços – a famosa medida padrão de Sraffa. R representa, pois, a taxa máxima de lucro possível, só alcançável se os salários forem zero!.
3. r é a taxa de lucro que corresponde a cada configuração produtiva, expressa por R e associada a cada nível de salário W.
4. Sendo W a proporção do rendimento produzido que é gasta em salários (1-W) representa a parte do rendimento não pago em salários, o equivalente à mais valia de Marx quando calculada em valor. A taxa de “mais -valia” é então expressa por [(1-W)/ W].
Uma vez que o excedente criado – e o excedente significa o rendimento – é tomado como unidade de medida, o salário só pode variar entre 0 e 1. Se W=0 vem r= R, o que se entende: quando o salário é zero a taxa de lucro r atinge o valor máximo que é R, a dizer-nos que toda a produção do período é apropriada pelos capitalistas. Se a massa salarial é igual a 1, então o valor criado é todo ele apropriado pelos trabalhadores e o lucro é zero. Existe pois uma relação linear entre salários e lucros para cada configuração produtiva em que (dr/dW) = -R, com o sinal menos a significar que as duas variáveis distributivas evoluem em sentido contrário: se uma aumenta a outra diminui ou vice-versa. Mais ainda, significa que ao aumento de rendimento de uma das duas classes sociais corresponde uma diminuição de rendimento da outra classe e no mesmo montante.
Curiosamente, Olivier Blanchard, durante anos o chefe de fila dos neoclássicos toca na questão da repartição, uma questão central para a esquerda não oficial quando afirma, e repito o texto quanto à repartição:
“O primeiro ponto diz respeito à distribuição. Creio que isto é absolutamente central tanto para as questões de curto como de longo prazo. Sempre vi o nível de desemprego como refletindo em parte uma luta distributiva entre trabalhadores e empresas. Os trabalhadores querem salários que correspondam ao que precisam de gastar e as empresas querem fixar os preços com base nos salários que têm de pagar. Todos querem mais. Como se pode resolver este conflito? A minha tese é que, infelizmente, ele é parcialmente resolvido através do desemprego, que aumenta ao ponto de as exigências salariais dos trabalhadores corresponderem ao que as empresas estão dispostas a pagar”. Fim de citação
Dito de uma forma mais simples: ser-se neo-ricardiano significa considerar que a sociedade vive num conflito permanente quanto à repartição do rendimento e esta depende sempre das relações de força de cada momento. Não há aqui harmonias universais nenhumas, harmonias que são aquilo que é o que defende o neoliberalismo. Na lógica neoliberal garante-se no plano formal que deixado o mercado à solta, uma vez que este é eficiente, será garantido que cada fator produtivo, capital e trabalho, é remunerado segundo a sua produtividade marginal em valor. Dizer isto é dizer que cada fator de produção recebe exatamente o valor daquilo que contribui para a formação do rendimento do país. Portanto não tem nada que estar a reclamar. Por esta razão quaisquer greves deixam de ter sentido e o se o têm é porque não tem sentido o Estado cuja presença distorce a eficiência dos mercados livres, impedindo-os de serem eficientes. Esta é a tese da famosa Escola de Chicago, ninho dos prémios Nobel americanos em Economia.
Ir para além disto como explicação é fazer um manual e poupem-me, fiz oitenta anos ontem.
Júlio Mota, 21/02/2023