Carta a um amigo meu e também destinada aos meus colegas de economia de outrora… e três olhares sobre países neoliberais de referência — Texto 1. Sim, estamos em apuros. Mas atolarmo-nos nos mitos do “declinismo” britânico não nos vai ajudar a sair deles. Por David Edgerton

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

5 min de leitura

Texto 1. Sim, estamos em apuros. Mas atolarmo-nos nos mitos do “declinismo” britânico não nos vai ajudar a sair deles

 Por David Edgerton

Publicado por  em 12 de Junho de 2022 (original aqui)

 

Enquanto tentamos encontrar o nosso lugar no mundo, a política vagueia entre as exigências igualmente irreais quer dos partidários, os que aspiram a um lugar importante da Inglaterra no mundo, quer dos opositores, os defensores da tendência ao declínio. Estes últimos estão agora em ascensão.

 

Ilustração de Dom Mckenzie

 

A decadência está de volta. Os comentadores sublinham que a economia do Reino Unido não tem estado bem e que se prevê uma estagnação. Outros países estão a fazer melhor, em termos de produtividade, investimento, investigação e em termos de competências. É realmente um déjà vu de novo. Mas não inteiramente. Ainda ontem nos contavam uma história diferente – uma das mais rápidas taxas de crescimento na OCDE, de uma nova Grã-Bretanha global e dinâmica, uma superpotência científica, um centro de inovação, o mais rápido lançamento de vacinas… O que é que se está a passar?

Temos vivido numa era de revivalismo. No seu cerne está uma história económica que sustenta que o Thatcherismo tinha invertido o declínio económico britânico de longa data, que talvez tivesse começado nos anos 1870, ou talvez em 1945. Depois de ter sido considerado o homem doente da Europa, o Reino Unido podia voltar a sentir-se orgulhoso, e regressar a um papel global. Esta visão afetou profundamente a política. O New Labour, o partido da Grã-Bretanha fixe pós-declínio, começou a falar da liderança britânica, da Grã-Bretanha global, de um destino internacionalista especial.

Mais recentemente, e mais surpreendentemente, os Brexiters [apoiantes do Brexit] também o fizeram. Sacaram do New Labour todo um discurso revivalista – em torno da criatividade, do empreendedorismo e da globalidade. A então primeira-ministra Theresa May retomou estes temas, dando-lhes um alicerce na história britânica. Porque o Reino Unido foi outrora o campeão global do comércio livre, é-o novamente. Porque no século XVII foi uma sede chave da revolução científica, e no século XVIII da Revolução Industrial, está em primeiro lugar na linha da frente para produzir as inovações que irão conduzir o mundo à quarta revolução industrial.

Boris Johnson conseguiu manter-se incrivelmente com elevada popularidade graças à sua enorme reserva de apoiantes. Pode-se fazer muita ironia à sua custa por utilizar o termo “somos os melhores ” em cada minúsculo sucesso. Mas isto não era a peculiaridade de um primeiro-ministro aberrante; era antes o ponto culminante ridículo de um revivalismo sistemático e falacioso que era central para o Brexit.

Vale a pena ponderar que o Brexit foi uma premissa de revivalismo em vez de fraquezas na economia. Os defensores da saída da União Europeia (os Brexiters) poderiam ter reduzido alarido nacionalista-declinista apontando a relativa fraqueza da economia britânica, a sua balança comercial terrivelmente negativa com a UE, e afirmando que a adesão à UE era a causa do declínio e da pobreza do povo.

Mas não disseram nada disto – concentraram-se na imigração, na soberania, em afirmar que iríamos manter exatamente as mesmas relações comerciais. Os defensores do Brexit diziam, com efeito, que a UE não causou danos à economia do Reino Unido, mas apenas restringiu o seu potencial. Na verdade, acusavam os defensores da permanência na União Europeia – os “remainers”- de serem pessimistas e se comportarem como condenados a falar mal do país. O declinismo tornou-se, pela primeira vez na história britânica, um termo de abuso político.

Não teria sido difícil fazer um caso declinista mais amplo. Após Thatcher e até ao presente, as taxas de crescimento económico permaneceram inferiores às dos anos 50 e 60, os supostos anos de declínio. A economia do Reino Unido não conseguiu alcançar os níveis de produtividade com da França ou da Alemanha. Não houve um grande desencadeamento do empreendedorismo britânico, criando novas empresas de sucesso mundial. Em vez disso, mais empresas estrangeiras vieram para o Reino Unido. A desigualdade aumentou à medida que os ricos enriqueceram, não através do empreendedorismo, mas através da posse, sem esforço, de casas e de ações. As particularidades do que aconteceu em Londres, o produto em grande parte do capital estrangeiro e da sua experiência, não constituíram um sucesso britânico que afetasse todo o país.

Mas este caso não pôde ser apresentado pelos defensores do Brexit precisamente porque eles acreditavam no filão revivalista e não tinham qualquer intenção de fazer algo real para transformar a lógica da economia. Brexit foi construído sobre múltiplas mentiras e também sobre uma compreensão muito particular da economia britânica. Contudo, o facto de o Reino Unido não estar agora num bom lugar economicamente, de a sua política e vida pública serem tóxicas, de a qualidade do Estado e de muito mais ter declinado, não é um argumento para ressuscitar teses declinistas. O declinismo dos Remainers não é uma verdade para contrariar as mentiras revivalistas dos defensores do Brexit.

Compreender a verdadeira natureza do Reino Unido no mundo é central para qualquer possibilidade de política transformadora

O declínio relativo britânico a longo prazo, que sem dúvida aconteceu, e continua, deve-se sobretudo ao sucesso de outros países, e não ao fracasso britânico. Em vez de aceitarem isto, os declinistas explicaram frequentemente coisas que não aconteceram, com explicações que não funcionaram, baseadas em má história. Assim, os declinistas insistem que a Investigação&Desenvolvimento britânica foi sempre baixa, a City foi sempre poderosa demais, o país sempre sob o domínio do império, o Estado sob o controlo imaginativo dos classicistas e historiadores e não dos tecnocratas, que a indústria nunca teve uma oportunidade.

É um catálogo sombrio, não de fracassos britânicos, mas de má compreensão histórica, o que distorceu profundamente a história da nação.

O declinismo, tal como o revivalismo, teve a sua política. O imperialismo e uma orientação globalista, dizia-se, explicava a suposta hostilidade do Reino Unido ao desenvolvimento industrial nacional. De facto, o declinismo era uma doutrina central dos críticos nacionalistas do pós-guerra da Grã-Bretanha, sobretudo os da esquerda como Eric Hobsbawm e Perry Anderson. Mas também houve declinismos da direita nacionalista, como o de Correlli Barnett.

Mas eles apagaram sistematicamente da história britânica o nacionalismo muito real, a arrogância tecnocrática e o desenvolvimento industrial do Reino Unido. Margaret Thatcher tinha o seu próprio tipo de declinismo anti-sindicatos e cultural. O declinismo também teve os seus remanescentes e os seus abandonados. Alguns dos mais entusiastas eurófilos das décadas de 1960 e 1970 eram declinistas. Por outro lado, os defensores de esquerda do Brexit das décadas de 1970 e 1980 eram declinistas que acreditavam que a adesão à CEE reforçava o declínio.

A economia e a sociedade britânica de hoje são muito mais afetadas pela história recente do que pela história antiga. O aumento da desigualdade, entre as pessoas e entre regiões, o rentismo da economia, a estagnação da produtividade, são uma evolução recente. Não é algo eterno, é algo criado. Nem as panaceias dos revivalistas (um Brexit ilusório) nem os declinistas (mais indústria, mais I&D, mais tecnocracia) regressarão ao Reino Unido, mesmo ao nível em que se estava relativamente a 1979.

Pois tanto o declinismo como o revivalismo são sintomas de uma nação incapaz de se adaptar ao seu lugar no mundo. Ambos estão presos na insularidade nacionalista: um afirma que a nação renasce, o outro que pode renascer, para ocupar o seu lugar alto nos assuntos mundiais. Mas compreender que o lugar real, e a verdadeira natureza do capitalismo no Reino Unido, e crucialmente no mundo como um todo, é central para qualquer possibilidade de política transformadora, e isso exige que a Inglaterra em particular seja modesta acerca de uma nação que tem muitas razões para ser modesta.

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O autor: David Edgerton [1959-] é um historiador e educador inglês. Em 2013, liderou a mudança do Centro de História da Ciência, Tecnologia e Medicina para o Departamento de História do King’s College de Londres, onde é professor de moderna história britânica. Os livros de Edgerton incluem o Warfare State: Britain 1920-1970 (Cambridge, 2005); The Shock of the Old: Tecnologia e História Global desde 1900 (Perfil, 2006), The Rise and Fall of the British Nation (2018). Edgerton foi eleito membro da Academia Britânica em 2021.

 

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