Marriner Eccles, os New Dealers e a criação das Instituições de Bretton Woods — Parte V- Sobre um novo Bretton Woods — Texto 1. Como enfrentar um “momento Bretton Woods” ?   Por James M. Boughton

Nota de editor:

A última parte da presente série, a parte V, Sobre um novo Bretton Woods, é constituída pelos seguintes textos:

Texto 1 – Como enfrentar um “momento” Bretton Woods? Por James M. Boughton

Texto 2 – É finalmente tempo de um novo Bretton Woods, por James M. Boughton

Texto 3 – Um Novo Momento Bretton Woods, por Kristalina Georgieva

Texto 4 – Os argumentos a favor de um novo Bretton Woods, por Katie Gallogly Swan

Texto 5 – Do Bretton Woods de ontem ao Bretton Woods do futuro, por Richard Kozul-Wright

Texto 6 –Bretton Woods, por Adam Tooze

 


Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

8 min de leitura

Parte V – Texto 1. Como enfrentar um “momento Bretton Woods” ?  

Por James M. Boughton

Publicado por  em 10 de Fevereiro de 2022 (original aqui)

 

 

Um novo sistema económico global tem de se basear num princípio-chave de Bretton Woods: o multilateralismo

 

A economia mundial está em grave desordem. O que podemos fazer a este respeito?

Tornou-se um lugar comum os líderes políticos e os especialistas pronunciarem-se sobre a necessidade de um “novo Bretton Woods” para resolver os problemas do nosso sistema económico mundial em rutura. O grito evoca memórias da conferência monetária em Bretton Woods, New Hampshire, em 1944, durante a qual todos os países aliados que lutaram contra o Eixo na Segunda Guerra Mundial criaram o sistema financeiro internacional baseado em regras que produziu um crescimento económico sem precedentes nas décadas que se seguiram à guerra. Mas as circunstâncias mudaram, e Bretton Woods – a única reunião económica global verdadeiramente bem sucedida do século XX – não pode ser reproduzida. Como seria uma resposta positiva hoje em dia?

Por vezes, o apelo da Conferência de Bretton Woods reflete um desejo de restaurar a disciplina impondo novas regras (ou retomando as antigas) sobre o comércio e as finanças através das fronteiras nacionais. Por vezes é um apelo a novas instituições para lidarem com novos desafios, tais como as alterações climáticas ou a ascensão da invasiva tecnologia digital. Por vezes, é apenas uma forma de resumir a necessidade urgente de restaurar a cooperação internacional na sequência do nacionalismo populista crescente. Na maioria dos casos, porém, estes apelos carecem de um objetivo claro e de um roteiro para lá chegar. Acontece que podemos percorrer um longo caminho para colmatar essas lacunas, estudando como e porquê a conferência original de Bretton Woods foi bem sucedida em 1944.

Quando o economista americano Harry Dexter White começou em 1941 a planear o que viria a ser a conferência de Bretton Woods, a situação global era muito mais terrível do que é hoje. A guerra grassava na Europa e na Ásia; a depressão dos anos 30 tinha dizimado a produção económica, o emprego e o comércio; e a instabilidade da moeda tornava impraticável aceitar ou manter a moeda de qualquer país que não fosse o seu. Não havia simplesmente nenhum modelo ou padrão a que recorrer para pensar sobre como conceber um sistema para restaurar a prosperidade e a paz.

Um pensador surpreendentemente original, White – o economista-chefe do Tesouro dos EUA – começou por estabelecer uma visão clara do que tinha de ser alcançado e que medidas teriam de ser tomadas para aí chegar. Fundamentalmente, a prosperidade do pós-guerra exigiria uma renovação do comércio internacional. Se, em vez disso, os grandes países tentassem puxar cada um para seu lado seria praticamente inevitável, um regresso da Grande Depressão. O comércio exigiria cooperação, e a cooperação dependeria da aceitação de regras e do desenvolvimento de instituições com o poder de as fazer cumprir. O desafio que White enfrentou foi conseguir que os líderes políticos nos Estados Unidos e em toda a vasta aliança de países se concentrassem no problema e chegassem a acordo sobre uma estratégia que pudesse ser completada após a guerra ter sido ganha.

White tinha quatro ideias principais para este processo. Ele teve de lutar para que cada um deles fosse aceite, e essas batalhas têm lições para nós hoje.

Primeiro, a solução deve ser concebida enquanto a crise (nesse caso, a guerra) ainda estiver presente. Se os líderes esperarem por um momento mais confortável, o incentivo para cooperar e aceitar compromissos será minado. Como prova, considere o momento em que os negociadores decidiram adiar a as conversações para se criar uma organização de comércio internacional durante a Segunda Guerra Mundial para que se pudessem concentrar na criação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, as discussões depois fracassaram, e a Organização Mundial do Comércio só foi criada cinquenta anos mais tarde, em 1994. No entanto, funcionários superiores do Departamento de Estado dos EUA foram inicialmente inflexíveis quanto ao facto de acharem que nenhum dos planos de White podia ou devia ser feito senão depois da guerra. Levou vários meses até que cedessem e permitissem que o planeamento avançasse. As múltiplas crises de 2022 podem persistir, ou podem diminuir. Esperar até que a situação se esclareça poderá ser fatal.

Em segundo lugar, todos os potenciais países participantes devem ser envolvidos em discussões o mais cedo possível e de forma tão completa quanto possível. Em 1942-43, os negociadores britânicos, liderados por John Maynard Keynes, defenderam longa e duramente um acordo bilateral entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, com outros países a serem convidados apenas depois de o sistema já ter sido concebido. Muitos funcionários norte-americanos partilhavam essa opinião, mas White compreendeu instintivamente que a maioria dos países seria relutante em comprometer-se com um acordo que tinha sido cozinhado por grandes potências sem a oportunidade de defender os seus próprios interesses nacionais. Países tão diversos como o Canadá, China, França, Índia, México e a União Soviética contribuíram todos para o desenho final.

Hoje em dia, a rivalidade dominante na governação económica é entre os Estados Unidos e a China. A resolução desse conflito não pode ser alcançada bilateralmente, porque os interesses nacionais são demasiado contraditórios. Se o governo dos EUA quer que a ordem mundial baseada em regras existente sobreviva, deve procurar os pontos de vista e o apoio de uma ampla aliança. Adotar uma abordagem multilateral foi uma venda difícil nos anos 40, quando os Estados Unidos eram, de longe, o poder económico e financeiro dominante. No atual ambiente multipolar, a necessidade de cooperação é mais óbvia, mas a sua concretização continua a ser um desafio.

Terceiro, qualquer que seja a forma que um novo sistema possa assumir, ele deve refletir as realidades práticas do mundo. Em 1944, um facto chave era que o dólar americano se tinha tornado a moeda preeminente para o comércio global. Os britânicos sabiam que os dias de domínio da libra esterlina tinham acabado, mas queriam substituí-la por uma nova moeda internacional e deixar de lado o dólar. Até o Secretário de Estado do Tesouro, chefe de White, Henry Morgenthau, Jr., queria criar uma moeda sem Estado, aparentemente por preocupação de que um sistema baseado no dólar colocasse demasiada pressão sobre o valor da moeda norte-americana. White compreendeu que a insistência num papel hegemónico para o dólar era suscetível de gerar uma reação política negativa. A sua solução era manter uma forte ligação entre o dólar e o ouro para os acordos internacionais, de modo que os países pudessem escolher se fixavam o valor das suas moedas relativamente ao dólar ou ao ouro. A política monetária interna poderia ser dissociada do ouro em segurança, mas ele temia que as instituições e investidores estrangeiros estivessem relutantes em deter dólares se já não fossem convertíveis num bem universal. Com essa garantia, o sistema do pós-guerra estava – e tinha de estar – essencialmente baseado no dólar.

O atual sistema financeiro global é uma curiosa mistura de hegemonia do dólar e de acordos multipolares. O FMI reconhece cinco moedas – dólar, euro, libra esterlina, iene e renminbi – igualmente adequadas para os seus empréstimos e outras transações oficiais. A parte do comércio internacional e das finanças conduzidas pelos Estados Unidos ou através dos Estados Unidos é uma pequena fração do que era na década de 1940. No entanto, a maioria das transações transfronteiriças são denominadas em dólares, e a maioria das reservas oficiais é detida em títulos denominados em dólares. Se a esperança de um novo Bretton Woods é que este conduza a um sistema financeiro mais estável e sustentável, os negociadores terão de encontrar uma forma de resolver esta desconexão.

Quarto, não obstante a necessidade de consulta e de compromisso, o sistema resultante deve basear-se em princípios sólidos. Para o sistema do pós-guerra, White argumentou que a liquidação dos saldos das balanças de pagamentos entre governos nacionais tinha de se tornar aberta e multilateral. Nos anos 40, se, digamos, o Brasil acumulou libras esterlinas ao gerir um excedente comercial contra a Grã-Bretanha, não podia facilmente converter essas libras em dólares para comprar as exportações americanas. Esse sistema beneficiou a Grã-Bretanha, que supervisionou uma vasta rede de países que utilizavam a libra esterlina como moeda ou que a ela fixavam fortemente o valor das suas próprias moedas. Os britânicos resistiram a comprometerem-se totalmente com o multilateralismo, mas White manteve a sua posição. No final, White elaborou um compromisso que deu aos países participantes vários anos para descomprimirem as suas relações comerciais bilaterais. O sistema de Bretton Woods só se tornou plenamente realizado no final dos anos 50, mas entretanto, cresceu gradualmente em eficácia e importância. Hoje em dia, o sistema baseado em regras existente deve adaptar-se para servir os interesses da China e outras potências económicas em rápido crescimento, mas isso não precisa de levar ao abandono de princípios básicos, incluindo a preservação da transparência, abertura e equidade nas relações financeiras internacionais.

É demasiado cedo para especificar o que uma nova ordem económica mundial pode abranger, a não ser em termos gerais: um relançamento da cooperação, a aceitação de regras eficazes e atualizadas que regem o comércio e as finanças, e instituições novas ou modernizadas para lidar com os desafios do século XXI. As lições de Bretton Woods podem não dizer qual é objetivo final a alcançar mas iluminam o caminho para lá chegar.

 

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O autor: James M. Boughton é investigador senior da CIGI desde 2013. Foi membro do departamento de investigação do FMI de 1981 a 2012, e desde então historiador emérito. De 2001 a 2010, serviu também como director assistente no Departamento de Estratégia, Política e Revisão do FMI. Ocupou vários cargos no Departamento de Investigação do FMI. Antes de entrar para o FMI, James foi economista na Divisão Monetária da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico em Paris.

Autor de dois volumes sobre a história do FMI: Revolução Silenciosa, abrangendo 1979-1989, e Tearing Down Walls, abrangendo 1990-1999. Outras publicações incluem um livro sobre dinheiro e banca, um livro sobre o mercado de fundos federais dos EUA, três livros sobre tópicos do FMI que ele co-editou, e artigos em revistas profissionais sobre finanças internacionais, teoria e política monetária, coordenação política internacional e a história do pensamento económico. O seu último livro é Harry Dexter White and the American Creed: How a Federal Bureaucrat Created the Modern Global Economy (e Failed to Get the Credit) (Yale University Press, 2021).

Licenciado e doutorado em Economia pela universidade de Duke.

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