Seleção e tradução de Francisco Tavares
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Uma reordenação caótica: A “mudança seminal” da Europa está a seguir (em grande medida) na mesma direção que a política dos EUA
Publicado por em 12 de Junho de 2023 (original aqui)

Ao que parece, a Europa está a seguir (em termos gerais) a mesma direção que a política dos EUA, escreve Alastair Crooke.
A reação já começou. Tem sido lenta a emergir e está atrasada em relação à dos Estados Unidos, mas já começou de facto. É, como observou Wolfgang Münchau, antigo jornalista do FT e editor da EuroIntelligence: “uma mudança seminal (para a Europa), com consequências importantes”.
É provável que reconfigure a política ao longo de uma nova linha de fratura: Já não se trata das questões banais da política “unipartidária” (pró-Establishment): taxas de imposto marginais; “soluções” monetárias fáceis e a consequente dívida que se acumularia. Mas, em vez disso, expressar-se-ia no confronto entre os que desejam uma reviravolta verde da sociedade humana; um mundo “Trans” para as crianças; a imigração fácil; a reordenação radical do poder entre os grupos “identitários” da sociedade – e os que se opõem visceralmente a tudo isto.
Na Alemanha, esta evolução está a dar os primeiros passos: A coligação do Chanceler Scholtz está em grandes dificuldades. Há uma reação anti-verde. O apoio ao Partido Verde caiu para 13% na última sondagem. Em contrapartida, o partido de extrema-direita AfD está a atrair cerca de um em cada cinco alemães que estão dispostos a votar nele.
A “CDU e os outros partidos do centro-direita europeu tinham cortejado os Verdes como potenciais parceiros de coligação. Agora, vêem-nos como os seus principais adversários políticos”, afirma Münchau.
Dito sem rodeios, embora a maioria dos europeus seja, de facto, ambientalista (numa ou noutra medida), tornou-se claro para muitos que a ideologia extremista dos Verdes é tão “utópica” que a sua vanguarda está disposta a destruir a sociedade humana (ou a colocá-la em confinamento permanente) “para a salvar”. Mas o fanatismo dos Verdes, para além da desindustrialização e do aumento da inflação, é demasiado para os alemães suportarem:
“Esqueçam a UE como modelo”, sugeriu a EuroIntelligence em Maio:
“A UE já não serve de modelo para os outros… ao estar completamente envolvida na sua própria agenda ecológica, [a UE parece] ter-se esquecido de que há outro mundo lá fora que precisa de participar nesses esforços para ser eficaz a nível global… Não constituiria uma verdadeira liderança, em vez da forma introspectiva e presunçosa como estamos a agir agora? … temos de abandonar estas ideologias baseadas no sacrifício. São demasiado caras para as nossas economias. Em vez disso, precisamos de mais inovação e mais financiamento para as concretizar. Acima de tudo, temos de deixar de nos ver como um modelo a seguir pelo mundo”.
Os alemães estão também a tornar-se cada vez mais receptivos às posições da AfD sobre a imigração em massa – à medida que o governo alemão avança para a liberalização das leis de imigração e para a naturalização de milhões de estrangeiros como cidadãos alemães. A AfD também está a atrair apoio devido à sua oposição às sanções contra a Rússia que, segundo ela, estão a enfraquecer a economia alemã e a levar à desindustrialização.
Mas o que realmente deixou os alemães em alvoroço foi um artigo do Die Zeit que afirmava que a Alemanha será em breve “um país em que os imigrantes deixarão de ser uma minoria… A integração foi ontem: A Alemanha é o segundo maior país de imigração do mundo e os alemães originais tornar-se-ão provavelmente uma minoria numérica entre muitos, num futuro próximo“.
Muitos na Alemanha ficaram a pensar se a diluição da população alemã nativa era simplesmente uma “necessidade comercial” ou uma “engenharia de identidade” deliberada – ou mesmo uma rotação de identidade. A questão foi também evocada no Reino Unido por Nigel Farage, criticando a dependência do governo britânico, “desonesto e globalista”, de mão de obra barata importada. (Note-se o rótulo de globalista atribuído aos conservadores).
Outros sinais deste incipiente realinhamento político são evidentes em França (com uma acentuada viragem à direita) e em Espanha (onde foram convocadas eleições antecipadas inesperadas, na sequência de uma forte viragem à direita também nas eleições locais). Também nos Países Baixos, os eleitores mais revoltados venceram com um programa de oposição à redução das emissões de azoto (e ao abate obrigatório em massa de gado). E, na Áustria e na Eslováquia, os partidos pró-russos estão a subir em flecha.
A raiva cresce à medida que o discurso público debate constantemente “o absurdo” (“o que é uma mulher?”), enquanto toda a gente desiste de resolver as questões mais profundas em jogo. O que dá a esta situação um ar particular de futilidade é o facto de ninguém acreditar seriamente que a Europa fará o que seria necessário para corrigir o mal-estar mais profundo – a impossibilidade de continuar a fazer o que tem feito, só igualada pela impossibilidade de fazer qualquer outra coisa.
É claro que, na Europa, a direita não é toda igual, mas as suas componentes são (embora com graus diferentes).
Por isso, a reação europeia é semelhante à crise de legitimidade que se abate atualmente sobre todas as sociedades ocidentais, como observou Malcom Kyeyune.
“A elite dirigente está cada vez mais zangada e amargurada pelo facto de os governados já não a ouvirem; os governados, por seu lado, estão amargurados pelo facto de o sistema não agir tão obviamente no seu interesse, nem sequer fingir que o faz. É possível que um dia acordemos e descubramos que nem os políticos nem os eleitores pensam que a ‘democracia’ está a fazer muito para os ajudar“.
Em França, os acontecimentos políticos extraordinários tornaram-se o novo normal. Kyeyune observa:
“As reformas são cada vez mais impossíveis, a desconfiança no sistema político está a aumentar de ano para ano e a legitimidade básica está lentamente a desaparecer dos procedimentos parlamentares. Se o Presidente Macron sente que a França está lentamente a tornar-se ingovernável sem medidas executivas extraordinárias – e politicamente duvidosas -, provavelmente não está errado, e está longe de ser o único líder ocidental a enfrentar este dilema”.
“Na semana passada, o candidato presidencial democrata Robert Kennedy participou num painel do Twitter Spaces coorganizado por Elon Musk, Tulsi Gabbard e o capitalista de risco David Sacks. Falou durante mais de duas horas sobre uma série de questões, incluindo a guerra na Ucrânia, a política energética, o controlo de armas e a origem do SARS-CoV-2. Kennedy deplorou a tomada de controlo do Partido Democrata pelas empresas; criticou os instintos pró-guerra do Presidente Biden; condenou o domínio da política externa dos EUA pelos neoconservadores – e promoveu as energias renováveis”.
“E, no entanto, de acordo com o New York Times e a CNN, foi uma orgia de teorias conspiracionistas de direita. “Robert F. Kennedy Jr., descendente de uma das mais famosas famílias democratas do país”, escreveram três repórteres do New York Times: “mergulhou no abraço de uma série de figuras conservadoras que se apressaram a promover o seu desafio ao Presidente Biden nas primárias… Na segunda-feira, parecia um candidato muito mais à vontade na multiplicação da disputa presidencial republicana“.
“Numa época anterior, Kennedy teria sido universalmente considerado um candidato de extrema-esquerda nos moldes de Ralph Nader… Kennedy pensa que a guerra na Ucrânia está a ser alimentada pelos “neo-conservadores na Casa Branca” que querem uma mudança de regime na Rússia. No seu discurso de anúncio da campanha, descreveu a sua missão como sendo acabar com “a fusão corrupta do poder estatal e empresarial” que ameaça “impor um novo tipo de feudalismo empresarial no nosso país”.
É um realinhamento político vertiginoso – que baralha todas as categorias tradicionais e deixa no seu rasto apenas dois lados: não a esquerda e a direita, mas o insider e o outsider. E, independentemente da substância das crenças de cada um, para os media, “outsider” significa, por defeito, “teórico da conspiração de direita”.
E, como era de prever, provocou uma torrente de insultos e de raiva:
“As “afirmações malucas” e os “pontos de vista estranhos” de Kennedy granjearam-lhe “o favor da direita”, lamentou a Vanity Fair.
“O Sr. Kennedy encontrou outro benfeitor que parece gostar de inundar a imprensa com excrementos: Elon Musk”, ironizou The Independent.
“Robert F. Kennedy Jr. passa uma hora a bajular Elon Musk no espaço do Twitter”, dizia a manchete do New Republic …
A Rolling Stone troçou das suas “ideias bizarras e pseudocientíficas” e rotulou Kennedy de “candidato marginal” com “crenças de louco”.
A Esquire chamou-lhe “um anti-vacinas delirante” e criticou a própria ideia de haver umas primárias democratas disputadas”, escrevem Shellenberger e Woodhouse.
Aí está: Falar de forma crítica (como escreveu Michael Scherer no Washington Post) é ser um “teórico da conspiração”.
O “realinhamento político vertiginoso” também descreve bem a natureza da reação europeia: As coligações europeias de Centro-Direita e Verdes viram o conflito na Ucrânia como o meio de centralizar “um novo tipo de feudalismo” na UE; de privar os parlamentos nacionais europeus das suas prerrogativas; e de abrir a perspetiva de consolidar a estranha metamorfose da NATO de pura aliança militar para uma aliança de paz esclarecida e progressista – na prossecução da “justiça”, dos valores e da democracia na Ucrânia.
Com “os democratas americanos a tornarem-se lentamente pró-corporativos, pró-guerra e pró-censura”, disse Kennedy, e com os “republicanos a tornarem-se anti-censura, pró-liberdades civis e anti-guerra – tem havido um tremendo realinhamento”.
A Europa parece estar a seguir (em termos gerais) a mesma direção que a política dos EUA. As elites europeias – tal como os seus homólogos democratas dos EUA – abraçaram a guerra contra a Rússia. As elites europeias adoptaram a massiva narrativa e controlo social feito pelos meios de comunicação social e desmembraram as normas cívicas básicas do casamento entre um homem e uma mulher e do género biológico a que muitos europeus ainda aderem.
Os “forasteiros” europeus começaram a pedir “Basta”! No entanto, podem esperar receber o mesmo tratamento duro dos principais meios de comunicação social que Kennedy está a receber (independentemente das suas opiniões). O Estado Profundo dos EUA não vai recuará perante nada para garantir que nem Kennedy – nem Trump – cheguem perto do poder. Bruxelas actuará em paralelo, na Europa.
Onde é que este realinhamento nos leva? Bem, neste momento estamos num período caótico de realinhamento. Kennedy, um democrata, acusado de adepto do “Tornar a América grande de novo” (n.t. Make America Great Again – slogan de Trump]. Extraordinário! Não se trata de política de classes. É um novo realinhamento, que está a baralhar velhas categorias. E uma mudança nos valores fundamentais entre os “outsiders” e os seus governantes. Uma das razões pelas quais isto será muito difícil de decifrar é o facto de os outsiders verem agora a “democracia” com crescente desconfiança. Será que isso vai resultar em votações tácticas? Será que a “direita” ou a “esquerda” têm muito significado quando um Kennedy é acusado de simpatizar com o MAGA?
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O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).