Espuma dos dias — “Os Estados Unidos acabam de destruir um grande império, o seu próprio império”, por Michael Hudson

Seleção e tradução de Francisco Tavares

6 min de leitura

Os Estados Unidos acabam de destruir um grande império, o seu próprio império

 Por Michael Hudson

Publicado por  em 29 de Junho de 2023 (original aqui)

 

Heródoto (História, Livro 1.53) conta a história de Creso, rei da Lídia (585-546 a. C.), Estado antigo situado no que é hoje a parte mais ocidental da Turquia, na costa do Mar Egeu. Creso conquistou Éfeso, Mileto e os reinos vizinhos de língua grega, obtendo botins e tributos que o tornaram um dos governantes mais ricos de seu tempo. Mas essas vitórias e riqueza conduziram-no à arrogância e à desmesura. Creso voltou então os seus olhos para leste, com a ambição de conquistar a Pérsia, governada por Ciro, o Grande.

Tendo dotado o cosmopolita templo grego de Delfos com substancial quantidade de ouro e prata, Creso resolveu consultar seu oráculo quanto a se ele teria sucesso na conquista que planeava. A sacerdotisa Pítia respondeu-lhe: “Se você for à guerra contra a Pérsia, destruirá um grande império”.

Assim, Creso partiu para atacar a Pérsia em 547 a. C. Marchando para o leste, atacou a Frígia, estado vassalo da Pérsia. Ciro montou uma operação militar especial para repelir Creso, derrotando o exército de Creso e capturando-o, e aproveitou a oportunidade para apreender o ouro da Lídia e introduzir a sua própria cunhagem de moeda de ouro persa. Assim, como previra o oráculo, Creso, de facto, destruiu um grande império: o seu próprio.

Avancemos para os dias de hoje: a campanha atual da administração Joe Biden de avançar o poderio militar norte-americano contra a Rússia e, depois dela, a China. O presidente também pediu conselhos aos seus análogos contemporâneos do oráculo de Delfos: a CIA e os think tanks seus aliados. Mas ao invés de alertar contra a arrogância, eles encorajaram o sonho neoconservador de que atacar a Rússia e a China consolidaria o controle norte-americano da economia mundial e alcançar o “Fim da história”.

Tendo organizado um golpe de estado na Ucrânia em 2014, os Estados Unidos enviaram seu exército de procuração da NATO para o leste, dando armas à Ucrânia para travar uma guerra étnica contra a sua população de língua russa, na esperança também de transformar a base naval russa da Crimeia numa fortaleza da NATO. Esta ambição, idêntica à de Creso, visava atrair a Rússia para o combate e esgotar a sua capacidade de se defender, destruindo a sua economia e a sua capacidade de prestar apoio militar à China e a outros países que procuram autonomia como alternativa à hegemonia dos EUA.

Depois de oito anos de provocações, um novo ataque militar contra os ucranianos russo-falantes foi preparado de forma muito evidente, para ser lançado em direção às fronteiras russas em fevereiro de 2022. A Rússia protegeu os seus compatriotas russos étnicos de mais violência, montando sua própria Operação Militar Especial. Os Estados Unidos e os seus aliados da NATO imediatamente apreenderam as reservas cambiais da Rússia mantidas na Europa e na América do Norte, e exigiram que todos os países impusessem sanções contra a importação de energia e grãos russos, esperando que isso derrubasse a taxa de câmbio do rublo.

O também délfico Departamento de Estado esperava que isso causasse a revolta dos consumidores russos e o derrube do governo de Vladimir Putin, abrindo caminho para as manobras norte-americanas de instalar uma oligarquia clientelar, como a que havia sustentado na década de 1990, sob a presidência de Boris Yeltsin.

Um dos subprodutos desse confronto com a Rússia seria o de garantir o controle dos Estados Unidos sobre os seus satélites da Europa Ocidental. O objetivo dessa manobra intra-NATO era impedir o sonho da Europa de lucrar com relações comerciais e de investimento mais estreitas com a Rússia, trocando os seus produtos industriais por matérias-primas russas. Os Estados Unidos frustaram tal expectativa, ao fazerem explodir os gasodutos Nord Stream, impedindo o acesso da Alemanha e de outros países ao gás russo de baixo preço. Isso deixou a principal economia da Europa dependente do gás natural liquefeito (GNL) norte-americano, de custo mais elevado.

Além de ter que subsidiar o gás doméstico europeu para evitar a insolvência generalizada, uma grande proporção de tanques Leopard alemães, mísseis Patriot dos Estados Unidos e outras “armas milagrosas” da NATO estão a ser destruídas no combate contra o exército russo. Tornou-se claro que a estratégia norte-americana não é apenas “lutar até ao último ucraniano”, mas lutar até ao último tanque, míssil ou outras armas que vão sendo eliminadas dos stocks da NATO.

Esperava-se que este esgotamento das armas da NATO criasse um vasto mercado de reposição, para enriquecer o complexo militar-industrial norte-americano. Os seus clientes da NATO estão ser instados a aumentar os seus gastos militares para 3 ou até 4% do PIB. Mas o fraco desempenho das armas americanas e alemãs no campo de batalha ucraniano pode ter destruído este sonho, enquanto as economias da Europa mergulham na depressão. E com a economia industrial da Alemanha perturbada pelo corte de seu comércio com a Rússia, o ministro das Finanças alemão, Christian Lindner, disse ao jornal Die Welt em 16 de junho de 2023 que o seu país não pode empenhar mais recursos no orçamento da União Europeia, para o qual, há muito tempo, vinha sendo o maior contribuinte.

Sem as exportações alemãs para apoiar a taxa de câmbio do euro, a moeda ficará sob pressão frente ao dólar à medida em que a Europa comprar GNL e a NATO reabastecer seus stocks esgotados de armas com a compra de novo armamento norte-americano. Uma taxa de câmbio mais baixa reduzirá o poder de compra da mão-de-obra europeia, enquanto a redução dos gastos sociais para pagar o rearmamento e fornecer subsídios ao gás já está a afundar o continente numa depressão.

Uma reação nacionalista contra o domínio norte-americano está a crescer em toda a política europeia e, em vez de os Estados Unidos manterem seu controle sobre a política europeia, podem acabar perdendo-o –e não apenas na Europa, mas em especial em todo o Sul Global. Em vez de transformar o “rublo em escombros”, como prometeu o presidente Joe Biden, a balança comercial da Rússia disparou e o seu stock de ouro aumentou. O mesmo aconteceu com as reservas de ouro de outros países cujos governos agora pretendem desdolarizar as suas economias.

É a diplomacia norte-americana que está a lançar a Eurásia e o Sul Global para fora da órbita dos Estados Unidos. O impulso arrogante do país para dominar um mundo unipolar só poderia ter sido desmantelado tão rapidamente a não ser a partir do seu interior. A administração Biden-Blinken-Nuland fez o que nem Vladimir Putin nem o presidente chinês Xi Jinping poderiam esperar alcançar num tão curto período de tempo. Nenhum dos dois estava preparado para lançar o desafio e criar uma alternativa à ordem mundial centrada nos Estados Unidos. Mas as sanções norte-americanas contra a Rússia, o Irão, a Venezuela e a China tiveram o efeito de barreiras tarifárias protetoras para forçar a autossuficiência, naquele espaço que o diplomata da União Europeia, Josep Borrell, apelidou de “selva” mundial, fora do “jardim” dos Estados Unidos/NATO.

Ainda que o Sul Global e outros países se queixem do domínio norte-americano desde a Conferência de Nações Não-Alinhadas de Bandung, em 1955, eles careciam de massa crítica para criar uma alternativa viável. No entanto, a sua atenção concentrou-se agora no confisco americano das reservas oficiais em dólares da Rússia nos países da NATO. Isso dissipou qualquer imagem do dólar como recurso seguro para manter uma poupança internacional. A apreensão anterior, pelo Banco da Inglaterra, das reservas de ouro da Venezuela mantidas em Londres – prometendo doá-las a quaisquer oponentes (ao seu regime socialista) não eleitos que os diplomatas americanos designassem – mostra como a libra esterlina e o euro, assim como o dólar, foram transformados em armas. A propósito, o que aconteceu com as reservas de ouro da Líbia?

Os diplomatas americanos evitam pensar nesse cenário. Eles confiam na única vantagem que os Estados Unidos ainda têm a oferecer: poderem abster-se de os bombardearem, de encenar revoluções coloridas para “pinochetá-los” pelo National Endowment for Democracy, ou instalar novos “Yeltsins” que entreguem as economias locais a oligarquias clientelares.

Mas tal abstenção é tudo o que os Estados Unidos podem oferecer. Eles desindustrializaram sua própria economia, e a sua ideia de investimento estrangeiro não é mais que criar oportunidades monopolistas de rendimento, concentrando monopólios tecnológicos e o controle do comércio de petróleo e grãos em mãos norte-americanas, como se isso fosse eficiência económica, e não mera predação de riqueza.

O que aconteceu, então, foi uma mudança na consciência. Estamos a assistir à maioria global a procurar a criação de uma opção independente e pacificamente negociada a propósito de que tipo de ordem internacional ela quer. O seu objetivo não é apenas criar alternativas ao uso do dólar, mas todo um novo conjunto de alternativas institucionais ao FMI e ao Banco Mundial, ao sistema de compensação bancária SWIFT, ao Tribunal Penal Internacional e a toda a gama de instituições que os diplomatas americanos sequestraram das Nações Unidas.

O resultado terá um alcance civilizacional. Não estamos a assistir ao “Fim da história”, mas a uma nova alternativa ao capitalismo financeiro neoliberal centrado nos Estados Unidos e à sua economia ruinosa de privatização e de guerra de classes contra o trabalho. A ideia de que o dinheiro e o crédito devem ser privatizados nas mãos de uma estreita classe financeira, em vez de ser uma utilidade pública para financiar as necessidades económicas e aumentar os padrões de vida, está finalmente a enfrentar o seu acerto de contas.

A ironia é que o papel histórico dos Estados Unidos tem sido o de que, ainda que eles mesmos não tenham sido capazes de liderar o mundo nesse sentido, as suas tentativas de encerrar o mundo num sistema imperial antitético, conquistando a Rússia nas planícies da Ucrânia e isolando a tecnologia chinesa (no seu esforço de quebrar o monopólio norte-americano de TI), foram os grandes catalisadores que acabaram por afastar a maioria global dos Estados Unidos.

 

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Michael Hudson é Presidente do The Institute for the Study of Long-Term Economic Trends (ISLET), Analista Financeiro de Wall Street, Distinto Professor de Investigação de Economia na Universidade do Missouri, Kansas City. É o autor de Super-Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (Editions 1968, 2003, 2021), “and forgve them their debts” (2018), J is for Junk Economics (2017), Killing the Host (2015), The Bubble and Beyond (2012), Trade, Development and Foreign Debt (1992 & 2009) e de The Myth of Aid (1971), entre muitos outros.

O ISLET dedica-se à investigação sobre finanças nacionais e internacionais, rendimentos nacionais e contabilidade de balanço no que diz respeito a bens imóveis, e envolve-se também na história económica do antigo Próximo Oriente. Michael actua como consultor económico de governos de todo o mundo, nomeadamente a China, Islândia e Letónia sobre finanças e direito fiscal.

 

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