A guerra na Ucrânia — “Biden nega mísseis de longo alcance a Zelenski, enquanto se abrem brechas no apoio europeu a Kiev”, por Juan Antonio Sanz

Seleção e tradução de Francisco Tavares

8 min de leitura

Biden nega mísseis de longo alcance a Zelenski, enquanto se abrem brechas no apoio europeu a Kiev

 Por Juan Antonio Sanz

Publicado por em 22 de Setembro de 2023 (original aqui)

 

Joe Biden cumprimenta Volodymyr Zelenski antes da sua reunião na Casa Branca, em Washington, em 22 de setembro de 2023. – Kevin Lamarque / REUTERS

 

O presidente dos EUA deixa os esperados mísseis de longo alcance ATACMS fora da nova ajuda militar concedida a Zelenski, que enfrenta agora a ameaça polaca de não enviar mais armas à Ucrânia.

 

Era a terceira vez que Joe Biden recebia Volodímir Zelenski na Casa Branca, duas delas em tempos de guerra, e eram compreensíveis os nervos do presidente ucraniano na hora de pedir mais ajuda ao seu principal aliado. Sobretudo, quando se espalha nos Estados Unidos o desencanto ante o conflito e na Europa se rompe a unidade mostrada até agora para sustentar o exército de Kiev, após a ameaça da Polónia de suspender os seus envios de armas à Ucrânia.

“Nenhuma nação pode estar realmente segura num mundo em que não defendamos a liberdade da Ucrânia diante da brutal agressão da Rússia”, disse Biden a Zelenski. O presidente americano, no entanto, não quis acrescentar tensão à crescente rejeição nos EUA à guerra da Ucrânia e preferiu evitar dar o passo que Zelenski esperava: o compromisso de dotar o exército ucraniano com mísseis ATACMS.

Os escassos avanços na contraofensiva lançada há quase quatro meses pelo exército ucraniano, as perspectivas de que se prolongue a guerra e os gastos multimilionários gerados pela contenda minaram a confiança da classe política e dos americanos comuns na ajuda à Ucrânia.

As pesquisas revelam uma rejeição cada vez maior à assistência de Washington a Kiev ao extremo de que parece forjar-se uma rebelião dos republicanos (que dominam a câmara de Representantes ou câmara baixa) contra a estratégia de Biden na Ucrânia. E as eleições presidenciais estão aí, ao virar da esquina.

O golpe assestado pela Polónia, que anunciou na quarta-feira que não enviará por enquanto mais armas ao exército ucraniano, já havia lançado um jarro de água fria sobre a viagem de Zelenski. Teria sido necessário que Biden desse um golpe de efeito e fechasse fileiras de forma contundente com o líder ucraniano, que nesta semana se deu um banho de multidões em Nova York, diante das Nações Unidas. Mas não foi assim.

 

Mais armas, mas de mísseis de longo alcance nem falar

A moderação marcou as novas concessões americanas a Kiev e houve mais lisonjas do que compromissos decisivos. Biden prometeu a Zelenski um pacote de ajuda militar de 325 milhões de dólares, uma quantia sóbria em comparação com outros suprimentos americanos do mesmo tipo para a Ucrânia.

Desde o início da guerra, em fevereiro de 2022, os EUA destinaram cerca de 113.000 milhões de dólares à Ucrânia em ajuda militar e humanitária.

Com o novo pacote anunciado nesta quinta-feira, haverá mais defesa antiaérea, mais munição para os sistemas de mísseis terra-terra HIMARS e mais bombas de fragmentação, cujo uso é proibido em muitos países.

Biden “decidiu que não fornecerá os mísseis ATACMS, mas que não descarta essa possibilidade no futuro”. O conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan disse que Washington teme uma escalada bélica com a Rússia se os mísseis de longo alcance ATACMS forem usados pelos ucranianos para atacar alvos em solo russo.

Em vão, Zelenski esperava um compromisso maior dos EUA para sublinhar esta visita e consolidar a contraofensiva em marcha. As armas prometidas agora por Washington só servirão para prolongar a atual guerra de posições.

 

Uma cimeira acompanhada pelo eco da guerra

A reunião entre Zelenski e Biden foi destacada por um pico nas hostilidades entre os dois contendores. O exército do Kremlin lançou nesta quinta-feira uma onda de ataques contra infraestruturas críticas por todo o país, depois de as forças armadas ucranianas terem atingido com drones e mísseis um aeródromo militar russo na península da Crimeia.

O Ministério da Defesa ucraniano informou sobre o bombardeamento russo nesta madrugada de 147 povoações e 151 instalações de infraestrutura básica em toda a Ucrânia. Cinco regiões sofreram cortes de energia em consequência dos ataques, os primeiros deste tipo em meio ano.

O governo de Zelenski teme que se possa repetir a tática lançada por Moscovo no outono e inverno passado para destruir as instalações de eletricidade, gás e água em boa parte da Ucrânia. Milhões de pessoas ficaram sem aquecimento e às escuras em quase todo o país quando o mau tempo piorava e as temperaturas eram mais baixas.

O bombardeamento ucraniano com drones e mísseis de cruzeiro ocorreu contra a base aérea russa de Saki, na Crimeia, e poderiam ter sido danificados aviões de combate ali estacionados, assim como uma bateria de mísseis Pantsir.

A nova fase da ofensiva ucraniana tem como um dos seus objetivos o ataque a alvos situados na península da Crimeia. Por enquanto, são os drones e alguns mísseis os protagonistas desses ataques, com um efeito mais propagandístico do que efetivo. Precisamente por isso, a Ucrânia reclamava e esperava receber nesta quinta-feira os mísseis de longo alcance americanos ATACMS. A entrada na guerra deste tipo de armamento sem dúvida mudaria os cenários e o alcance da luta.

O exército ucraniano já dispõe de mísseis de longo alcance franceses e britânicos que estão demonstrando a sua eficácia no assédio à retaguarda russa, mas precisa de foguetes com uma capacidade maior para evadir as defesas antiaéreas das forças russas, como os citados ATACMS e os Taurus alemães.

 

A irritação dos amigos polacos

O fiasco de Zelenski em Washington chega num momento pouco oportuno para a Ucrânia. A estratégia até agora unida da União Europeia para Kiev sofreu um golpe devastador depois de o primeiro-ministro polaco, Mateusz Moravie Irmcki, ter anunciado na quarta-feira que o seu país deixará de fornecer armas ao exército ucraniano.

Embora depois o presidente polaco, Andrzej Duda, tenha tentado emendar o impacto das palavras de Moravie Irmcki e explicado que o primeiro-ministro se referia apenas a novos armamentos, ele apenas enredou ainda mais o assunto. O porta-voz do Governo, Piotr Muller, insistiu que Varsóvia só entregará os “suprimentos de munições e de armamento previamente acordados, para cumprir os contratos assinados”.

A origem dessa decisão está no contencioso aberto pelo bloqueio russo ao transporte de cereais procedentes da Ucrânia pelo Mar Negro. O aumento do fluxo de cereais ucranianos através da Polónia, Bulgária, Eslováquia, Hungria e Roménia perturbou os seus mercados nacionais. Alguns desses países impuseram os seus próprios vetos a essa importação para proteger os seus agricultores, mas finalmente a União Europeia ordenou o levantamento dessas sanções, decisão questionada por vários desses estados, entre eles a Polónia.

O próprio Zelenski acrescentou lenha ao fogo na sua comparecência de terça-feira perante a Assembleia Geral das Nações Unidas quando acusou países supostamente aliados de fazerem o jogo da Rússia com as suas decisões, em aparente referência a esse veto à circulação dos cereais ucranianos.

O governo polaco ressaltou nesta quinta-feira que a sua decisão não muda a posição de Varsóvia sobre o conflito, mas por enquanto “é como disse o primeiro-ministro e no futuro já se verá”, segundo reafirmou o titular do património do Estado, Jacek Sasin.

Este ministro disse que a Polónia precisa de reabastecer os seus próprios arsenais. “Não podemos desarmar o exército polaco e renunciar às armas que são necessárias para o nosso país”, explicou Sasin para justificar o passo dado por Varsóvia, que, pela primeira vez, rompe a unidade europeia no fornecimento de armas à Ucrânia.

O passo dado pelo governo polaco pode estar carregado também de oportunistas razões eleitorais, diante do crescimento do sentimento antiucraniano na Polónia. Alguns grupos opositores, como o Partido Confederação, terceiro nas pesquisas antes das eleições legislativas de Outubro, estão a acusar o governo de “servilismo” diante das exigências de Kiev.

 

A decisão de um país soberano

O Pentágono, cujas instalações Zelenski visitou nesta quinta-feira, não teve problema em ressaltar que a Polónia havia tomado uma “decisão soberana” ao negar as armas à Ucrânia. Mas ninguém duvida na administração Biden que tal passo poderia ter um efeito em cascata noutros países europeus e ricochete na política americana, onde o lóbi polaco é muito forte.

Por isso, um dos objetivos de Zelenski em Washington era reunir-se com representantes dos partidos republicano e democrata, e assegurar o seu apoio à continuação da ajuda à Ucrânia contra a Rússia, independentemente do processo eleitoral em andamento nos EUA ante as eleições presidenciais de novembro de 2024.

Mas precisamente quando Zelenski falava na terça-feira ante a Assembleia Geral da ONU, um grupo de 28 congressistas republicanos fazia chegar a Biden a sua rejeição a um compromisso ilimitado com a Ucrânia, sem garantias e sem objetivos que não foram referendados pelo Congresso. Desde então, os rebeldes não pararam de crescer.

As vozes contrárias aos gastos americanos na Ucrânia podem dificultar que o Congresso aprove os 24.000 milhões de dólares adicionais que a Casa Branca prometeu há muito tempo à Ucrânia também em assistência militar, armas e ajuda humanitária.

“Conto com o bom senso do Congresso. Não há alternativa”, disse Biden após a sua reunião com Zelenski.

Uma pesquisa realizada em agosto pelo canal de televisão CNN mostrou que a maioria dos americanos se opõe à autorização de mais fundos destinados à Ucrânia. Entre os eleitores republicanos, esse número chegava a 71%.

Nos Estados Unidos, cujos interesses geopolíticos não se reduzem à Europa e onde se revisa até ao último centavo público que se gasta, já não vale a desgastada mensagem do governo que predomina nos países do velho continente de que o futuro do mundo se joga nos campos de batalha ucranianos. Desde logo, não o futuro dos EUA.

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O autor: Juan Antonio Sanz [1966-], é um jornalista espanhol, independente. É especializado em temas internacionais com a maior parte de sua carreira profissional desenvolvida no exterior, na Rússia e na ex-União Soviética (especialmente Ásia Central e Cáucaso), Coreia do Sul, Japão, Uruguai, Bolívia e Cuba. Além disso, exerceu como comunicador no âmbito da cooperação internacional e deu aulas de jornalismo e comunicação na Universidade Católica San Pablo de La Paz e no Estado-Maior do exército boliviano sobre Inteligência estratégica. Autor do livro ” Vampiros, príncipes do abismo. Crônicas de vampiros, nosferatus e outros mortos-vivos”, Editorial Almuzara 2020.

 

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