Espuma dos dias… para lá da guerra na Ucrânia — “Falsificando a História”, por Patrick Lawrence

Seleção e tradução de Francisco Tavares

9 min de leitura

Falsificando a História

 Por Patrick Lawrence

Publicado por  em 2 de outubro de 2023 (original aqui)

 

Enforcamento dos autores do massacre de Babyn Yar na Praça Maidan, em Kiev, em 1946. (Ainda de “O Julgamento de Kiev”, cortesia do Festival de cinema de Jerusalém)

 

A história diz-nos onde estamos na história humana e o que nós, vivos agora, devemos fazer para avançar nessa história. Adulterar a história é um dos pecados mais graves contra a causa humana.

O primeiro sinal de problemas que viriam, lembro-me de pensar, foi em junho de 2014. O dia 6 de junho caiu numa sexta–feira, e naquele fim-de-semana os líderes das potências aliadas reuniram-se nas praias da Normandia para celebrar os 70 anos dos desembarques do Dia D e o início do triunfo final dos Aliados sobre o Reich Nazi.

Nenhum responsável russo foi convidado a participar no encontro.

Que vergonhosamente indigno, lembro-me de ter pensado. Que bando de vagabundos embaraçosos, aqueles “líderes” de segunda categoria que se reuniram para tirar fotografias na areia.

Depois pensei num livro que Tom Engelhardt publicou alguns anos depois do colapso da União Soviética. The Commissar Vanishes (Metropolitan, 1997) é uma coleção de fotografias de antes e depois que mostram como, durante os anos estalinistas, os soviéticos retocaram nas fotografias oficiais aqueles que julgavam inimigos políticos. O livro é um pouco divertido, mas principalmente assustador.

E então pensei em quão diabolicamente poderoso é, a que ponto é mefistofélico, adulterar a história. E agora noto amargamente como esta prática é comum entre aqueles que pretendem falar por nós, mas que, na realidade, agem contra nós.

Um ano depois dos acontecimentos do Dia D, chegou a altura de assinalar a libertação de Berlim pelo Exército Vermelho, em abril de 1945. E mais uma vez: nenhum líder americano e nenhum europeu de qualquer categoria, tanto quanto me lembro, compareceu às cerimónias em Moscovo. Sem discursos, sem mensagens públicas que honrem os extraordinários sacrifícios e heroísmo dos soviéticos, quase nenhuma menção ao aniversário na imprensa ocidental.

Outro trabalho de pincel. Desta vez, senti um aguilhão de indignação que me envergonhou da nacionalidade que o destino me atribuiu. Um líder Ocidental digno ter-se-ia levantado e dito em voz alta: “somos todos russos hoje.”

Há nove anos, há oito anos: todos recordamos o que tinha acontecido na altura destas perversões repugnantes do passado. Em fevereiro de 2014, os EUA orquestraram um golpe antidemocrático na Ucrânia e instalaram um regime fantoche violentamente russófobo em Kiev. Moscovo respondeu, como poderia ter previsto um estudante do primeiro ano de ciência política, reanexando a Crimeia e apoiando a maioria de língua russa nas províncias orientais da Ucrânia.

Na primavera de 2015, Kiev bombardeava diariamente populações civis no leste, uma campanha que duraria oito anos e ceifaria cerca de 14.000 vidas. Moscou havia então decidido apoiar Luhansk e Donetsk como repúblicas autónomas, enquanto co-patrocinava acordos — os dois protocolos de Minsk — que teriam mantido a Ucrânia unida como uma república federada.

Estes acontecimentos marcaram as linhas de batalha com as quais estamos agora condenados a viver. A NATO aprovou o bombardeamento impiedoso de não-combatentes na medida em que treinou as Forças Armadas da Ucrânia para alcançar o máximo efeito. O Ocidente nunca teve qualquer intenção de apoiar os acordos de Minsk, que, para além de salvarem a Ucrânia como nação unificada, teriam também salvado milhares de vidas.

Os anos Russiagate seguiram-se a estes acontecimentos, eliminando toda a possibilidade de, pelo menos num futuro próximo, se poder restabelecer qualquer tipo de compreensão equilibrada e madura da Rússia, do seu povo e da sua conduta nos assuntos internacionais.

Os nossos tópicos aqui são dois. Um deles é o ódio, prevalecente como a russofobia reinante agora. O outro é a história e como isso é abusado para trazer o ódio para o campo desejado.

A história está entre os nossos tesouros mais preciosos. É a nossa âncora essencial. É o verde da nossa aldeia, a nossa taberna de esquina, e cada geração escreve-a para reflectir a forma como os vivos a compreendem. A história diz-nos onde estamos na história humana e o que nós, vivos agora, devemos fazer para avançar essa história como outros nos entregaram.

Temos de continuar na direcção daqueles que vieram antes? Temos de seguir uma nova direcção? São estes os tipos de perguntas que a história nos coloca.

Deixem-me dar aqui um palpite. Adulterar a história é um dos pecados mais graves contra a causa humana.

Os propagandistas soviéticos que eram especialistas na câmara escura entendiam muito bem o poder de perverter a história. Como dizemos agora, se você controla o passado, controla o presente.

Todos aqueles que estiveram nas praias da Normandia há nove anos, juntamente com aqueles que ficaram em silêncio um ano depois, eram descendentes políticos de líderes que outrora condenaram os soviéticos pelas suas cruéis ofensas ao passado. Agora, essas mesmas pessoas são os invasores-não apenas do passado da Rússia, ou da Europa, mas também do meu passado e do vosso passado.

Trago a raiva que os leitores dificilmente perderão a dois acontecimentos ocorridos na semana passada. Consideremos brevemente cada um destes agravos.

Há, em primeiro lugar, a confusão em que o governo canadiano se meteu ao celebrar um oficial Nazi.

Zelensky levanta o braço direito para saudar quando um Nazi é apresentado ao Parlamento canadiano. (Twitter / Thorston Banner / True North / CPAC / Cathy Vogan)

 

Há uma semana, na passada sexta–feira, o Parlamento canadiano aplaudiu de pé quando o presidente da Câmara, Anthony Rota, apresentou como herói Yaroslav Hunka, de 98 anos, por ter lutado ao lado dos ucranianos durante a Segunda Guerra Mundial. Hunka ficou de pé, a imagem de valor modesto, logo após Volodymyr Zelensky se dirigir à Câmara. Quando o serviço de Hunka contra os soviéticos foi assinalado, o presidente ucraniano apontou para Hunka em aprovação.

Como rapidamente se soube, Hunka serviu como membro da divisão da Galicia da Waffen SS nazi. Esta unidade foi uma das mais brutais no seu extermínio de judeus durante a guerra.

Rota renunciou ao cargo de presidente do Parlamento na semana passada. Zelensky, que sabia muito bem com quem lutava e por quem lutava um Ucraniano que lutava contra os soviéticos, não teve nada a dizer. E em meio de uma considerável confusão política em Ottawa, o primeiro-ministro Justin Trudeau ofereceu este pedido de desculpas:

“Para todos nós que estivemos presentes por termos reconhecido inconscientemente este indivíduo foi um erro terrível e uma violação da memória daqueles que sofreram gravemente nas mãos do regime nazi…. É extremamente preocupante pensar que este erro flagrante está a ser politizado pela Rússia e pelos seus apoiantes para fornecer falsa propaganda sobre aquilo porque a Ucrânia está a lutar.”

As potências ocidentais, com o conluio da liderança do regime de Kiev — e não quero ouvir outra palavra sobre o judaísmo de Zelensky — passaram anos a obscurecer o passado nazi na Ucrânia e a apagar a presença considerável de neonazis nas Forças Armadas da Ucrânia e em todos os níveis da burocracia e do governo.

Isto é o que se obtém — uma situação desmazelada, um presente desprovido de passado. E imediatamente o primeiro-ministro canadiano, um fantoche americano por direito próprio, viola mais uma vez a memória — em defesa da memória, é claro — ao dizer-nos que é com a propaganda russa que devemos preocupar-nos em primeiro lugar.

Estou farto desta obscuridade, desta hipocrisia – tudo isto consequência de uma campanha insidiosa para adulterar a história para que os EUA e a NATO possam aproveitar o ódio visceral dos extremistas xenófobos para travar uma guerra por procuração contra a Rússia.

Mal tinha terminado de pensar na farsa no Canadá quando o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, emitiu esta tradução dos mesmos capítulos controversos da História Europeia:

“Há oitenta e dois anos, os nazis assassinaram 34.000 judeus em Babyn Yar. Os soviéticos enterraram esta história, que hoje o governo de Putin manipula para cobrir os abusos da Rússia na Ucrânia. Os EUA estão comprometidos com a justiça para os sobreviventes do Holocausto e com a responsabilidade pelas atrocidades.”

Contextualização por leitores da mensagem: Prisioneiros soviéticos da guerra (POWs) estiveram entre os que foram massacrados em Babyn Yar. Os soviéticos libertaram Babyn Yar e Kiev em 1943. Os soviéticos realizaram um julgamento em 1946 em Kiev de 15 polícias alemães envolvidos nos massacres de Babyn Yar.

Ver aqui

 

Existem apenas duas formas de ler este disparate. Ou o secretário de Estado deve despedir o subalterno que escreve as suas publicações nas redes sociais, ou Tony Blinken vai agora ao ponto de assumir que pode destruir a história além de qualquer reconhecimento, e no nosso confuso presente será esse o resultado que permanecerá.

Para o registo, Babyn Yar (também escrito Babi Yar), uma seção de Kiev, foi o local de vários massacres nazis durante a Segunda Guerra Mundial. Blinken refere-se aos acontecimentos 29-30 de Setembro de 1941, quando 34.000 pessoas foram massacradas. No total, 100.000 a 150.000 judeus, prisioneiros de guerra soviéticos, ciganos e outros foram mortos nesses massacres.

Enquanto os nazis tentavam encobrir as atrocidades de Babyn Yar, os soviéticos divulgaram-nas imediatamente quando libertaram Kiev em 1943. Depois da guerra, julgaram os responsáveis.

De onde Blinken tirou essa ideia? Parece que ele não é a única pessoa a acreditar nesta versão dos acontecimentos. Um artigo de setembro de 2021 no The Times of Israel sobre o 80º aniversário do massacre de Babyn Yar disse que praticamente ninguém foi processado pelo massacre e que os soviéticos se recusaram a comemorar os assassinatos, assim “enterrando esta história”. O jornal disse:

“Nos Julgamentos de Nuremberga da década de 1940, um Nazi, Paul Blobel, foi condenado à morte e executado por crimes em Babi Yar, entre outros locais. Outros dois foram condenados à prisão. Um julgamento de 1968 terminou com penas de prisão de 4-15 anos para sete réus; três homens foram absolvidos nesses julgamentos, o último de qualquer perpetrador de Babi Yar. …

Na Ucrânia, Babi Yar também é relativamente obscura, em parte devido à recusa de décadas das autoridades comunistas em comemorá-la. Fazia parte de uma política mais ampla que minimizava o sofrimento dos Judeus no Holocausto, cooptando-o na narrativa Soviética sobre o sacrifício patriótico na luta contra o nazismo.”

Mas os factos não apoiam a ideia de que os soviéticos enterraram a história ou que apenas um punhado foi julgado em Nuremberga. Os soviéticos realizaram julgamentos em Kiev em 1946 e uma dúzia de perpetradores foram enforcados na Praça Maidan da cidade, palco do golpe apoiado pelos neonazis de 2014 que levou à guerra atual. A Wikipedia diz:

“Em janeiro de 1946, 15 ex-membros da polícia alemã … foram julgados em Kiev por seus papéis no massacre e outras atrocidades. Doze deles foram condenados à morte. Os outros três receberam penas de prisão. Os condenados à morte foram enforcados publicamente na Praça da cidade de Kiev em 29 de janeiro de 1946.[57]”

 

 

Em memoriais, os soviéticos trataram as vítimas de Babyn Yar igualmente, sem destacar judeus ou ciganos, levando a populazrizar uma noção de que a história foi enterrada. A Wikipedia diz:

“Depois da guerra, especificamente os esforços de comemoração de judeus e ciganos encontraram dificuldades por causa da ênfase da União Soviética em lembranças seculares em homenagem a todas as nacionalidades da União Soviética, de modo que os memoriais (incluindo em Babi Yar) geralmente se referem a ‘vítimas pacíficas do fascismo’. Os memoriais não foram explicitamente proibidos, mas sucessivos líderes soviéticos preferiram enfatizar as origens abrangentes dos assassinados no local.

Isso significava que tanto os povos judeus quanto os ciganos não eram especificamente homenageados no local de Babi Yar até ao colapso da União Soviética.[61]. Na verdade, o poema de 1961 de Yevgeny Yevtushenko sobre Babi Yar começa ‘nad Babim Yarom pamyatnikov nyet’ (‘sobre Babi Yar não há monumentos’); é também a primeira linha da Sinfonia No. 13 de Shostakovich.”

Embora a história do Times of Israel também falasse do aumento do apoio na Ucrânia aos colaboradores fascistas ucranianos que participaram no massacre, Blinken não faz absolutamente nenhuma referência a isso.

Aqueles que têm pouco respeito pela história e, portanto, nenhum por nós a quem a história pertence, têm muitas razões para pervertê-la. Durante a última década, a sua causa tem sido abusar da história para induzir um ódio profundo e duradouro à Rússia e ao seu povo.

E, como os acontecimentos aqui analisados indicam, a causa específica agora é recrutar-nos para o lado de uma nação com uma longa história de ódio à Rússia, para que possamos desculpar os seus excessos vergonhosos, ou fingir, melhor ainda, que não existem.

– Este artigo teve a contribuição de Joe Lauria.

 


O autor: Patrick Lawrence, correspondente no estrangeiro há muitos anos, principalmente para o International Herald Tribune, é colunista, ensaísta, autor e conferencista. O seu livro mais recente é Time No Longer: Os Americanos Depois do Século Americano. A sua conta no Twitter, @thefloutist, tem sido permanentemente censurada.

 

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