A guerra na Ucrânia — “As muitas lições da guerra na Ucrânia” (2/2),  por Chas W. Freeman Jr.

 

Nota de editor:

Dada a sua extensão  o presente artigo do antigo embaixador Chas W. Freeman Jr. é publicado em duas partes. Hoje publicamos a 2ª parte.

Seleção e tradução de Francisco Tavares

15 min de leitura

As muitas lições da guerra na Ucrânia (2 ª parte)

 Por Chas W. Freeman Jr.

Publicado por  em 6 de Outubro de 2023 (ver aqui)

Publicação original em  (ver aqui)

 

A Rússia Invade Ucrânia

Em meados de fevereiro, os combates entre o exército ucraniano e as forças secessionistas em Donbass intensificaram-se, com observadores da OSCE a relatarem um rápido aumento das violações do cessar-fogo por ambos os lados, mas com a maioria alegadamente iniciada por Kiev.

Talvez dissimuladamente, os separatistas do Donbass apelaram a Moscovo para os proteger e ordenaram uma evacuação geral de civis para refúgios seguros na Rússia. Em 21 de Fevereiro Putin reconheceu a independência das duas “repúblicas populares” de Donbass e ordenou que as forças russas as protegessem contra-ataques ucranianos.

Em 24 de Fevereiro, num discurso à nação russa, Putin declarou que “a Rússia não pode sentir-se segura, desenvolver-se e existir com uma ameaça constante que emana do território da Ucrânia moderna” e anunciou que havia ordenado o que chamou de “operação militar especial” “para proteger as pessoas que foram submetidas a assédio e genocídio… nos últimos oito anos ” e ” lutar pela desmilitarização e desnazificação da Ucrânia.”

Ele acrescentou que:

“É um facto que nos últimos 30 anos temos tentado pacientemente chegar a um acordo com os principais países da NATO sobre os princípios da segurança igual e indivisível na Europa. Em resposta às nossas propostas, enfrentámos invariavelmente decepções e mentiras cínicas ou tentativas de pressão e chantagem, enquanto a Aliança do Atlântico Norte continuou a expandir-se apesar dos nossos protestos e preocupações. A sua máquina militar está a mover-se e, como disse, está a aproximar-se da nossa própria fronteira.”

A narrativa oficial apresentada na guerra de informação dos EUA e da NATO contra a Rússia contradiz todos os elementos desta Declaração do Presidente Putin, mas o registo confirma-a.

 

Antecedentes da guerra por procuração EUA-Rússia na Ucrânia

Na era pós-soviética:

  • A NATO – a esfera de influência e presença militar dos EUA na Europa – expandiu-se constantemente em direção às fronteiras da Rússia, apesar dos crescentes avisos e protestos russos.
  • Pelo contrário, Moscovo esteve em constante recuo. Abandonou a sua esfera de influência na Europa Oriental. Não fez qualquer esforço para o restabelecer.
  • Moscovo advertiu repetidamente que o alargamento da NATO e o envio avançado de forças pelos EUA poderiam ameaçá-la, especialmente da Ucrânia, nma ameaça grave, à qual se sentiria compelida a reagir.
  • Dada a transformação da NATO de uma aliança puramente defensiva, focada na Europa, num instrumento de projeção de poder em apoio às operações de mudança de regime conduzidas pelos EUA e outras operações militares além das fronteiras dos seus membros, Moscovo tinha uma base razoável para a preocupação de que a adesão ucraniana à NATO representaria uma ameaça ativa à sua segurança. Esta ameaça foi sublinhada pela retirada dos EUA do Tratado que o impedia de instalar armas nucleares de alcance intermédio na Europa, incluindo na Ucrânia.
  • Moscovo exigiu consistentemente neutralidade para a Ucrânia. A neutralidade tornaria a Ucrânia um amortecedor e uma ponte entre si e o resto da Europa, em vez de parte da Rússia ou uma plataforma para a projecção do poder russo contra o resto da Europa.
  • Em contrapartida, os Estados Unidos procuraram fazer da Ucrânia um membro da NATO — parte da sua esfera de influência — e uma plataforma para a implantação do poder militar dos EUA contra a Rússia.
  • Moscovo concordou em Minsk respeitar a soberania ucraniana na região de Donbass, desde que os direitos dos falantes de russo fossem garantidos. Mas, com o apoio dos EUA e da NATO, a Ucrânia recusou-se a implementar o Acordo de Minsk e redobrou os seus esforços para subjugar o Donbass.
12 Fev. 2015: Putin, o presidente francês François Hollande, a chanceler alemã Angela Merkel, o presidente ucraniano Petro Poroshenko nas conversações do Normandy format em Minsk, Bielorrússia. (Kremlin)

 

  • Quando Washington se recusou a ouvir o argumento russo de acomodação mútua na Europa e, em vez disso, insistiu na adesão da Ucrânia à NATO, o governo dos EUA sabia que isso produziria uma resposta militar russa. Na verdade, Washington previu isso publicamente.
  • No início da guerra resultante, quando a mediação de terceiros conseguiu um projecto de acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia, o Ocidente — representado pelos britânicos — insistiu em que a Ucrânia o repudiasse.

Este triste incidente leva-me aos objectivos de guerra dos participantes na guerra.

 

Objectivos de guerra na Ucrânia

Kiev não se afastou dos seus objectivos de:

  • Forjar uma identidade nacional puramente Ucraniana da qual o russo e outras línguas, culturas e autoridades religiosas são excluídos.
  • Subjugando os falantes de russo que se rebelaram em resposta a esta tentativa de assimilação forçada.
  • Obtenção de protecção dos EUA e da NATO e integração com a UE.
  • Reconquista dos territórios de língua russa que Moscovo anexou ilegalmente da Ucrânia, incluindo os oblasts de Donbass e a Crimeia.

Moscovo declarou claramente os seus objectivos máximos e mínimos no projecto de Tratado que apresentou a Washington em 17 de Dezembro de 2021. Os principais interesses russos foram e continuam a ser:

  • Negar a Ucrânia à esfera de influência americana que tomou conta do resto da Europa Oriental, obrigando a Ucrânia a afirmar a neutralidade entre os Estados Unidos/NATO e a Rússia, e
  • Proteger e assegurar os direitos fundamentais dos falantes de russo na Ucrânia.

Os objectivos de Washington – que a NATO adoptou obedientemente como seus próprios objectivos – foram muito mais abertos e não específicos. Como disse o conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan em junho de 2022,

“… abstivemo-nos de expor o que vemos como um fim de jogo… Concentrámo-nos naquilo que podemos fazer hoje, amanhã e na próxima semana para reforçar ao máximo a mão dos ucranianos, primeiro no campo de batalha e, finalmente, na mesa de negociações.”

Na medida em que o primeiro princípio da guerra é estabelecer objectivos realistas, uma estratégia para os alcançar e um plano para o fim da guerra, esta é uma descrição perfeita de como preparar uma “guerra para sempre”. Como o Vietname, o Afeganistão, o Iraque, a Somália, a Líbia, a Síria e o Iémen atestam, este tornou-se o modo de guerra americano estabelecido. Não há objectivos claros, nenhum plano para os alcançar, nem um conceito de como acabar com a guerra, em que condições e com quem.

A declaração mais convincente dos objetivos dos EUA nesta guerra foi oferecida pelo presidente Joe Biden quando começou. Ele disse que o seu objetivo com a Rússia era “minar a sua força económica e enfraquecer as suas forças armadas nos próximos anos” — custe o que custar.

Em nenhum momento o governo dos Estados Unidos ou a NATO declararam que a protecção da Ucrânia ou dos ucranianos, por oposição à exploração da sua bravura para derrubar a Rússia, é o objectivo americano.

Biden e Sullivan em 19 de Fevereiro, durante a viagem de comboio da Estação Ferroviária de Przemysl, na Polónia, até Kiev. (Casa Branca/Adam Schultz)

 

Em abril de 2022, o Secretário de Defesa Lloyd Austin reiterou que a ajuda dos EUA à Ucrânia tinha como objetivo enfraquecer e isolar a Rússia e, assim, privá-la de qualquer capacidade credível de fazer guerra no futuro.

Muitos políticos e especialistas americanos exaltaram os benefícios de ter ucranianos, em vez de americanos, sacrificando as suas vidas para esse fim. Alguns foram mais longe e defenderam a dissolução da Federação Russa como objectivo de guerra.

Se você é russo, não precisa ser paranóico para ver essas ameaças como existenciais. Putin avalia os objetivos de guerra dos EUA como dirigidos a humilhar estrategicamente a Federação Russa e, se possível, derrubar o seu governo e desmembrá-lo. Os Estados Unidos não contestaram esta avaliação.

 

Paz Posta De Lado

Em meados de Março de 2022, o governo da Turquia e o primeiro-ministro israelense Naftali Bennett mediaram entre negociadores russos e ucranianos, que concordaram provisoriamente sobre os contornos de um Acordo Provisório negociado. O acordo previa que a Rússia se retirasse à sua posição de 23 de Fevereiro, quando controlava parte da região de Donbass e toda a Crimeia, e em troca, a Ucrânia prometia não procurar a adesão à NATO e, em vez disso, receber garantias de segurança de vários países.

Um encontro entre Putin e o presidente ucraniano Voldodymyr Zelensky estava em vias de ser organizado para finalizar este Acordo, que os negociadores rubricaram ad referendum — ou seja, sujeito à aprovação dos seus superiores.

Em 28 de Março de 2022. O presidente Zelensky afirmou publicamente que a Ucrânia estava pronta para a neutralidade combinada com garantias de segurança como parte de um acordo de paz com a Rússia. Mas em 9 de abril, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson fez uma visita surpresa a Kiev. Durante esta visita, ele teria instado Zelensky a não se encontrar com Putin porque (1) Putin era um criminoso de guerra e mais fraco do que parecia. Ele deveria e poderia ser esmagado em vez de acomodado; e (2) Mesmo que a Ucrânia estivesse pronta para acabar com a guerra, a NATO não estava.

Johnson e Zelensky caminham pelo centro de Kiev em 9 de abril de 2022. (Presidente da Ucrânia)

 

O encontro proposto por Zelensky com Putin foi então cancelado. Putin declarou que as conversações com a Ucrânia tinham chegado a um beco sem saída.

Zelensky explicou que “Moscovo gostaria de ter um Tratado que resolvesse todas as questões. No entanto, nem todos se vêem à mesa com a Rússia. Para eles, as garantias de segurança para a Ucrânia são uma questão, e o acordo com a Federação Russa é outra questão”. Isso marcou o fim das negociações bilaterais russo-ucranianas e, portanto, de qualquer perspectiva de resolução do conflito em qualquer lugar, exceto no campo de batalha.

 

O que aconteceu e quem ganha o quê

Esta guerra nasceu e continuou devido a erros de cálculo por todos os lados. A expansão da NATO era legal, mas previsivelmente provocadora. A resposta da Rússia era inteiramente previsível, se ilegal, e revelou-se muito dispendiosa. A integração militar de facto da Ucrânia na NATO resultou na sua devastação.

Os Estados Unidos calcularam que as ameaças russas de ir à guerra por causa da neutralidade ucraniana eram bluffs que poderiam ser dissuadidos ao delinear e denegrir os planos e intenções russos como Washington os entendia. A Rússia assumiu que os Estados Unidos prefeririam as negociações à guerra e desejariam evitar a redivisão da Europa em blocos hostis. Os ucranianos contavam com o Ocidente para proteger o seu país. Quando o desempenho russo nos primeiros meses da guerra se mostrou fraco, o Ocidente concluiu que a Ucrânia poderia derrotá-lo. Nenhum destes cálculos se revelou correcto.

No entanto, a propaganda oficial, amplificada por meios de comunicação sociais e tradicionais subservientes, convenceu a maioria no Ocidente de que rejeitar as negociações sobre a expansão da NATO e encorajar a Ucrânia a lutar contra a Rússia é de alguma forma “pró-ucraniano”. A simpatia pelo esforço de guerra ucraniano é perfeitamente compreensível, mas, como a guerra do Vietname nos deveria ter ensinado, as democracias perdem quando as claques substituem a objectividade nos relatórios e os governos preferem a sua própria propaganda à verdade do que está a acontecer no campo de batalha.

A única maneira de avaliar o sucesso ou o fracasso das políticas é por referência aos objectivos que foram concebidos para alcançar. Então, como estão os participantes na Guerra da Ucrânia em termos de alcançar os seus objectivos?

 

A Ucrânia

De 2014 a 2022, a guerra civil no Donbass levou quase 15.000 vidas. Não se sabe quantos foram mortos em combate desde que começou a guerra por procuração EUA/NATO-Rússia, em fevereiro de 2022, mas está certamente na casa das várias centenas de milhares.

O número de vítimas foi ocultado por uma intensa guerra de informação sem precedentes. A única informação no Ocidente sobre os mortos e feridos tem sido a propaganda de Kiev que reivindica um grande número de mortos russos, sem revelar absolutamente nada sobre as baixas ucranianas.

Sabe-se, no entanto, que 10% dos ucranianos estão agora envolvidos com as forças armadas e 78% têm parentes ou amigos que foram mortos ou feridos. Estima-se que 50.000 ucranianos foram amputados. (Em comparação, apenas 41.000 britânicos que tiveram de ser amputados na Primeira Guerra Mundial, quando o procedimento era frequentemente o único disponível para prevenir a morte. Menos de 2.000 veteranos americanos das invasões do Afeganistão e do Iraque tiveram amputações.)

A maioria dos observadores acredita que as forças ucranianas sofreram perdas muito mais pesadas do que os seus inimigos russos e que centenas de milhares deles deram as suas vidas em defesa do seu país e nos esforços para retomar o território ocupado pelos russos.

Quando a guerra começou, a Ucrânia tinha uma população de cerca de 31 milhões. Desde então, o país perdeu pelo menos um terço da sua população. Mais de 6 milhões refugiaram-se no Ocidente. Mais dois milhões partiram para a Rússia. Outros 8 milhões de ucranianos foram expulsos das suas casas, mas permanecem na Ucrânia.

As infra-estruturas, as indústrias e as cidades da Ucrânia foram devastadas e a sua economia destruída. Como é habitual nas guerras, a corrupção — há muito uma característica proeminente da política ucraniana — tem sido galopante. A democracia nascente da Ucrânia já não existe, com todos os partidos da oposição, meios de comunicação descontrolados e os dissidentes proibidos.

Por outro lado, a agressão russa uniu os ucranianos, incluindo muitos que falam russo, numa medida nunca antes vista. Assim, Moscovo reforçou inadvertidamente uma identidade ucraniana separada que tanto a mitologia russa como Putin procuraram negar. O que a Ucrânia perdeu em território ganhou na coesão patriótica baseada na oposição apaixonada a Moscovo.

O outro lado disto é que os separatistas de língua russa da Ucrânia também tiveram a sua identidade russa reforçada. Os refugiados ucranianos na Rússia são os mais duros dos linha-dura que exigem retribuição de Kiev. Há agora pouca ou nenhuma possibilidade de os falantes de russo aceitarem um estatuto numa Ucrânia unida, como teria sido o caso nos termos dos Acordos de Minsk.

E, com o fracasso da “contra-ofensiva” da Ucrânia, é muito improvável que Donbass ou a Crimeia voltem à soberania ucraniana. À medida que a guerra continua, a Ucrânia pode muito bem perder ainda mais território, incluindo o seu acesso ao Mar Negro. O que se perdeu no campo de batalha e no coração do povo não pode ser recuperado à mesa das negociações. A Ucrânia sairá desta guerra mutilada, aleijada e muito reduzida, tanto no território como na população.

Por último, não existe agora uma perspectiva realista de adesão da Ucrânia à NATO. Como disse o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Sullivan, “todos precisam olhar diretamente para o facto” de que permitir que a Ucrânia se junte à NATO neste momento “significa guerra com a Rússia.”

O Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg, afirmou que o pré-requisito para a adesão da Ucrânia à NATO é um tratado de paz entre a Ucrânia e a Rússia. Nenhum tratado desse tipo está à vista. Ao continuar a insistir em que a Ucrânia se tornará membro da NATO quando a guerra estiver concluída, o Ocidente incentivou perversamente a Rússia a não concordar em acabar com a guerra. Mas, no final, a Ucrânia terá de fazer as pazes com a Rússia, quase certamente em grande parte em termos russos.

Seja o que for que a guerra possa estar a conseguir, não tem sido bom para a Ucrânia. A posição de negociação da Ucrânia em relação à Rússia foi grandemente enfraquecida. Mas, então, o destino de Kiev sempre foi uma reflexão tardia nos círculos políticos dos EUA. Em vez disso, Washington procurou explorar a coragem ucraniana para derrotar a Rússia, revigorar a NATO e reforçar a primazia dos EUA na Europa.

 

A Rússia

Conseguiu Moscovo expulsar a influência americana da Ucrânia, forçou Kiev a declarar neutralidade ou restabeleceu os direitos dos falantes de russo na Ucrânia? Claramente não.

Por enquanto, pelo menos, a Ucrânia tornou-se uma dependência completa dos Estados Unidos e dos seus aliados da NATO. Kiev é um antagonista amargurado e de longa data de Moscovo. Kiev apega-se à sua ambição de aderir à NATO. Os russos na Ucrânia são os alvos da versão local da cultura do cancelamento. Qualquer que seja o resultado da guerra, a animosidade mútua apagou o mito russo da fraternidade russo-ucraniana baseado numa origem comum na Rússia de Kiev.

A Rússia teve de abandonar três séculos de esforços para se identificar com a Europa e, em vez disso, centrar-se na China, na Índia, no mundo islâmico e em África. A reconciliação com uma União Europeia seriamente alienada não será fácil, se é que acontecerá. A Rússia pode não ter perdido no campo de batalha ou sido enfraquecida ou estrategicamente isolada, mas incorreu em enormes custos de oportunidade.

Depois, também a NATO expandiu-se para incluir a Finlândia e a Suécia. Isso não altera o equilíbrio militar na Europa. Apesar do retrato ocidental da Rússia como inerentemente predatória, Moscovo não teve nem o desejo nem a capacidade de atacar anteriormente qualquer um desses dois estados muito alinhados com o Ocidente e formidavelmente armados, mas nominalmente “neutros”. Nem a Finlândia nem a Suécia têm qualquer intenção de aderir a um ataque não provocado à Rússia. Mas a sua decisão de aderir à NATO é politicamente prejudicial para Moscovo.

Uma vez que o Ocidente não mostra qualquer disposição para acomodar as preocupações de segurança russas, se Moscovo pretende atingir os seus objectivos, não tem agora alternativa aparente a continuar a lutar. Ao fazê-lo, está a estimular a determinação europeia de cumprir as metas anteriormente ignoradas da NATO em matéria de despesas de defesa e de adquirir capacidades militares auto-suficientes destinadas a combater a Rússia independentemente dos Estados Unidos. A Polónia está a ressurgir como uma poderosa força hostil nas fronteiras da Rússia. Estas tendências estão a alterar o equilíbrio militar europeu para a desvantagem a longo prazo de Moscovo.

 

E os Estados Unidos?

Somente em 2022, os Estados Unidos aprovaram US $113 mil milhões em ajuda à Ucrânia. O orçamento de Defesa russo era então menos de metade disso — 54 mil milhões de dólares. Desde então, praticamente duplicou. As indústrias de defesa russas foram revitalizadas. Alguns agora produzem mais armas num mês do que antes num ano. A economia autárquica da Rússia resistiu a 18 meses de guerra total contra ela, tanto dos EUA como da UE. Acabou de ultrapassar a Alemanha para se tornar a quinta economia mais rica do mundo e a maior da Europa em termos de paridade do poder de compra. Apesar das repetidas alegações ocidentais de que a Rússia estava a ficar sem munições e a perder a guerra de desgaste na Ucrânia, não o fez, enquanto o Ocidente o fez. A bravura ucraniana, que tem sido extremamente impressionante, não tem sido rival para o poder de fogo russo.

Entretanto, a alegada ameaça russa ao Ocidente, outrora um poderoso argumento para a unidade da NATO, perdeu credibilidade. As forças armadas da Rússia provaram ser incapazes de conquistar a Ucrânia, muito menos o resto da Europa. Mas a guerra ensinou a Rússia a combater e superar grande parte do armamento mais avançado dos Estados Unidos e de outros países ocidentais.

Antes de os Estados Unidos e a NATO rejeitarem as negociações, a Rússia estava preparada para aceitar uma Ucrânia neutra e federalizada. Na fase de abertura da sua invasão da Ucrânia, a Rússia reafirmou esta vontade num projecto de Tratado de paz com a Ucrânia que os Estados Unidos e a NATO impediram Kiev de assinar.

A intransigência diplomática ocidental não conseguiu persuadir Moscovo a acomodar o nacionalismo ucraniano ou a aceitar a inclusão da Ucrânia na NATO e na esfera de influência americana na Europa. A guerra por procuração parece, em vez disso, ter convencido Moscovo de que deve destruir a Ucrânia, manter os territórios ucranianos que anexou ilegalmente e provavelmente acrescentar mais, garantindo assim que a Ucrânia é um estado disfuncional incapaz de aderir à NATO ou de cumprir a visão ultranacionalista e anti-russa do seu herói neonazi da Segunda Guerra Mundial, Stepan Bandera.

A guerra levou à unidade superficial da NATO, mas existem fissuras óbvias entre os membros. As sanções impostas à Rússia causaram graves prejuízos às economias europeias. Sem o aprovisionamento energético russo, algumas indústrias europeias deixam de ser competitivas a nível internacional. Como mostrou a recente Cimeira da NATO em Vilnius, os países membros divergem quanto à conveniência de admitir a Ucrânia. Parece improvável que a unidade da NATO sobreviva à guerra. Estas realidades ajudam a explicar porque é que a maioria dos parceiros europeus dos Estados Unidos quer acabar com a guerra o mais rapidamente possível.

A guerra da Ucrânia contribuiu claramente para a era pós-soviética na Europa, mas não tornou a Europa em qualquer aspecto mais segura. Não reforçou a reputação internacional dos EUA nem consolidou a primazia dos EUA. Em vez disso, a guerra acelerou o surgimento de uma ordem mundial multipolar pós-Americana. Uma característica disso é um eixo antiamericano entre a Rússia e a China.

Para enfraquecer a Rússia, os Estados Unidos recorreram a sanções unilaterais intrusivas sem precedentes, incluindo sanções secundárias que visam a atividade comercial normal à distância de armas que não envolve um nexo dos EUA e é legal nas jurisdições das partes envolvidas. Washington tem bloqueado ativamente o comércio entre países que não têm nada a ver com a Ucrânia ou a guerra lá, porque eles não vão apanhar o comboio em movimento dos EUA.

Como resultado, grande parte do mundo está agora envolvida na busca de ligações financeiras e de cadeias de suprimentos que sejam independentes do controle dos EUA. Isso inclui esforços internacionais intensificados para acabar com a hegemonia do dólar, que é a base para a primazia global dos EUA. Se estes esforços forem bem sucedidos, os Estados Unidos deixarão de ser capazes de gerir os défices comerciais e da balança de pagamentos que sustentam o seu actual nível de vida e estatuto de sociedade mais poderosa do planeta.

O uso de pressão política e económica por Washington para obrigar outros países a conformarem-se com as suas políticas anti-russas e anti-chinesas claramente saiu pela culatra. Encorajou até mesmo antigos estados clientes dos EUA a procurar maneiras de evitar o envolvimento em futuros conflitos americanos e guerras por procuração que eles não apoiam, como na Ucrânia. Para o efeito, abandonam a dependência exclusiva dos Estados Unidos e estabelecem laços com múltiplos parceiros económicos e político-militares. Longe de isolar a Rússia ou a China, a diplomacia coerciva dos Estados Unidos ajudou Moscovo e Pequim a melhorarem as relações na África, Ásia e América Latina que reduzem a influência dos EUA em favor da sua própria.

 

Resumo

Em suma, a política dos EUA resultou em grande sofrimento na Ucrânia e na escalada dos orçamentos de defesa aqui e na Europa, mas não conseguiu enfraquecer ou isolar a Rússia. Mais do mesmo não irá realizar qualquer um destes objectivos americanos frequentemente declarados. A Rússia foi educada em como combater os sistemas de armas dos EUA e desenvolveu contra-ataques eficazes para eles. Foi reforçada militarmente, não enfraquecida. Foi reorientada e libertada da influência ocidental, não isolada.

Se o objectivo da guerra é estabelecer uma paz melhor, esta guerra não o está a fazer. A Ucrânia está a ser eviscerada no altar da russofobia. Neste ponto, ninguém pode prever com confiança quanto da Ucrânia ou quantos ucranianos restarão quando os combates pararem ou quando e como pará-los. Kiev não conseguiu cumprir mais do que uma fracção dos seus objectivos de recrutamento. Combater a Rússia até ao último ucraniano foi sempre uma estratégia odiosa. Mas quando a NATO está prestes a ficar sem ucranianos, não é apenas cínica; já não é uma opção viável.

 

Lições a retirar da guerra da Ucrânia

O que podemos aprender com este desastre? Ele forneceu muitos lembretes indesejáveis dos princípios básicos da política.

  • As guerras não decidem quem tem razão. Eles determinam quem resta.
  • A melhor maneira de evitar a guerra é reduzir ou eliminar as apreensões e queixas que a causam.
  • Quando você se recusa a ouvir, muito menos abordar o caso de uma parte lesada para ajustes nas suas políticas em relação a ela, corre o risco de uma reação violenta dela.
  • Ninguém deve entrar numa guerra sem objectivos realistas, sem uma estratégia para os alcançar e sem um plano para o fim da guerra.
  • A justiça própria e a bravura não substituem a massa militar, o poder de fogo e a resistência.
  • No final, as guerras são ganhas e perdidas no campo de batalha, não com propaganda inspirada e dirigida a reforçar a ilusão.
  • O que se perdeu no campo de batalha raramente pode, ou nunca, ser recuperado à mesa de negociações.
  • Quando as guerras não podem ser vencidas, geralmente é melhor buscar termos para acabar com elas do que reforçar o fracasso estratégico.

 

É hora de priorizar poupar tanto quanto possível a Ucrânia. Esta guerra tornou-se existencial para ela. A Ucrânia precisa de apoio diplomático para construir uma paz com a Rússia, se os seus sacrifícios militares não foram em vão. Está a ser destruída. Tem de ser reconstruída. A chave para preservar a Ucrânia é capacitar e apoiar Kiev para pôr fim à guerra nas melhores condições que possa obter, facilitar o regresso dos seus refugiados e utilizar o processo de adesão à UE para promover reformas liberais e instituir um governo limpo numa Ucrânia neutra.

Infelizmente, tal como as coisas estão, tanto Moscovo como Washington parecem determinados a persistir na destruição em curso da Ucrânia. Mas seja qual for o resultado da guerra, Kiev e Moscovo terão de encontrar uma base para a coexistência. Washington tem de apoiar Kiev a desafiar a Rússia a reconhecer tanto a sabedoria como a necessidade de respeitar a neutralidade e a integridade territorial ucranianas.

Por último, esta guerra deveria provocar um repensar sóbrio em Washington, em Moscovo e pela NATO das consequências de uma política externa militarizada e sem diplomacia. Se os Estados Unidos tivessem concordado em falar com Moscovo, mesmo que continuasse a rejeitar muito do que Moscovo exigia, a Rússia não teria invadido a Ucrânia como o fez. Se o Ocidente não tivesse intervindo para impedir a Ucrânia de ratificar o Tratado – outros ajudaram a Ucrânia a entender-se com a Rússia no início da guerra -, a Ucrânia estaria agora intacta e em paz.

Esta guerra não precisava de ter lugar. Cada lado perdeu muito mais do que ganhou. Há muito a aprender com o que aconteceu na e à Ucrânia. Devemos estudar e aprender estas lições e levá-las a sério.

 


O autor: Chas W. Freeman, Diplomata aposentado e funcionário público veterano dos EUA que serviu em muitos cargos superiores, incluindo como Secretário Adjunto da Defesa para os Assuntos de Segurança Internacional, Embaixador dos EUA na Arábia Saudita, Diretor para os Assuntos Chineses no Departamento de Estado dos EUA, e como principal intérprete dos EUA durante a visita histórica do Presidente Nixon à China em 1972.

 

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