Espuma dos dias — “LIKOUD E HAMAS: UMA HISTÓRIA DE REFORÇO MÚTUO”, por Louis Barathon

Nota prévia:

Ontem estive a passar o serão com um grupo de amigos, tudo gente do mais fino calibre, com uma possível exceção possível, eu próprio. Tudo gente de cultura, tudo gente que privilegia o humanismo. De repente instala-se a discussão sobre a barbárie que se vive no Médio Oriente e de repente, a cultura, o humanismo, é silenciado pelo ódio. Este sempre foi o grande inimigo da reflexão e sem esta só resta como forma de resolver o problema da barbárie: uma solução distorcida do jogo da galinha levado até ao fim. Neste jogo infernal em que duas viaturas circulam em sentido contrário e em grande velocidade numa estrada de uma só via. Levado até ao fim, o jogo termina com o choque frontal das duas viaturas e, sendo assim, um dos dois contendores deve morrer e este será logicamente o mais fraco, uma vez que o mais forte conduz um camião de muitas toneladas e o outro um Fiat 500 do tempo da minha avó.

Desse clima de ódio sobressaíam três argumentos:

  1. A culpa é do Putin
  2. A culpa é do Irão
  3. Hamas e palestinianos são todos a mesma coisa e, portanto…

Deixemos o terceiro argumento e fixemo-nos nos dois primeiros.

Não vou aqui rebater a argumentação de que na Ucrânia são todos uns santos, do outro lado está o demónio, Putin. Limitei-me a dizer que visto do lado de cá, da Europa ocidental, do lado de lá estão os povos eslavos de segunda, e se há dúvidas consultem o quadro legislativo da Ucrânia estabelecido por Zelensky em 2021 não por Putin. Depois, lembrei que os Talibãs foram uma criação americana para combater os russos, que os grupos armados islamitas atuais têm muitas das suas armas fornecidas pelos fundamentalistas líbios, com estes a terem sido financiados por Hillary Clinton, que o Hamas é ele um produto de Israel e de Washington para combater a OLP, e há uma História por detrás disto tudo. Esta não pode ser esquecida.

Quanto ao Irão questionei um dos presentes sobre a sua não leitura de um livro que eu lhe tinha oferecido: La guerre du pétrole de Willian Engdahl e recordei os acordos de Spykes-Picot de 1916 sobre a partilha do Irão entre franceses e ingleses, lembrei a morte de Mossadegh e por fim, perguntei quem é que sustentou o Ayatollah Khomeini. Não foram os russos, seguramente.

Felizmente, um dos participantes mais duros na discussão lembrou-se que estávamos numa festa de anos e a nossa obrigação era brindar à saúde da aniversariante e de nós todos, já agora. E a discussão morreu aqui, e em bem. Quando o brinde se sobrepôs ao ódio, este desapareceu por completo, e voltámos todos a ser os humanistas que de facto somos.

Depois do debate aceso da noite de ontem, curiosamente, recebo hoje na minha caixa de email um texto sobre a história recente do conflito que esteve em discussão. Um texto instrutivo baseado em múltiplas fontes cuja maioria não pode ser acusada de ser contra os valores do Ocidente, New York Times, Libération, Le Monde, Le Monde Diplomatique, Haaretz, Israel News, Yitzhak Rabin, Amos Oz, etc.

Leia-se então o texto, entenda-se então a história, e é nossa obrigação divulgá-lo, como peça de combate contra o ódio e de um apelo à reflexão serena que nos faltou a todos no serão de ontem.

 

Júlio Marques Mota


 

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

12 min de leitura

LIKOUD E HAMAS: UMA HISTÓRIA DE REFORÇO MÚTUO

Por Louis Barathon

Publicado por  em 30 de Outubro de 2023 (original aqui)

 

                              © Joseph Édouard para LVSL

 

No conflito israelo-palestiniano, as forças maximalistas, articulando proclamações belicosas e escatologia religiosa, adquiriram uma ascendência sem precedentes. Em Gaza, a oposição não-islamista à colonização foi reduzida à marginalidade pela hegemonia do Hamas. O Hamas tem beneficiado do apoio discreto, mas ativo, do Likud, que está convencido de que isso lhe fornecerá um seguro de vida para se manter no poder. Embora o Hamas tenha um sólido apoio regional, enfrenta a concorrência de grupos jihadistas mais radicais dentro das suas próprias fileiras. Em Israel, os movimentos de extrema-direita, que defendem oficialmente o apartheid e apelam ao massacre de civis palestinianos, nunca foram tão influentes como agora; capitalizam as atrocidades cometidas pelo Hamas. A coligação liderada por Benjamin Netanyahu, da qual fazem parte, beneficia do apoio constante dos Estados ocidentais. Uma retrospetiva de um processo de sabotagem das soluções pacíficas.

 

Embora a natureza terrorista do Hamas seja corretamente destacada pelos meios de comunicação ocidentais, a sua história é menos linear do que parece. Foi fundado em 1987 pelo Xeque Yassin, um imã da Irmandade Muçulmana, para travar uma luta armada contra o Estado de Israel. Esta decisão marcou um ponto de viragem para a Irmandade Palestiniana, que até então tinha rejeitado a opção militar. O principal objetivo desta era re-islamizar a sociedade palestiniana, que deplorava por ser demasiado secular. A oposição à ocupação israelita permaneceu secundária.

Com a intensificação da colonização, a Irmandade Muçulmana viu a sua popularidade na Palestina cair a pique. Ao propor-lhes que se juntassem à causa nacionalista, o Xeque Yassin deu-lhes um novo alento. E, ao optar por um modus operandi terrorista, proporcionou um novo horizonte aos desiludidos com a Organização de Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat.

Yitzhak Rabin declarou que o Likud era “o melhor colaborador com que o Hamas poderia sonhar”. Amos Oz acrescentou que o Hamas era “o melhor instrumento que os falcões extremistas de Israel têm à sua disposição”.

 

Enquanto que a OLP se abria a negociações com Israel, o Hamas intensificava os seus ataques, visando deliberadamente civis israelitas. Enquanto em 1988 a OLP reconheceu o direito de Israel a viver “em paz e segurança”, o Hamas, fundado um ano antes, fez da sua erradicação o objetivo final. E enquanto a OLP, que reunia várias organizações seculares (incluindo a Fatah, liderada por Arafat), pretendia transcender as divisões confessionais, o Hamas era virulentamente antissemita.

 

“UM PESADELO DENTRO DE UM PESADELO” EM GAZA

Os Acordos de Oslo (1993-1995) foram um ponto de viragem para o Hamas. As autoridades israelitas e palestinianas concordaram em respeitar as fronteiras de cada um. Mas, enquanto a aplicação dos acordos se mostrava escorregadia e o exército israelita permanecia nos territórios ocupados, o Hamas intensificava os seus ataques para torpedear os acordos. Tem uma base social que só irá crescer à medida que os compromissos de Oslo vão sendo espezinhados e os confrontos com Israel são retomados. O Hamas obteve bons resultados em sucessivas eleições, culminando com a sua vitória nas eleições legislativas de 2006.

Do lado israelita, o avanço do Hamas dá força à direita (dominada pelo Likud), que se apressa a classificar de “terrorista” qualquer forma de oposição aos colonatos. A confiança da população no processo de paz, já de si frágil, vai-se corroendo. É preciso dizer que a estratégia israelita não foi totalmente alheia à ascensão do Hamas. Em 2006, o jornalista Charles Enderlin resumiu-a no Le Monde: “Durante trinta anos, os dirigentes israelitas apostaram nos islamitas para destruir a Fatah” [nota da redação: o principal movimento da OLP].

Desde os anos 1970, os sucessivos governos apostaram no apoio aos Irmãos Muçulmanos palestinianos para enfraquecer a OLP. Os primeiros foram tolerados, ou mesmo encorajados, enquanto os segundos foram proibidos e reprimidos. Inicialmente, esta escolha podia ser explicada por uma avaliação incorreta do perigo que representava o movimento islamista [1]. Mas esta orientação estratégica perdurou muito para além da criação do Hamas.

 

Em 2007, quando uma sangrenta guerra civil dilacerava o Hamas e a Fatah em Gaza, o chefe dos serviços secretos de Israel, Amos Yadlin, declarou-se “feliz” com a perspetiva de uma “conquista da Faixa de Gaza pelo Hamas”, o que “[permitiria] tratá-la como um Estado hostil”, como relatado pelo Wikileaks. Sob os mandatos de Benjamin Netanyahu (no poder de 2009 a 2019 e novamente a partir de 2022), este apoio tácito ao Hamas continuou, para indignação repetida da esquerda israelita.

Em particular, o Primeiro-Ministro autorizou, sem qualquer controlo, as transferências de fundos do Qatar e do Irão para Gaza – de resto sob bloqueio – que alimentaram diretamente a ala militar do Hamas. Benjamin Netanyahu defendeu esta política durante uma entrevista no Knesset, em termos relatados por vários meios de comunicação israelitas, nomeadamente o Haaretz e o The Times of Israel: “Qualquer pessoa que se oponha à criação de um Estado palestiniano deve apoiar o fluxo de fundos para Gaza, porque a separação entre a Autoridade Palestiniana na Cisjordânia e o Hamas em Gaza impedirá a criação de um Estado palestiniano”.

Para além destas manobras, a política seguida pelo primeiro-ministro israelita contribuiu para impedir qualquer aproximação entre o Hamas (hegemónico em Gaza) e a Fatah (no poder na Cisjordânia). Em 2006, a Fatah recusou-se a reconhecer a vitória do seu rival nas eleições legislativas. Seguiram-se violentos confrontos: a Fatah foi expulsa da Faixa de Gaza, mas manteve-se no poder na Cisjordânia (sob o nome de “Autoridade Palestiniana”).

O Hamas, que controlava Gaza, manteve-se aberto a uma reunificação das instituições palestinianas, de tal forma que, em 2014, foi ratificado um pacto: a Autoridade Palestiniana foi reintegrada nas suas funções na Faixa de Gaza, enquanto foi criado um governo unitário. Este acordo não resistiu aos bombardeamentos ordenados por Netanyahu em junho, que responsabilizou o Hamas pela morte de três adolescentes israelitas raptados na zona de Hebron.

Este novo período de assassinatos marca o fim da aproximação intra-palestiniana. Como escreve o investigador Jean-Pierre Filiu: “Neste outono de 2014, o Hamas pode estar grato a Netanyahu por tê-lo tirado de um impasse que lhe poderia ter custado o seu poder total na Faixa de Gaza. Os ferozes bombardeamentos do exército israelita restauraram a legitimidade da “resistência islâmica “” [2].

De uma forma mais geral, acrescenta, a severidade do bloqueio imposto a Gaza aumenta o controlo da organização islamista sobre a Faixa: “A recusa de Israel em afrouxar significativamente o estrangulamento do cerco também joga a favor do Hamas. O controlo meticuloso que Israel exerce sobre os pontos de passagem permite que o Hamas dê prioridade à ajuda que lhe é permitida, de forma limitada, à sua própria clientela de simpatizantes [3]“. O “pesadelo dentro de um pesadelo”, como o descreveu um manifesto de Gaza em 2010, estava destinado a durar.

 

LIKUD: CONQUISTAR A HEGEMONIA E FAZER CONCESSÕES À EXTREMA-DIREITA

Poucos meses antes do seu assassinato, em novembro de 1995, o primeiro-ministro Yitzhak Rabin declarou que o Likud era “o melhor colaborador com que o Hamas poderia sonhar”. No New York Times, o poeta israelita Amos Oz acrescentou que o Hamas era “o melhor instrumento que os falcões extremistas de Israel têm à sua disposição”. A ascensão conjunta do Hamas e do Likud não é de modo algum fortuita.

É, em parte, o resultado dos fracassos da esquerda israelita, cujos dois principais partidos – o Partido Trabalhista e o Meretz – tinham feito da concretização dos acordos de paz uma promessa fundamental. Em 1992, obtiveram juntos a maioria, legitimando o primeiro-ministro Yitzhak Rabin na sua abordagem. O Partido Trabalhista, que tinha abandonado o seu programa social nos anos 80, queria encontrar um novo projeto para a sociedade [4]. No entanto, à medida que o processo se arrastava, as esperanças iniciais foram-se desvanecendo.

Os atentados do Hamas não eram alheios a este facto. Ao mesmo tempo, longe de completar a desmilitarização dos territórios ocupados, Yitzhak Rabin permaneceu passivo face ao desenvolvimento de novos colonatos na Palestina, tal como as potências ocidentais envolvidas no processo de paz. Esta inação foi, desde então, interpretada como um cheque em branco às forças israelitas a favor da intensificação dos colonatos. Iniciou-se então um círculo vicioso que reforçou o fatalismo dos palestinianos desiludidos, bem como o sentimento de viverem numa cidadela sitiada do lado israelita. O assassinato de Yitzhak Rabin por um ultranacionalista israelita apenas serviu para radicalizar uma dinâmica que já estava em curso.

Um novo paradigma de direita tomou conta da opinião pública: a paz não traz segurança. Este facto foi confirmado nas eleições legislativas de 2006. O Partido Trabalhista e o Meretz, castigados pela sua campanha pacifista, sofreram uma pesada derrota [5]. Dois anos mais tarde, nem o Partido Trabalhista nem o Meretz denunciaram a operação Chumbo Fundido, que causou centenas de mortos em Gaza… O Partido Trabalhista, que esteve continuamente no poder até ao final dos anos 70 – e depois algumas vezes – e que não ganhava uma única eleição legislativa desde 2001, foi condenado a uma marginalidade crescente. Agora, é o Likud, o partido tradicional da direita, que estabelece a pauta.

Inicialmente, Netanyahu conseguiu canalizar os seus aliados de extrema-direita, procurando manter um status quo legislativo e permitindo, ao mesmo tempo, que a colonização avançasse de forma não oficial. Posteriormente, passou a ouvir com mais atenção as suas exigências.

 

Na sua esteira, os partidos de extrema-direita, tanto laicos como religiosos, floresceram por todo o lado. Durante o mandato de Benjamin Netanyahu, foram-lhes atribuídos cargos ministeriais. Na década de 2010, eram apenas parceiros de menor importância, cujos projetos mais radicais Netanyahu conseguiu canalizar. A anexação dos territórios palestinianos e a instauração de um regime oficial de apartheid, sem igualdade jurídica entre palestinianos e judeus, foram reivindicadas por vários deles, mas nunca se concretizaram. Inicialmente, Netanyahu procurou manter um status quo legislativo, ao mesmo tempo que permitia, de forma não oficial, o avanço dos colonatos.

Posteriormente, deu mais atenção às exigências dos partidos de extrema-direita, de cujo apoio necessitava, e enfraqueceu progressivamente as garantias de igualdade jurídica entre judeus e palestinianos. Um exemplo é a “Lei do Povo Judeu“, que concede à maioria judaica a propriedade exclusiva do Estado de Israel. A lei estabelece que “o Estado considera o desenvolvimento dos colonatos judeus como um valor nacional e encorajá-lo-á e promovê-lo-á”. A extrema fragilidade dos direitos de propriedade dos palestinianos, que estes desenvolvimentos legislativos apenas serviram para restringir, estabeleceu a impunidade sistemática dos colonos e intensificou a brutalidade dos despejos.

Entre janeiro e outubro de 2022, mais de 650 estruturas que albergavam cerca de 750 palestinianos foram demolidas por Israel na Cisjordânia e em Jerusalém. As autoridades israelitas, que juridicamente governam a Cisjordânia, introduziram um sistema de licenças de construção. Qualquer propriedade palestiniana que não possua uma licença pode ser legalmente destruída. E, em muitas zonas, é de qualquer modo impossível para os palestinianos obterem uma licença de construção.

 

QUANDO O PARTIDO SIONISTA E RELIGIOSO IMPÕE A SUA AGENDA

O regresso de Netanyahu no final de 2022 marcou o ponto culminante do alinhamento do Likud com a extrema-direita. Expulso em 2021 por uma coligação heterogénea, em dezembro de 2022 formou um novo governo com três partidos judeus ortodoxos, o Partido Sionista-Religioso, o Judaísmo da Torá Unificado e o Shas. Apesar das suas diferenças, partilham uma visão supremacista e criticam o laicismo do Estado e do Supremo Tribunal, numa posição que é contrária aos princípios do Estado de direito – separação de poderes e limitação da religião – sobre os quais Israel foi fundado. Pela primeira vez, estes três partidos da ultra-direita religiosa foram suficientes para que o Likud formasse uma coligação. E o seu primeiro ato foi apoiar um projeto de lei que restringe os poderes do Supremo Tribunal, a última instituição capaz de garantir, em última instância, o respeito pela lei e pelas liberdades fundamentais.

As manifestações massivas de oposição a este projeto testemunham o apego de uma grande parte da sociedade israelita ao Estado de direito. A 21 de janeiro de 2023, 130.000 pessoas marcharam contra o projeto em Telavive, no terceiro ato de um movimento de uma dimensão raramente vista no país. O protesto estendeu-se à cúpula do aparelho de Estado: altos funcionários, normalmente reservados, manifestaram-se contra a reforma, tal como uma centena de diplomatas. Esta mobilização atrasou ainda a entrada em vigor do projeto de lei, apesar de algumas das suas cláusulas terem sido aprovadas pelo Parlamento durante o verão.

Ao mesmo tempo, a situação na Cisjordânia deteriorou-se. Enquanto as reformas iliberais de Netanyahu suscitavam uma forte oposição na sociedade israelita, o mesmo não se podia dizer da questão palestiniana. No entanto, também nesta questão, a nova coligação atingiu um grau de radicalismo sem precedentes. Dois dos três parceiros do Likud pertencem ao movimento “sionista religioso” (e, em particular, ao partido com o mesmo nome) que, contrariamente à ortodoxia tradicional, associa a sua prática religiosa à perspetiva de uma conquista territorial apenas para o “povo judeu”.

Vários representantes do Partido Sionista-Religioso são conhecidos por proferirem comentários supremacistas e apelarem a massacres. No final de 2021, quando ainda não era Ministro da Segurança Nacional, Iatmar Ben Gvir brandiu uma pistola no bairro de Sheikh Jarrah (Jerusalém Oriental), de maioria palestiniana, e ordenou à polícia que disparasse contra os atiradores de pedras.

Belazel Smotrich, presidente do Partido Sionista Religioso e atual Ministro das Finanças, defendeu que os militares israelitas pudessem disparar sobre as crianças palestinianas que lhes atirassem pedras. Comentando um incêndio criminoso que provocou a morte de três palestinianos na aldeia de Douma, Smotrich afirmou ainda que classificar tais atos como “terroristas” provocaria um “ataque mortal e injustificado aos direitos humanos e civis“.

Na frente legislativa, o Partido Sionista-Religioso condicionou a sua participação à votação de medidas destinadas a anexar os territórios ocupados a médio prazo – e a um endurecimento das relações com as autoridades palestinianas. Em resposta a uma resolução da ONU (aprovada em 30 de dezembro de 2022) que exige uma investigação do Tribunal Internacional de Justiça sobre a legalidade da ocupação israelita, o Partido Sionista-Religioso apelou a medidas para sufocar financeiramente a Cisjordânia. Israel desviou uma parte das receitas dos impostos que cobra por conta da Autoridade Palestiniana, que não controla o seu próprio sistema fiscal.

Esta operação ocorre num momento crítico para a Autoridade Palestiniana, que foi rejeitada pela sua população e está à beira de uma revolta. Normalmente, o Governo israelita reduz a pressão sobre a Autoridade Palestiniana quando teme um colapso social; desta vez, pelo contrário, aperta um pouco mais o parafuso.

 

O HAMAS E A ESCALADA JIHADISTA

Desde o fracasso do processo de reconciliação entre o Hamas e a Fatah, a Palestina não tem uma representação unificada. A Autoridade Palestiniana, presidida por Mahmoud Abbas, continua a ser, em teoria, o órgão político responsável pela administração dos territórios, mas sofre de uma cruel falta de legitimidade. E por uma boa razão: não houve nenhuma eleição, nem para a Presidência, desde 2009, nem para a sua Assembleia, desde 2006.

O Hamas enfrenta a concorrência de grupos jihadistas mais radicais que desaprovaram as suas tentativas de se institucionalizar no início dos anos 2000.

 

Ao contrário do Hamas, a Autoridade Palestiniana (criada pelos acordos de Oslo I e II em 1993 e 1995) é amplamente reconhecida pelos organismos internacionais. Desde 2013, tem assento na ONU como observador não membro. Apoia-se nos esforços diplomáticos e nos recursos do direito internacional. Tem a seu favor numerosas resoluções da ONU, aprovadas por uma esmagadora maioria dos Estados – bem pouco respeitadas por parte de Israel.

O Hamas martela na impotência da ONU como justificação para o seu modus operandi. No entanto, o próprio Hamas enfrenta a concorrência de grupos jihadistas mais radicais. As suas tentativas de institucionalização no início dos anos 2000 foram desaprovadas pelos vários grupos islamistas de Gaza [6]. A partir de 2007, esta contestação degenerou em confrontos armados. Apesar da repressão exercida sobre estes grupos, o Hamas não conseguiu impedi-los de levar a cabo as suas próprias ações contra Israel.

Contrariamente à imagem que os meios de comunicação ocidentais dão do Hamas como mais um movimento terrorista, este encontra-se no centro de múltiplos conflitos com grupos islamistas heterogéneos. Alguns criticam a sua tímida defesa da causa palestiniana, enquanto outros atacam o seu discurso nacionalista e o seu carácter insuficientemente islamista. Em maio de 2015, o grupo Estado Islâmico em Jerusalém reivindicou a responsabilidade pela destruição da sede do Hamas em Gaza [7].

Entre os vários grupos terroristas que atuam na Faixa de Gaza, há um que se destaca: a Jihad Islâmica. O seu discurso radical ressoa entre os jovens de Gaza, desiludidos com o fracasso das sucessivas negociações. Quando foi fundada, em 1981, o seu objetivo era ultrapassar as divisões intra palestinianas, criando uma síntese entre a OLP, que considerava demasiado laica, e a Irmandade Muçulmana, que não tinha o compromisso nacionalista [8]. Um objetivo próximo daquele que o Hamas pretende – mas, ao contrário deste, a Jihad Islâmica deserta das eleições e recusa, por princípio, qualquer negociação com o Estado de Israel. Apresentando a via armada como a única válida, capitaliza a institucionalização do seu concorrente.

O Hamas continua dividido entre uma ala pragmática e outra radical. A primeira, que não se recusa a dialogar com Israel ou com a Fatah, quer levar a cabo a reunificação institucional da Palestina. Foi assim que o Hamas aceitou o princípio de um governo de coligação com a Fatah, em 2014, que ficou comprometido com o recomeço dos confrontos com Israel. A concorrência da Jihad Islâmica foi um estímulo que levou o Hamas a regressar a uma linha mais radical. Na Cisjordânia, a Jihad Islâmica desempenha um papel semelhante. Na primavera de 2023, a Jihad Islâmica conduziu intensos combates contra Israel, enquanto o Hamas retinha as suas tropas.

Tal como o Likud em Israel, o Hamas continua a ser o dono do jogo em Gaza. Mas, tal como o Likud em relação aos seus aliados de direita, é obrigado a fazer concessões permanentes a movimentos mais radicais – no método, no ódio ao campo oposto e no fundamentalismo religioso.

Este aumento do poder do Hamas, do Likud e dos seus aliados não poderia ser explicado sem ter em conta a dessecularização da política regional e das relações internacionais. A década de 1980 foi um período de confessionalização dos movimentos nacionalistas no mundo árabe-muçulmano, como mostra a aproximação da República Islâmica do Irão e do Hezbollah libanês ao Hamas, visto como um aliado natural. Na viragem para a década de 2000, o Partido Republicano nos Estados Unidos fez do “choque de civilizações” um prisma de análise geopolítica, permitindo que Israel fosse visto como um enclave judaico-cristão numa região islâmica hostil. Era um paradigma destinado a ter um sucesso duradouro entre algumas das elites europeias.

 

_____________

Notas:

1 Veja-se Charles Enderlin (2009), Le grand aveuglement: Israël et l’irrésistible ascension de l’islam radical, Paris, Albin Michel. O autor cita os relatórios alarmistas dos serviços secretos israelitas e denuncia o facto destes serem ignorados pelas autoridades.

2 Jean-Pierre Filiu (2014), «Gaza: la victoire en trompe l’œil du Hamas», Le Débat, 5, 182.

3 Ibid.

4 Denis Charbit (2023), «La gauche israélienne est-elle morte?», La vie des idées (https://laviedesidees.fr/La-gauche-israelienne-est-elle-morte.html).

5 Samy Cohen (2013), «La «dégauchisation» d’Israël? Les paradoxes d’une société en conflit», Politique étrangère, 1.

6 Leïla Seurat (2016), «Le Hamas et les djihadistes à Gaza: contrôle impossible, trêve improbable», Politique étrangère, 3.

7 Ibid.

8 Khaled Hroub (2009), «Aux racines du Hamas, les Frères musulmans», Outre-Terre, 2, 22

 

Leave a Reply