Teoria e Política Económica: os grandes confrontos de ontem, hoje e amanhã, também – uma homenagem ao Joaquim Feio — Capítulo 1 — Parte A: Texto 16 – “O principal problema em economia política” (2/2),  por Mathieu-Joffre Lainé

Reflexos de uma trajetória intelectual conjunta ao longo de décadas – uma homenagem ao Joaquim Feio

 

Capítulo 1 – Dos Clássicos a Sraffa, de Sraffa aos neo-ricardianos

Nota de editor:

Devido à extensão do presente texto, o mesmo é publicado em duas partes, hoje a segunda.

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

22 min de leitura

Parte A: Texto 16 – O principal problema em economia política (2/2)

 Por Mathieu-Joffre Lainé

Extrato da tese de Doutoramento em filosofia “David Ricardo, Karl Marx e o antagonismo necessário dos interesses de classe” (Introdução, ponto 1.)

Publicado por  (original aqui)

 

(conclusão)

 

Digníssimo, coroado de prestígio e bem na corte, Hegel tinha sabido convencer os seus contemporâneos de que a história da filosofia terminou com ele e com a sua ciência especulativa [111]. Immanuel Kant (1724-1804) tinha feito o mesmo antes dele [112]. Diferentemente de Kant, no entanto, o próprio Hegel foi quase esquecido em meados do século XIX: “ele parecia ter vivido no povo dos pensadores apenas para ser sobrecarregado com provocações” [113]. Em contrapartida, o seu nome era objeto de uma espécie de culto onomástico e era usado como arma retórica em todos os debates públicos da época. Estes debates não eram, obviamente, sobre a filosofia hegeliana, na qual já ninguém estava interessado. Os autores alemães acusavam-se mutuamente de hegelianismo, na verdade sem conhecer ou dominar a filosofia hegeliana. Os próprios Marx e Engels frequentemente acusavam os seus rivais de serem hegelianos ou epígonos de Hegel, além de descreverem a filosofia hegeliana como o índice do conservadorismo político alemão [114]. Como já dissemos, Marx escreveu muito pouco sobre o próprio Hegel ou sobre a sua filosofia. No entanto, ele escreveu muito sobre os velhos – e os jovens-hegelianos, a quem ele ataca indiscriminadamente e mordazmente nos seus primeiros escritos [115]. Talvez isso explique por que intuitivamente se tem hoje a impressão de que Hegel ocupava um lugar importante na vida intelectual do jovem Marx. No entanto, ele poderia, no entanto, ser mais legitimamente considerado um hegeliano em meados da década de 1840, assumindo, é claro, que ele já o tinha sido [116]. Em todo o caso, Duhring, autor de um virulento panfleto Anti-hegeliano publicado em 1865, sabia, tal como Roscher, que Marx era na realidade um economista ricardiano e di-lo-á abertamente no seu relato crítico da segunda edição do Capital, publicado alguns anos mais tarde [117]. A acusação de hegelianismo que ele inicialmente apresentou contra Marx em 1867 será, no entanto, muito rapidamente retransmitida pelo historiador Heinrich von Sybel (1817-1895), um colaborador próximo do historiador positivista Leopold von Ranke (1795-1886) e do jurista conservador Friedrich Carl von Savigny (1779-1861), que tinha sido ele próprio o líder da escola histórica de direito (“Historische Rechtschule”) e com quem Hegel discutira violentamente sobre a normalização da jurisprudência alemã (“Kodifikationsstreit”) [118].

Marx também discutiu pública e ruidosamente com os membros da escola histórica de direito, no final de seus estudos universitários [119]. Na altura da publicação do Capital, confrontou-se com os membros da escola histórica de economia política, que depois se alinharam com Dühring e Sybel. Imbuídos de positivismo, desconfiados face à Inglaterra e fundamentalmente opostos à teorização económica, os membros da escola histórica de economia política centram o calor da sua crítica na teoria do valor-trabalho, que para eles é uma teoria metafísica, isto é, uma teoria a priori, abstrata, deduzida pela geometria e desprovida de fundamentos históricos empiricamente verificáveis [120]. Opõem a teoria do valor-utilidade à teoria do valor-trabalho; o positivismo malthusiano ao racionalismo ricardiano [121]. À semelhança de Ranke e do economista cameralista Friedrich List (1789-1846), de quem se inspira diretamente Duhring, Roscher e os seus colegas historicistas, Bruno Hildebrand (1812-1878) e Karl Knies (1821-1898), não se opõem apenas à teoria económica ricardiana, mas também são profundamente nacionalistas e estatistas, opõem-se também vigorosamente ao livre comércio que os economistas liberais ingleses então defendiam [122]. Aos olhos dos economistas alemães, o método dedutivo da escola inglesa de economia política clássica tem importantes semelhanças epistemológicas, teóricas e metodológicas com a metafísica de Hegel ou o racionalismo. Verdadeiras ou alegadas, profundas ou superficiais, estas semelhanças servem-lhes, antes de mais, como pretexto para desqualificar os seus adversários. Dito isto, os membros da primeira (ou antiga) escola histórica de economia política alemã rejeitaram inicialmente o uso do método dedutivo da escola inglesa e a quantificação dos conceitos incluídos na doutrina ricardiana por razões políticas e não por razões científicas. Ricardo e os seus discípulos, socialistas ou não, e os defensores da livre-troca (free-traders) da Escola de Manchester, são para eles “hipócritas que mascaram por trás de um discurso supostamente científico uma defesa desavergonhada dos interesses da Grã-Bretanha” [123]. Este será o tema de uma longa disputa entre Marx e eles, uma vez que Marx se pôs abertamente do lado de Ricardo e dos defensores manchesterianos da livre-troca: “o sistema de protecionismo é conservador, enquanto o sistema de comércio livre é destrutivo” – Marx explicará em vão – “dissolve as velhas nacionalidades e leva ao extremo o antagonismo entre a burguesia e o proletariado. Numa palavra, o sistema de liberdade de comércio acelera a revolução social. É apenas neste sentido revolucionário, senhores, que voto a favor do livre comércio”. [124].

Com ou sem razão, Marx (re)apresenta-se como cientista. Deste modo, mostrar-se-á particularmente sensível à acusação que lhe foi originalmente feita pelo jovem Eugen Duhring, que na altura exercia uma influência extremamente importante junto da elite revolucionária alemã (razão pela qual Engels publicará um panfleto virulento intitulado Herrn Eugen Dührings Umwälzung der Wissenschaft (1877) [125] alguns anos mais tarde). Forçado à defensiva por Duhring, Marx irá primeiro expor e justificar numa breve nota de pé de página (inédita) do Livro II do Capital a relação livre e crítica que mantém com Hegel, uma nota que recorda sobretudo hoje a ascendência que Feuerbach exercia sobre ele [126]. Depois de ter deliberadamente designado Hegel como seu mestre de referência nesta nota, Marx paradoxalmente dedicará o posfácio da segunda edição alemã do Capital (1873) a defender-se por ter recorrido à filosofia hegeliana. Ele então invoca duas testemunhas de defesa na sua argumentação, Nikolai Ivanovich Zieber (1844-1888), especialista em teoria económica ricardiana, e Ilarion Ignatevich Kaufman (1848-1916), um teórico monetarista. Estes dois economistas russos não entendem absolutamente nada de Hegel, mas, segundo o próprio Marx, foram fielmente capazes de explicar O Capital e o método que empregou, ou seja, o método dedutivo da escola inglesa de economia política clássica, um método que os economistas alemães rejeitaram categoricamente. Infelizmente hoje esquecidos, Kaufman e Zieber são os únicos comentadores sobre o Capital que receberam a aprovação do próprio Marx, tanto em privado como em público [127]. Marx, em particular, tinha Zieber em alta estima e com ele faria amizade (ele, no entanto, expressaria reservas em privado sobre os trabalhos subsequentes de Kaufman).

Marx não apenas apagará os hegelianismos do Capital um a um, ao ritmo das sucessivas reedições da obra, mas também apagará as passagens equivocadas do posfácio da segunda edição alemã da obra que costumamos citar hoje para considerá-lo um hegeliano [128]. (Estas famosas passagens foram reinseridas em O Capital por editoras do século XX). Escritas antes do Livro I e dos debates que opuseram  Marx a Lange, a Duhring e seus consortes, os livros II, III e IV do Capital mostram-nos um Marx abertamente ricardiano, que ainda não decidiu imitar a forma como Hegel tinha de se expressar.

Hegel possui “o estranho dom mágico de virar a cabeça aos mais sensatos”[129] e a sua filosofia fascina frequentemente os comentadores de Marx, que também lhe dedicaram obras notáveis. Marx, no entanto, não partilha do seu fascínio por Hegel. A imagem que nos mostra Marx a derrubar Hegel, a explorar pacientemente as dificuldades colocadas pela sua filosofia para completar o Capital, é uma imagem de referência que nos mantém prisioneiros, tal como a imagem que no-lo mostra a fazer malabarismos com as categorias ontológicas-teológicas da filosofia hegeliana. A filosofia de Hegel era, por assim dizer, a última das suas preocupações, como mostra o trabalho de historiadores que traçaram meticulosamente, dia após dia, toda a sua vida, os livros que leu e estudou, as coisas que escreveu e as que disse, as pessoas que conheceu e os lugares que visitou e as razões pelas quais lá tinha ido e o que lá fez [130].

A vida que Marx historicamente levou pouco tem a ver com a que levam habitualmente os universitários que estudam os seus textos ou os de Hegel. As suas preocupações e ambições não eram as nossas e convém ter isso presente. É claro que é agradável e instrutivo dar uma olhada filosófica na obra de Marx, mas devemos primeiro “observar que, aos olhos do próprio Marx, a parte essencial da sua obra (mais de dez mil páginas) pertencia à teoria económica” [131]. De acordo com as estimativas do filósofo americano R. P. Wolff (1933-), Marx é de facto o autor do corpus económico mais imponente da história mundial [132]. Raymond Aron (1905-1983) era da mesma opinião. Marx leu “tudo o que podia ser lido; e não só ele escreveu o Capital, mas ele também escreveu […] um estudo das teorias da mais-valia e do lucro de todos os economistas do seu tempo“ [133]. É “o economista do século XIX que mais leu as obras de outros economistas” – acrescenta Aron – “Marx leu tudo, compreendeu tudo e criticou tudo”[134]. A ideia de que Marx não se considerava igual ou superior aos economistas profissionais é – diz-nos Aron – uma ideia “propriamente delirante, e a ideia de que Marx não se considerava economista é uma ideia que não pode ser defendida em nenhum grau”[135]. É a tensão que existe em Marx entre a atividade científica e a atividade política (ou obreirista) que está na origem das dificuldades colocadas pelo seu trabalho e não a tensão que supostamente existe entre a sua atividade filosófica e a sua atividade científica [136]. Não existem nele dois corpos de trabalho comparáveis de dimensão, interesse ou de importância semelhante, ou seja, um corpus filosófico e um corpus económico. Marcado pela atualidade do seu tempo, a obra de Marx tem mais de 900 títulos, a formidável soma de quarenta anos de vida intelectual dedicada não ao estudo desinteressado da filosofia de Hegel, mais ao militantismo e ao estudo da economia política [137]. Filósofo ou não, Marx nunca levou a vida de um académico.

A única profissão que exerceu foi a profissão de jornalista. De facto, foi um dos jornalistas mais conhecidos e mais bem pagos do seu tempo, e as suas opiniões sobre assuntos monetários e financeiros europeus têm sido desde há muito autoridade no mundo anglo-saxónico” [138]. Desdenhosamente afastados do corpus marxista, os escritos jornalísticos de Marx ocupam volumes inteiros e, por si só, reduzem a nada a sua escassa produção filosófica juvenil. A leitura desses artigos, no entanto, mostra como Marx realmente se familiarizou com o funcionamento da política e a partir de 1842, com os da escravatura e do imperialismo, dos governos e da administração pública, etc.; isso mostra que ele primeiro estudou e compreendeu como jornalista as questões que aborda no Capital, e não a folhear as obras de Hegel quando era adolescente. Não é apenas o caso das questões económicas, mas também o caso das questões sociais e históricas, como a expropriação de camponeses irlandeses e anglo-escoceses, que mais tarde descreverá em termos pseudo – ou quase-hegelianos no capítulo XXVII do Livro I do Capital, no qual apresenta essa expropriação como uma negação que deve ser ela mesma negada [139].

Os debates intelectuais e políticos em que Marx participou historicamente nunca tiveram como base da discussão a filosofia hegeliana, embora o nome de Hegel, que então tinha uma espécie de valor totémico, tenha sido retoricamente invocado, reivindicado ou repudiado. Aqueles que passam do estudo dos textos de Marx para o estudo dos textos de Hegel sem levar em conta a história, infelizmente, muitas vezes enganam-se sobre o significado dos textos de Marx. Marx parece não apenas fornecer-lhes uma interpretação consistentemente correta da filosofia de Hegel, mas também fornecer-lhes uma espécie de padrão de medição: a interpretação dos textos de Hegel é correta se corresponder ao que Marx diz sobre eles. No entanto, seguindo a trajetória oposta, passando do estudo dos textos de Hegel para o estudo dos textos de Marx, parece-nos acima de tudo encontrar na obra de Marx “críticas banais e planas a fazer corar de vergonha face à lógica hegeliana “[140]. O jovem Marx vangloriava-se de dominar a filosofia de Hegel desde os dezoito anos de idade, algo que os seus hagiógrafos nunca deixam de nos lembrar, sem, no entanto, nos fornecer qualquer prova disso. A crítica mal-intencionada e tendenciosa de Marx à filosofia hegeliana do direito está, além disso, repleta de erros e contradições [141]. E por uma boa razão: aos vinte e cinco anos, Marx julgou Hegel com muita dureza e procurou primeiro neste texto circunstancial “convencer-se a si mesmo e aos seus amigos da falsidade da doutrina hegeliana” [142]. A hostilidade que ele então demonstrará contra Hegel na Miséria da filosofia apenas “põe fim à hostilidade manifestada contra a filosofia hegeliana das suas obras de juventude” [143]. Marx escreve sobre tudo, mas quando evoca a dialética aqui e ali, o que raramente faz, ao contrário dos seus comentadores, fá-lo “em termos tão gerais, ou mesmo insípidos, que é difícil ver quais as implicações para análises específicas” [144]. Marx possuía um notável domínio da teoria económica ricardiana – é sem dúvida o mais importante continuador de Ricardo [145]. No entanto, o seu verdadeiro domínio da filosofia hegeliana é menos certo. É claro que o Marx da maturidade se descreveu como uma espécie de hegeliano relutante, usando fórmulas feuerbachianas emprestadas dos vários relatos laudatórios do Capital que Engels havia publicado estrategicamente na imprensa para impulsionar as vendas do livro. Mas, tanto quanto é razoavelmente possível julgar, as poucas referências cursivas a Hegel que encontramos no Capital são mesquinhas, superficiais, desajeitadas ou erradas. Pior ainda, por vezes enganam o próprio Marx [146]. Com efeito, a única discussão das ideias de Hegel que se pode encontrar no Capital é relegada a uma nota de pé de página indistinta que visa os parágrafos 44, 46 e 55 dos Princípios da filosofia do direito, e na qual Marx zomba de Hegel [147] pela enésima vez.

Hegel e Marx não tentaram absolutamente resolver as mesmas questões políticas ou científicas, e as breves alusões à filosofia de Hegel que “encontramos espalhadas pelas suas obras não podem, em nenhum sentido, ser consideradas uma verdadeira profissão de fé” [148]. Encorajados pela leitura das obras de Friedrich Engels, Georgi Plekhanov (1856-1918) e V. I. Lenine (1870-1924) levarão, no entanto, o século XX a fazer de Marx, postumamente, o “mais importante continuador de Hegel” [149]. Não nos deteremos aqui nos pormenores desta história, que os historiadores da filosofia já documentaram extensivamente e que não se referem de forma alguma a Marx, mas sim aos caminhos históricos do marxismo como ideologia política nascida no final do século XIX e que teve precisamente os seus efeitos no século XX [150]. Basta dizer aqui que a lembrança dos caminhos políticos extremamente tortuosos que o hegelianismo tomou para entrar nas faculdades de Filosofia durante o período de entre as Grandes Guerras deveria normalmente ter “convidado o pensamento filosófico a alguma modéstia” [151]. A sua complexidade prodigiosa também. Como admite Theodor Adorno (1903-1969), a Ciência da lógica, por exemplo, é profundamente indecifrável:

As resistências encontradas na compreensão das grandes obras de Hegel e, em particular, a Ciência da lógica distinguem-se qualitativamente daquelas que podem ser oferecidas por outros textos conhecidos pela sua dificuldade. Não se trata simplesmente de assegurar, através do exame rigoroso do conteúdo literal e da obra do pensamento, um significado que possa ser compreendido de forma inconfundível. Pelo contrário, o significado em si é muitas vezes incerto e até agora nenhuma ciência hermenêutica conseguiu estabelecê-lo indiscutivelmente […] Hegel é, sem dúvida, o único, entre os grandes filósofos, de quem por vezes não sabemos com exatidão, de quem não podemos decidir do que está a falar, o único em quem a própria possibilidade de uma tal decisão não é garantida [152].

Inesperadamente tornando-se no século XX a obra fundamental a partir da qual indagamos sobre teses hegelianas, ganhando uma reputação que não gozava na época de Marx, a Fenomenologia do espírito resiste obstinadamente a qualquer tentativa de interpretação ou elucidação desde a época de sua publicação:

Os ensaios hermenêuticos a ela dedicados são o desastre da Fenomenologia. Olhando para todos os trabalhos teóricos que tentaram dominar este texto, os de Rosenkranz, Haym, Hoffmeister, Haering, Hartmann, Luk, Bloch, Heidegger, Kojève, Hyppolite, Pússggeler, – uma lista muito provisória – pode-se ter a sensação de que eles não se relacionam com um único e mesmo livro, mas com uma infinidade de obras diferentes […] qualquer tentativa de interpretar a Fenomenologia falha logo como um navio sobre os recifes. Só pode haver um entendimento parcial, e só pode ser rapidamente arruinado por passagens às quais não se pode aceder por vias racionais [153].

Foram utilizados tesouros de erudição para resolver a questão da relação de Marx com Hegel, mas a interpretação hegeliana do Capital quase sempre reduz a filosofia de Hegel a um punhado de fórmulas que podem dar para tudo, que não levam em conta o que o próprio Hegel esperava realizar historicamente ou a prodigiosa complexidade das suas obras ou a sistematicidade do seu pensamento. A ligeireza com que muitas vezes nos dizem que Marx inverteu ou transformou a filosofia de Hegel deveria levar-nos a ser cautelosos. Como os intérpretes da Ciência da Lógica, os intérpretes da Fenomenologia do Espírito propuseram muitas vezes interpretações fascinantes da filosofia de Hegel e, obviamente, não contestamos o seu interesse nem a sua fecundidade.

No entanto, é fácil compreender a impaciência daqueles que afirmam que a filosofia de Hegel desafia “qualquer hermenêutica respeitosa de uma lógica elementar” [154]. As correntes interpretativas, portanto, chocam-se e sucedem-se, mas é difícil saber se compreendemos melhor a filosofia de Hegel hoje do que Rosenkranz, Haym, Hoffmeister, Haering, Hartmann, Luk, Bloch, Heidegger, Kojève, Hyppolite ou Pöggeler, por exemplo, a entenderam por sua vez. Por outras palavras, desde o período entre guerras foi-nos assegurado com calma que a compreensão do Capital requer a compreensão prévia da obra de Hegel, embora “ainda não tenha sido encontrado um consenso, mesmo elementar, sobre o significado da sua obra” [155]. Na ausência de tal consenso, os intérpretes hegelianos do Capital produzem, de certa forma, interpretações tautológicas do Capital, que são inevitavelmente confirmadas pela sua compreensão pessoal da filosofia hegeliana. Eles andam assim à roda desde há um século: “para compreender Marx, é preciso conhecer Hegel e para compreender Hegel é preciso conhecer Marx” [156]. Infelizmente, na sua maior parte, recusam-se dogmaticamente a filtrar a sua pré-compreensão da relação de Marx com Hegel através da crítica histórica [157].

Existem inúmeras versões da interpretação hegeliana do Capital. Frutíferas ou estéreis, são, no entanto, todas elas baseadas historicamente na mesma premissa, uma premissa que afirma que devemos compreender Hegel para compreender Marx. É o valor exegético desta premissa fundadora que estamos a contestar aqui, e não uma ou outra das correntes interpretativas particulares que dela resultam. Incansavelmente reformulada e reinventada, a interpretação hegeliana do Capital é uma interpretação com elevado desempenho académico, mas com baixo valor científico. Contrariamente ao que os seus apoiantes têm defendido desde o período entre guerras, não é útil nem necessário compreender Hegel para compreender o Capital: por um lado, o próprio Marx nunca exigiu este tributo implausível da sua primeira audiência; por outro lado, a única interpretação do Capital que ele próprio formalmente endossou (tanto em público como em privado) é a de N. I. Zieber, um economista ricardiano que não sabia absolutamente nada sobre a filosofia hegeliana.

Cacofónica e caótica, a “bibliografia secundária relativa a Hegel é de uma dimensão desanimadora” [158]. Tem vários milhares de títulos e tornou-se impossível dominá-la. O estudo dos textos de David Ricardo é relativamente pouco encorajado e pouco recompensado. Ricardo pesa de facto “fortemente pela  sua ausência do cenário intelectual” [159]. Vindo em grande parte de países sem tradições ricardianas ou tradicionalmente hostis à teoria económica ricardiana, como a França ou a Alemanha, por exemplo, e bastante desinteressados pela própria economia, os comentadores mais autorizados sobre a obra de Marx tomam deste último o interesse que eles próprios sentem pela filosofia hegeliana. É difícil encontrar um único livro dedicado às relações de Marx com Ricardo, enquanto encontramos “estantes inteiras de bibliotecas dedicadas às relações de Marx com Hegel: continuidade, rutura epistemológica ou ultrapassagem dialética, todas as figuras da filiação teórica foram exploradas” [160]. Os protagonistas deste interminável debate embarcaram um após o outro num caminho sem saída e não temos intenção de os seguir nesse caminho.

Encontramos ideias desconcertantes em todos os meios intelectuais e científicos, ou seja, ideias verdadeiras ou não, com as quais “somos forçados a contar porque as pessoas que importam gostariam que fossem verdadeiras” [161]. Nos círculos em que a filosofia e a economia se reencontram, somos forçados a considerar a ideia de que Hegel teria desempenhado um papel decisivo na trajetória intelectual de Marx. Esta ideia serve não só como ponto de partida para a interpretação do Capital, mas serve para distinguir os escritos do jovem Marx dos escritos do Marx da maturidade. Por outras palavras, esta ideia dá a Hegel a priori uma importância que historicamente nunca teve para Marx — faz dele o pivô de todo o seu pensamento —, além de fazer esquecer os debates em que este último realmente participou; esta ideia faz-nos esquecer a audiência a que se dirigia e o efeito que esperava ter sobre ela. Mesmo que assumíssemos, sem o admitirmos, que os intérpretes hegelianos do Capital realmente dominavam a filosofia de Hegel, o que é difícil, se não mesmo impossível, de determinar, a questão do que é hegeliano ou não em Marx não nos permite compreender historicamente o que Marx esperava realizar. Como escreve Schumpeter, a história mostra que “a análise económica não foi moldada em momento algum pelas opiniões filosóficas que os economistas tinham, embora as suas atitudes políticas muitas vezes a tenham estragado” [162]. Encontramos representantes (famosos ou esquecidos) de todas as correntes filosóficas de cada lado dos debates que marcam a história do pensamento económico, além de encontrarmos economistas de cada lado dos debates que marcam a história do pensamento filosófico. Obviamente, todos os economistas incorporam noções filosóficas ao nível da sua compreensão pré-analítica da economia — o caso de Marx não é nada particular a este respeito -, mas as suas próprias análises económicas permanecem independentes do seu posicionamento filosófico sobre os “pontos fundamentais, relativos às verdades últimas (realidades, causas)” [163]“. Como, por exemplo, o filósofo Benedetto Croce (1866-1952) observou na viragem para o século XX, a dialética de Hegel tem apenas uma “semelhança puramente externa e aproximada com a conceção histórica dos períodos económicos” [164]. A conceção histórica dos períodos económicos, tal como se encontra nos economistas clássicos ou em Marx, simplesmente não pode ser nem materialista, nem espiritualista, nem dualista, nem monista — continua Croce -, uma vez que não levamos em consideração neste tipo de estudos os elementos das coisas de modo a podermos discutir filosoficamente se estas podem ser reconduzidos umas às outras, e se se unem num único princípio: “temos diante de nós objetos concretos, a terra, a produção natural, os animais; temos diante de nós o homem, no qual os processos psíquicos já se diferenciam dos processos fisiológicos. Falar neste caso de monismo e de materialismo não faz sentido” [165].

Dito isto, os filósofos têm um papel decisivo na história do pensamento económico, e a literatura económica dos séculos passados é salpicada de referências à metafísica e à ética — a autoridade dos filósofos é invariavelmente aí invocada ou contestada. Em suma, não podemos de modo algum negar a existência de uma cultura intelectual comum aos economistas e filósofos [166]. Economia e filosofia estão entrelaçadas [167]. Mas não há relação necessária, inerente, intrínseca ou causal entre a postura metafísica dada que um economista adota e as análises económicas que ele conduz. Nenhuma conclusão económica decorre necessariamente de uma premissa metafísica. O inverso é igualmente verdadeiro. A metafísica não é determinada pela economia. Quer subscrevamos ou não a interpretação de Schumpeter da relação entre filosofia e análise económica, concordaremos indubitavelmente que a economia e a filosofia estudam o mesmo fenómeno — o homem. No entanto, elas tomam-no por dois lados opostos, de modo que “cada uma tem mais relações com as outras dimensões desse fenómeno — sociologia, psicologia, história, antropologia, etc. – do que com o outro lado” [168].

Pacientemente identificadas e compiladas por Wilhelm Roscher, que as incorporou intencionalmente na sua defesa política do protecionismo económico contra os defensores ingleses da livre-troca da Escola de Manchester, as opiniões desfavoráveis que G. W. Leibniz (1646-1716) expressou sobre o comércio exterior, por exemplo, não têm “absolutamente nada a ver com a sua visão fundamental do mundo físico e do mundo moral, e ele poderia facilmente ter sido tomado como um defensor da livre-troca se nos mantivéssemos nessa visão” [169]. Também não existe uma relação necessária entre o idealismo transcendental de J. G. Fichte (1762-1814) e as profundas reformas económicas que este último defendeu na viragem do século XIX (estatismo, dirigismo, protecionismo, etc.) [170]. Não é inútil nem necessário multiplicar aqui tediosamente os exemplos: “a filosofia, em todos os sentidos técnicos da palavra, é por natureza incapaz de influenciar a análise económica e não a influenciou efetivamente” [171]. Embora generalizada, evocativa e sedutora, a opinião contrária é lógica e historicamente errónea. De facto, segundo Schumpeter, é uma das “fontes mais importantes de pseudo-explicações” [172] que foram dadas da história do pensamento económico e, em particular, das pseudo-explicações que foram dadas do pensamento de Marx. A fim de compreender as complexas relações que realmente existem entre filosofia e economia, devemos prestar atenção cuidadosa e deliberadamente aos processos argumentativos e retóricos utilizados pelos autores do passado e ao uso intencional de teses filosóficas como argumentos nos debates científicos e políticos sobre economia.

A “questão da existência ou não de classes é uma questão da luta de classes” [173]. Marx sabia-o, como sabia que os interesses dessas classes eram necessariamente opostos. Assim, ele postula abertamente, em princípio, este antagonismo em O Capital, enquanto a sua primeira audiência afirmava, pelo contrário, como a de Ricardo, que os homens, em virtude de uma “harmonia pré-estabelecida das coisas, ou sob os auspícios de uma providência muito engenhosa, trabalhando cada um por si, cada um em casa, trabalhavam ao mesmo tempo para a utilidade geral, para o interesse comum” [174]. Na Inglaterra, os economistas liberais John Ramsay McCulloch (1789-1864) e John Stuart Mill (1806-1873), entre outros, tinham de facto integrado politicamente a filosofia utilitária nas suas análises económicas, a fim de negar o necessário antagonismo dos interesses de classe; na Alemanha, os membros conservadores da escola histórica de economia política, por sua vez, tinham integrado o espírito nacional hegeliano (“Volksgeist”) e a harmonia Leibniziana  das coisas (“Prästabilierte Harmonie”) nas suas análises económicas para o negar ou para defender a indústria a indústria alemã contra a insuportável concorrência industrial inglesa.

A filosofia pode contribuir de forma útil para a economia, pode questioná-la, criticá-la, defendê-la, expandi-la ou criticá-la [175]. Mas, é preciso insistir, não existe uma relação necessária entre filosofia e economia. No entanto, existe de facto uma relação necessária entre economia e política, uma vez que a política é o “campo de batalha em que competimos pela partilha do bolo económico nacional” [176]. O próprio Marx compreendeu muito rapidamente que a sua cultura filosófica não lhe permitia lidar com os fenómenos económicos da sua época. De facto, o método que emprega no Capital não tem nenhuma relação necessária ou verificável com o método que Hegel empregou nos seus próprios trabalhos [177]. Marx não mantém uma relação privilegiada ou especial com o filósofo de Iena, cuja autoridade ele retoricamente invoca e contesta aqui e ali nas suas obras [178]. Tal como os outros intelectuais da sua geração, ele encontrou, naturalmente, uma parte da sua inspiração nela – quem o nega? -, mas o materialismo dialético que lhe toma de empréstimo e que foi reformulado desde o final do século XIX não é um instrumento positivo [179]. Esta doutrina metafísica convencionada, com a sua procissão de conceitos tradicionais mal disfarçados – Essência, Ser, Ideia, Espírito, etc.—, não tem aplicação analítica. Como Michel Foucault (1926-1984) compreendeu, o materialismo dialético não é um método, mas um problema:

Alguém já viu um cientista utilizar o materialismo dialético? […] É evidente que o materialismo dialético constitui uma referência importante. Qual é o seu estatuto para que, até certo ponto, sejamos forçados a passá-lo, pelo menos no discurso, nos seus sinais, no seu ritual? É um problema. O materialismo dialético é um significante universal cujos usos políticos e polémicos são importantes; é uma marca, mas não creio que seja um instrumento positivo [180] .

Também não acreditamos nisso. Em todo o caso, a alegada necessidade de compreender “Marx na sua relação com Hegel” [181] não encontra confirmação no Capital. Além disso, os intérpretes hegelianos do Capital geralmente não podem “esconder o seu embaraço quando se trata de estabelecer com muita precisão o que é a teoria do valor de Marx e em que difere fundamentalmente da de Ricardo” [182]. Na prática, as suas considerações filosóficas e terminologias revestem-se de um discurso que poderia muito bem passar sem ele, não integrado nele e, portanto, não essencial.

O materialismo, dialético ou não, não permite dar conta da forma ou do conteúdo do Capital, não permite compreender o que Marx está a fazer com ele [183]. Muitas vezes serve como falso fugitivo, se não como encobrimento da miséria, para os intérpretes hegelianos do Capital [184] . Marx tem um profundo conhecimento da economia política do seu tempo e quando “analisa o valor, a troca, a exploração, a mais-valia, o lucro, quer ser um economista puro, e não teria a ideia de justificar esta ou aquela proposição cientificamente imprecisa ou questionável invocando uma intenção filosófica” [185]. Consciente de todas essas dificuldades, o famoso hegelianista Bernard Bourgeois (1929-) reconheceu que era “perfeitamente inútil querer discernir, neste ou naquele caminho marxista, por exemplo, o esquema: ser-essência-conceito, ou o esquema: universal-particular-singular, etc.” [186]. É igualmente inútil, poderíamos ser tentados a acrescentar, querer discernir a luta hegeliana pelo reconhecimento na conceção marxista das classes sociais.

A literatura dedicada a Hegel – diz-nos Bourgeois – está cheia de “discursos demasiado frequentemente sectários e confusos” [187]. O discurso que teleologicamente faz de Hegel o precursor de Marx é, em nossa opinião, o mais sectário e o mais confuso deles. Diz-se que haveria uma “infinidade de possíveis problemas falsos e apenas alguns verdadeiros problemas” [188] na filosofia. A questão da relação de Marx com Hegel faz parte dessa infinidade de falsos problemas, falsos problemas socialmente constituídos como verdadeiros pela tradição filosófica e, portanto, muito difíceis de solucionar [189].

Invertida ou não, de cabeça para baixo ou de cabeça para o lado, a filosofia hegeliana, por si só, não fornece “meios para analisar e interpretar diretamente os fenómenos económicos” [190]. No entanto, existe um método cómodo para “mostrar um Marx hegeliano, que é apresentar um Hegel marxista” [191]. E este é precisamente o método que os intérpretes hegelianos do Capital têm utilizado desde o final do século XIX.

Para tornar minimamente plausível a relação entre Marx e Hegel, “redescobrimos” um Hegel desconhecido para Marx, um jovem Hegel, discípulo de Adam Smith e precursor de Ricardo” [192]. De acordo com Karl Löwith (1897-1973), este jovem Hegel também teria tratado a economia política com uma “seriedade filosófica igualada apenas por Marx” [193]. Segundo Georgy Lukács (1885-1971), seria também “a análise da economia política, da situação económica da Inglaterra, que [o teria] guiado a encontrar o seu caminho para a dialética” [194]. Tanto quanto é historicamente possível julgar, o jovem Hegel leu apenas um punhado de tratados económicos escritos durante o século XVIII, mas as suas reflexões juvenis anunciariam, no entanto, as “críticas que Marx dirige às Robinsonadas da economia política” [195].

Por mais divididos e opostos que possam estar entre si, esses comentadores afirmam em uníssono que Hegel teria visto as contradições internas do capitalismo sem ser capaz de encontrar a solução, que teria sido teleologicamente reservada para Marx expor. Ora, é “óbvio – ou pelo menos deveria sê-lo – que nunca ninguém se considerou um “precursor” de outra pessoa; e não podia fazê-lo. Portanto, considerá-lo como tal é a melhor forma de não o poder compreender” [196].

Mas, em meados do século XX, era dito sem pestanejar que “qualquer interpretação de Hegel, se for mais do que uma tagarelice, é então um programa de luta e de trabalho (um desses “programas” chama-se marxismo). E isto significa que o trabalho de um intérprete de Hegel tem o significado de uma obra de propaganda” [197]. Infelizmente, esta propaganda funcionou magnificamente sobre o pensamento filosófico. Marx já não se distinguia muito claramente de Hegel naquele momento [198]. Assim, de acordo com Jean Hippolyte (1907-1968), que trabalhou muito tempo sobre os estudos hegelianos, Hegel teria sido um “marxista antes de Marx ” [199].

Esta leitura teleológica da história das ideias conduz, por si só, à hagiografia. A industrialização foi um “movimento lento e, no seu início, dificilmente detetável. O próprio Adam Smith viveu no meio dos primeiros sinais desta revolução sem se aperceber” [200]. Hegel, por sua vez, teria percebido isso, embora os estados da Confederação Alemã (“Deutscher Bund”) tenham começado a industrializar-se modestamente a partir de 1835, ou seja, alguns anos após a sua morte. Naquele ano, apenas 2% da mão-de-obra alemã trabalhava em fábricas e em pequenas fábricas mecanizadas e, em 1855, vinte anos após a morte de Hegel, essa proporção permaneceu essencialmente inalterada [201]. Por outras palavras, Hegel não sentiu a proletarização da população alemã ou a industrialização dos estados da Confederação Alemã, nem mesmo os seus primeiros choques ou os seus primeiros tremores sociais, económicos ou técnicos [202]. Também não conheceu a abolição oficial da servidão na Alemanha (1848). Presciente, teria, no entanto, conseguido descobrir a “profunda relação do modo de produção capitalista” [203] antes de Smith e antes de Ricardo; também antes dos seus compatriotas. Ele teria então “antecipado de forma notável os temas e intuições que Marx desenvolveria mais tarde” [204]. Hegel “anuncia Marx” [205]. Este último dedicou toda a sua vida ao estudo da economia política, mas basicamente apenas daria um “conteúdo económico ao pensamento hegeliano da racionalidade filosófica” [206]. E é por isso que o conhecimento da filosofia de Hegel, congratulemo-nos, seria necessariamente “exigido pela obra de Marx” [207].

Hegel participou nos fascinantes debates intelectuais e políticos da Alemanha do seu tempo, mas esses debates não se concentraram nas questões que interessavam a Ricardo e a Marx. Não há nenhuma razão especial para colocar este filósofo no centro do universo intelectual de Marx — este lugar pertence a Ricardo [208].

É graças à teoria económica ricardiana, como veremos, que Marx foi finalmente capaz de distinguir entre essência (= mais-valia) e aparência (= renda, lucro, salário) que a economia política tinha sido incapaz de alcançar. É claro que Marx apela retoricamente à oposição metafísica entre essência e aparência, que opera desde a antiguidade, a fim de distinguir a cientificidade da economia ricardiana e a não cientificidade da economia pós-ricardiana, mas ele “não perde o seu tempo a procurar o que, hipotética e caprichosamente, há por trás das coisas, o que as determina ou as rodeia e o que, tradicionalmente, é chamado de essência, ser, ideia ou espírito” [209] .

A teoria do valor não é uma teoria metafísica não verificável, mas uma teoria económica, como nos recorda Schumpeter: “o seu conceito central, em particular o valor absoluto, nada tem a ver com os significados que atribuímos a esta palavra em certas partes da filosofia. O valor absoluto da filosofia nunca é o valor real de Ricardo completamente elaborado e completamente posto em prática” [210]. A ideia de um valor real ou absoluto, determinado pelo tempo de trabalho, subjacente e contrastante com o valor de troca, foi inicialmente apresentada e defendida por Ricardo [211]. Marx completou então essa ideia, “especificando-a e sistematizando-a” [212] à maneira de um estudioso alemão. A relação matemática (objetiva, quantificável, etc.) que existe com ele entre mais-valia e renda, lucro e salário não corresponde à relação (não verificável) que supostamente existe entre essência e aparência com Hegel. Corresponde à relação  económica originalmente identificada por Ricardo. Em suma, encontrar uma teoria filosófica no Capital “é talvez salvar o que, hoje, mais nos interessa, mas é certamente, estar a ignorar a intenção do próprio Marx” [213]. Este último dirigiria certamente aos filósofos do nosso tempo, sejam eles “marxistas” ou não, as mesmas censuras que dirigiu aos filósofos da sua própria época [214].

 


Notas

[111] Pinkard, T., 2002, German Philosophy 1760-1860: The Legacy of Idealism. Cambridge, Cambridge University Press, p. 217.

[112] Cf. Bourgeois, B., 2000, L’Idéalisme allemand. Paris, Vrin, p. 43.

[113] Bloch, E., 1977, Sujet-objet : éclaircissements sur Hegel. Paris, Gallimard, p. 367.

[114] Cf. Engels, F., K. Marx, 1901 [1850-1851], Révolution et contre-révolution en Allemagne. Paris, Schleicher, p. 21 et passim.

[115] Cf. Hook, S., 1994 [1936], From Hegel to Marx: Studies in the Intellectual Development of Karl Marx. New York, Columbia University Press, p. 77.

[116] Cf. Nola, R., 1993, « The Young Hegelians, Feuerbach, and Marx », in Solomon, R. C., K.M. Higgins (dirs.), 2005 [1993], The Age of German Idealism. London, Routledge, p. 322.

[117] Cf. Krauss, G., 2002, « Eugen Dühring in the Perspective of Karl Marx and Friedrich Engels », Journal of Economic Studies, vol. 29(4/5): 351.

[118] Cf. Sybel, H., 1872, Die Lehren des heutigen Socialismus und Communismus. Bonn, Max Cohen & Sohn.

[119] Cf. Marx, K., 1982 [1842], « Le manifeste philosophique de l’École historique du droit », OEuvres, t.III. Paris, Pléaide, p. 221 et seq.

[120] Wajnsztejn, J., J. Guigou, 2004, L’évanescence de la valeur. Paris, L’Harmattan, p. 97.

[121] Cf. Chipman, S. (dir.), 2014, German Utility Theory: Analysis and Translations. New York, Routledge.

[122] List, F., 1998 [1841], Système national d’économie politique. Paris, Gallimard, p. 73.

[123] Daniel, J.-M., 2010, Histoire vivante de la pensée économique. Paris, Pearson, p. 132.

[124] Marx, K., 1963 [1848], « Discours sur le libre-échange », OEuvres, t. I. Paris, Pléiade, p. 156.

[125] Cf. Beiser, F, 2014. After Hegel: German Philosophy, 1840-1900. Princeton, Princeton University Press, p. 172 et seq ; Gay, J.E., 2011, « Eugen Dühring and Post-Utopian Socialism », in Backhaus, J.-G. (dir.), The State as Utopia. New York, Springer, p. 191-204.

[126] Cf. Marx, K., 1968 [1868?], « Le capital, l.II », OEuvres, t.II. Paris, Pléiade, p. 528n.

[127] Cf. Senn, P., 2005, « The German Historical Schools in the History of Economic Thought », Journal of Economic Studies, vol. 32(3) : 185-255.

[128] Cf. Rubel, M., 1963, « Notes et variantes », in Marx, K., 1963 [1867], « Le capital, l.I », OEuvres, t.I. Paris, Pléiade, p. 1633n558(2).

[129] Harris, H.S., 1981, Le développement de Hegel, t. I. Lausanne, L’âge de l’homme, p. 9.

[130] Cf. Draper, H., 1985, The Marx-Engels Chronicle, vol. I: A Dayd-by-Day Chronology of Marx and Engels’s Life and Activity. New York, Schocken Books; Rubel, M., 1968, Marx-Chronik. Daten zu Leben und Werk. Munich, Carl Hanser Verlag.

[131] Deleplace, G., 2009, Histoire de la pensée économique. Paris, Dunod, p. 128-131.

[132] Wolff, R.P., 1983, « The Rehabilitation of Karl Marx », The Journal of Philosophy, vol. 80(11): 713-719.

[133] Aron, R., 2002 [1962-1977], Le marxisme de Marx. Paris, Éditions de Fallois, p. 177-178.

[134] Ibid., p. 441.

[135] Ibid.

[136] Cf. Boudon, R., F. Bourricaud, 2011, Dictionnaire critique de la sociologie. Paris, Presses Universitaires de France, p. 358-360.

[137] Cf. Rubel, M.,1956, Bibliographie des oeuvres de Karl Marx (avec en appendice un répertoire des oeuvres de Friedrich Engels). Paris, Marcel Rivière ; Draper, H., 1985, Marx-Engels Cyclopedia, vol. II : The Marx-Engels Register : A Complete Bibliography of Marx and Engels’ Individual Writings. New York, Schocken Book.

[138] Ledbetter, J., 2007, Dispatches for the New York Tribune (Selected Journalism of Karl Marx). New York, Penguin, p. vii-xxvii ; Krätke, M.R., 2008, « The First World Economic Crisis : Marx as an Economic Journalist », in Musto, M., (dir.), 2008, Karl Marx’s Grundrisse : Foundation of the Critique of Political Economy, 150 years later. London, Routledge, p. 162-168.

[139] Marx, K., 1979 [1853], « The Indian Question – Irish Tenant Right », Marx-Engels Collected Works, vol. XII. London, Lawrence & Wishart, p. 157-162; Marx, K., 1979 [1853], « Elections – Financial Clouds – The Duchess of Sutherland and Slavery », Marx-Engels Collected Works, vol. XI. London, Lawrence & Wishart, p. 486-494; Marx, K., F. Engels, 1978 [1850], « Review: May to october », Marx-Engels Collected Works, vol. X. London, Lawrence & Wishart, p. 490-533.

[140] MacGregor, D., 1985, « Private Property and Revolution in Hegel’s Philosophy of Right », in Drydik, J., F. Cunningham (dis.), 1985, After Hegel. Oxford, Blackwell, p. 182 (tradução do autor).

[141] Bernki, R., 1971, « The Marxian Critique of Hegel’s Political Philosophy », in Pełczyński, Z., (dir.), 2010 [1971], Hegel’s Political Philosophy: Problems & Perspectives. Cambridge, Cambridge University Press, p. 219; Weil, E., 2002 [1950], Hegel et l’État. Cinq conférences, suivies de Marx et la philosophie du droit. Paris, Vrin, p. 111; Ilting, K.-H, 1984, « Hegel’s Concept of the State and Marx’s Early Critique », in Pełczyński, Z., (dir.), 1984, The State and Civil Society. Cambridge, Cambridge University Press, p. 104.

[142] D’Hondt, J., 2011 [1968], Hegel en son temps (Berlin 1818-1831). Paris, Éditions Delga. p. 304.

[143] Gurvitch, G., 1962, La sociologie de Marx. Paris, Centre de Documentation Universitaire, p. 58.

[144] Elster, J., 1989, Karl Marx : une interprétation analytique. Paris, Presses Universitaires de France, p. 62.

[145] Henderson, J.P., J. B. Davis, 1997, The Life and Economics of David Ricardo. New York, Springer, p. 587.

[146] Cf. Vörlander, K., 1911, Kant und Marx: ein Beitrag zur Philosophie des Sozialismus. Tübingen, Mohr, p. 63 et seq.

[147] Cf. Marx, K., 1974 [1865-1866], Le capital, l. III, t. III. Paris, Éditions Sociales, p. 8n.

[148] Papaioannou, K., 1983, De Marx et du marxisme. Paris, Gallamard, p. 161.

[149] Kojève, A., 2004 [1942], La notion de l’autorité. Paris, Gallimard, p. 51.

[150] Cf. Descombes, V., 1979, Le même et l’autre : quarante-cinq ans de philosophie française (1933-1978). Paris, Éditions de Minuit, p. 21-22.

[151] D’Hondt, J., 1986, « Les études hégéliennes », in Robinet, A. (dir), 1988, Doctrines et concepts, 1937-1987. Rétrospective et prospective : cinquante ans de philosophie de langue française. Paris, Vrin, p. 155.

[152] Adorno, T., 2003 [1957], Trois études sur Hegel. Paris, Payot, p. 89).

[153] Althaus, H., 1999, Hegel. Naissance d’une philosophie. Paris, Seuil, p. 186, 190.

[154] Rubel, M., 1981, « Introduction », in Marx, K., 1981, OEuvres, t. III. Paris, La Pléiade, p. xxxi.

[155] Marmasse, G. 2008, Penser le réel : Hegel, la nature et l’esprit. Paris, Kimé, p. 13.

[156] Planty-Bonjour, G., 1974, Hegel et la pensée philosophique en Russie 1830-1917. La Haye, Nijhoff, p. 283.

[157] Cf. Sowell, T., 1967, « Marx’s Capital after One Hundred Years », The Canadian Journal of Economics and Political Science / Revue canadienne d’Économique et de Science politique, vol.33(1) : 50-74.

[158] Kervégan, J.-F., 2005 [1992], Hegel, Carl Schmitt. Le politique entre spéculation et positivité. Paris, Presses Universitaires de France, p. 337.

[159] Lindenberg, D., 1975, Le marxisme introuvable. Paris, Union Générale d’Édition, p. 256.

[160] Collins, D., 1996, La théorie de la connaissance chez Marx. Paris, L’Harmattan, p. 17.

[161] Bourdieu, P., 2002, « Science, politique et sciences sociales », Actes de la recherche en sciences sociales, vol. 141-142 : p. 9.

[162] Schumpeter, J., 1983 [1954], Histoire de l’analyse économique, t. I. Paris, Gallimard, p. 60.

[163] Ibid., p. 59.

[164] Croce, B., 1981 [1901], Matérialisme historique et économie marxiste. Paris, Slatkine, p. 10.

[165] Ibid., p. 19.

[166] Cf. Leroux, A., P. Livet, et al., 2005, Leçons de philosophie économique (3 vols.). Paris, Economica.

[167] Berns, E., 2013, « De la retenue et de la combativité en philosophie économique », Cahiers d’économie politique, No. 65 : 237.

[168] Kolm, S.-C., 1986, Philosophie de l’économie. Paris, Seuil, p. 13.

[169] Schumpeter, J., 1983 [1954], Histoire de l’analyse économique, t. I. Paris, Gallimard, p. 58.

[170] Cf. Copleston, F., 1994, [1962], History of Philosophy, vol. VII. New York, Image, p. 35, 73.

[171] Schumpeter, J., 1983 [1954], Histoire de l’analyse économique, t. I. Paris, Gallimard, p. 62.

[172] Ibid.

[173] Bourdieu, P., 1984, Questions de sociologie. Paris, Éditions de Minuit, p. 38.

[174] Marx, K., 1978 [1867], Le capital, l. I, t. I. Paris, Éditions sociales, p. 179.

[175] Cf. Reiss, J., 2013, Philosophy of Economics. London, Routledge

[176] Stiglitz, J., 2012, Le prix de l’inégalité. Paris, Babel, p. 179.

[177] Rühle, O., 2011, [1928], Karl Marx : vie et oeuvre. Genève, Entremonde, p. 43-44.

[178] Cf. Korsch, K., 1972 [1932], « Introduction to Capital », in Korsch, K, 1972, Three Essays on Marxism. New York, Monthly Review Press, p. 39 et seq.

[179] Henning, C., 2014, Philosophy After Marx. Leiden, Brill Academic Publishing, p. 320 et seq.

[180] Foucault, M., 2001 [1975], « Les réponses du philosophe », Dits et écrits, t. II Paris, Gallimard, p. 1676.

[181] Tosel, A., 2009, Le marxisme du 20e siècle. Paris, Syllepse, p. 29.

[182] Faccarello, G., 1983, Travail, valeur et prix. Paris, Anthropos, p. 76.

[183] Cf. Heinrich, M., 2004, An Introduction to the Three Volumes of Karl Marx’s Capital. New York, Monthly Review, p. 36-38 ; Hai Hac, T., 2003, Relire le Capital : Marx, critique de l’économie politique et objet de la critique de l’économie politique, t. I. Lausanne, Page Deux, p. 193 et seq.

[184] Cf. Leff, G., 1969, Tyranny of Concepts. Tuscaloosa University of Alabama Press, p. 19-20, 73; Robinson, J., 1953, On Re-Reading Marx. Cambridge, Student’s bookshop ltd., p. 19 et seq.

[185] Aron, R., 2010 [1967], Les étapes de la pensée sociologique. Paris, Gallimard, p. 157.

[186] Bourgeois, B., 1993, « Le “noyau rationnel” hégélien dans la pensée de Marx », Actuel Marx, vol. 13 : 128-129.

[187] Bourgeois, B., 1993, « Jean Hyppolite et Hegel », Les Études philosophiques, vol. 2 (avril-juin) : 145.

[188] Bourgeois, B., 1993, « Le “noyau rationnel” hégélien dans la pensée de Marx », Actuel Marx, vol. 13 : 128-129.

[189] Cf. Petersen, E., 1994, The Poverty of Dialectical Materialism. Summer Hill, Red Door.

[190] Přibram, K, 1986, Les Fondements de la pensée économique. Paris, Economica, p. 250.

[191] Aron, R., 2010 [1967], Les étapes de la pensée sociologique. Paris, Gallimard, p. 173.

[192] Rubel, M., 1957-58, « Ein unbekanntes Kapitel aus Marx’ Leben. — Briefe an die holländischen Verwandten, Internat. Rev. of Social History, vol. I, no 1 by Werner Blumenberg », L’Année sociologique, Troisième série, vol. 9: 242.

[193] Löwith, K., 2003 [1941], De Hegel à Nietzsche. Paris, Gallimard, p. 327.

[194] Lukács, G., 1981 [1948], Le jeune Hegel, t. I. Paris, Gallimard, p. 70.

[195] Kervégan, J.-F., 2007, L’Effectif et le rationnel. Paris, Vrin, p. 121.

[196] Koyré, A., 1961, La Révolution astronomique. Paris, Hermann, p. 79.

[197] Kojève, A., 1946, « Hegel, Marx et le christianisme », Critique, vol. 3-4 : 366.

[198] Weil, E., 2002 [1950], Hegel et l’État. Paris, Vrin, p. 105.

[199] Hyppolite J., 1955, Études sur Marx et Hegel. Paris, Marcel Rivières, p. 126.

[200] Braudel, F., 1985, La dynamique du capitalisme. Paris, Flammarion, p. 109.

[201] Gougeon, J.-P., 1996, La social-démocratie allemande, 1830-1996. Paris, Aubier, p. 19.

[202] Cf. Pierenkemper, T., R. Tilly, 2004, The German Economy During the Nineteenth Century. New York, Berghan books.

[203] Lécrivain, A., 2001, Hegel et l’éthicité. Paris, Vrin, p. 87.

[204] Taylor, C., 1998, Hegel et la société moderne. Québec, Presses de l’Université Laval, p. 130.

[205] Bourgeois, B., 1998, Hegel. Paris, Ellipses, p. 32.

[206] Cavalier, F., 1999, Premières leçons sur la raison dans l’histoire. Paris, Presses Universitaires de France, p. 101.

[207] D’Hondt, J., 1984, « La libre nécessité », in Mercier, A., M. Svilar (dirs.), 1984, Philosophes critiques d’eux-mêmes. Bern, Peter Lang, p. 12.

[208] Cf. Burns, T., 2000, « Marx and Scientific Method: A Non-Metaphysical View », in Fraser, I., T. Burns (dirs.), 2000, The Hegel-Marx Connection. New York, Palgrave Macmillan, p. 79-103.

[209] Stoyanovitch, K., 1979, « Les biens selon Marx », Archives de la philosophie du droit, t. 24, p. 199-200.

[210] Schumpeter, J., 1983 [1954], Histoire de l’analyse économique, t.II. Paris, Gallimard, p. 219.

[211] Sraffa, P., 1974, « Note sur “Valeur Absolue et valeur d’échange” » in Ricardo, D., 1823, « Valeur absolue et valeur d’échange », Cahiers d’économie politique, No. 2, p. 230.

[212] Cédras, J., 1978, Histoire de la pensée économique. Paris, Dalloz, p. 61.

[213] Aron, 1970, Marxismes imaginaires : d’une sainte-famille à l’autre. Paris, Gallimard, p. 157.

[214] « De même que les philosophes ont érigé le penser en sujet indépendant, de même il leur a fallu ériger le langage en royaume indépendant. Voilà le secret du langage philosophique où les pensées possèdent, en tant que mots, un contenu qui leur est propre. Le problème de descendre du monde des pensées dans le monde réel se change en cet autre problème : sortir du langage pour descendre dans la vie […] les philosophes n’auraient qu’à transposer leur langage dans le langage ordinaire dont il est abstrait pour reconnaître qu’il n’est que le langage déformé du monde réel et se rendre compte que ni les idées ni le langage ne forment en soi un domaine à part, qu’ils ne sont que les expressions de la vie réelle » (Marx, K., F. Engels, 1976 [1846], L’idéologie allemande. Paris, Éditions Sociales, p. 452-453).

 


O autor: Mathieu-Joffre Lainé, doutorado em Filosofia pela Université de Laval (Canadá), é agente de investigação e planificação sócio-económica no Secretariado dos Assuntos Autóctones do governo do Canadá.

Leave a Reply