Crise na Universidade — “Algumas reflexões ainda em torno do Joaquim Feio e da NOVA FEUC” (1/4), por Júlio Marques Mota

Entre os intelectuais que mais se insurgiram contra a censura, encontramos Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estêvão de Magalhães (protesto contra a lei das Rolhas de 1850).

Nota prévia

“Algumas reflexões ainda em torno do Joaquim Feio e da NOVA FEUC” é o terceiro texto de uma série de três dedicados à crise na Universidade. Trata-se de uma reflexão desencadeada a partir do meu corte umbilical com a FEUC feito em 28 de dezembro, dia de em que Joaquim Feio faria anos se estivesse entre nós.

Peço aos nossos leitores que vejam estes textos apenas como uma crítica ao sistema de ensino universitário em Portugal e nunca, mas nunca mesmo, como uma crítica pessoal contra alguém.

São textos que me foram muito difíceis de escrever, de reviver enquanto os escrevia, são textos que refletem uma realidade com a qual teremos que nos habituar a conviver, dada a incapacidade de a podermos esquecer. E fazer como o poeta Jacques Brel:

On n’oublie rien de rien

On n’oublie rien du tout

On n’oublie rien de rien

On s’habitue c’est tout

Como nota final devo agradecer aos meus revisores António Manuel Martins, Fernando Ribeiro, António Gomes Marques, Francisco Tavares, a enorme paciência havida em lerem e relerem mais do que uma vez os textos que agora editamos e a quem agradecemos as sugestões feitas.

JM

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Nota de editor: em virtude da extensão deste texto, o mesmo é publicado em quatro partes, hoje a primeira.

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5 min de leitura

 Por Júlio Marques Mota

1ª parte

 

Caro diretor [1]

 

No dia 2 de dezembro, o senhor diretor encerra o ciclo de comemorações da criação da NOVA FEUC e eu encerro com isto a comemoração dos meus cinquenta anos depois da entrada na carreira docente. Não é sobre esta minha carreira que lhe estou a escrever, até porque não há nada a realçar em face do que se pensa na sua Faculdade de hoje.

Tem agora uma NOVA FEUC, resplandecente de brilho, de quem está novinha em folha, acabou de nascer; eu, em contrapartida, assino a certidão de óbito do muito pouco que estava do que foi a minha Faculdade. A sua Faculdade nasceu; a minha, já muito doente, pela reforma de Bolonha e pelos estragos que lhe adicionaram depois, essa, simplesmente morreu. Abram-se alas para a Nova Faculdade que o senhor criou, façam-se as despedidas para aquela que morreu. Nada mais a dizer sobre isto.

Deixe-me dizer-lhe uma coisa bem singular. Joaquim Feio morreu antes da sua NOVA FEUC ser dada à luz com a entrada em vigor do novo plano de curso. Em fase da inevitabilidade muitíssimo próxima da sua morte, foi então melhor que a sua Faculdade tenha oficialmente nascido depois dela. Fragilizado como ele estava não sei se resistiria ao choque, se a situação temporal dos dois eventos fosse a inversa. Creio que não resistiria até porque no final da sua vida queixava-se ele de que passámos uma vida (eu e ele) a sacrificar muita coisa do nosso tempo, das nossas vivências, em nome da Faculdade que se estava a contruir para que o resultado final seja agora o que estávamos a assistir. Disse-lhe o mesmo a si, e na minha presença, quando um dia, inesperadamente, o Álvaro o foi visitar, aproveitando um engano seu por se ter enganado no dia da sua consulta marcada no Hospital da Luz, que era para o dia seguinte, e, já que ali estava, aproveitava para o visitar. Ele falou-lhe nisso e mais ou menos nesses termos. E o Álvaro respondeu-lhe, e não citemos nomes, que estava a construir a Faculdade possível. Depois, como havia outras visitas à espera para verem o Joaquim Feio, saí eu e depois o meu amigo para lhes dar lugar. Reencontrámo-nos de seguida na esplanada do café do Hospital, onde retomámos a conversa que tínhamos acabado de deixar suspensa na visita.

Aí, continuámos a falar sobre a sua visita à Universidade de Brown, do Onésimo, do livro que o Álvaro andava a ler de Amartya Sen, de Sraffa igualmente, falando-se também do que se quer ou devia querer como Faculdade, como Universidade. Nessa conversa a dois, no café, éramos dois homens de esquerda! Depois, voltei a entrar no Hospital para me despedir dele. Estava extremamente cansado e li no seu rosto que bem conheci, que só o cansaço o impediu de ser mais contundente. Ambos demos muito da nossa vida à FEUC, bem ou mal, o melhor que sabíamos e podíamos, partilhámos juntos uma outra visão de Universidade em nome da qual nos sacrificámos. Dessa visão, ainda me lembro do livro que me ofereceu num meu aniversário para repor o exemplar por mim perdido há muito tempo, o de Ortega y Gasset, exatamente com o título Missão da Universidade, da Angelus Novus, que ainda hoje vale a pena ler. Um livro destes não pode estar perdido, diz-me ele com um sorriso quando mo ofereceu. Mas esta problemática, a Universidade, a missão desta, faz-nos voltar um pouco atrás, a 5 e 6 de setembro último.

Com efeito, nos dias 5 e 6 de setembro realizaram-se as cerimónias fúnebres do meu antigo aluno, meu colega e meu grande amigo, Joaquim Feio. Em face de alguém que não era doutorado, sensibilizou-me a importância cultural e científica reconhecida pela Universidade de Coimbra (e bem devida, assinale-se) ao Joaquim Feio. Foram impressionantes os discursos que foram ouvidos, do representante do reitor, do diretor da FEUC, Álvaro Garrido, e de Clara Murteira, com particular realce para este último discurso. Em todos eles senti uma verdadeira autenticidade no corpo das ideias que transmitiam. Houve, porém, um pequeno senão no que ouvi quando houve uma referência à doação da biblioteca pessoal do Joaquim Feio à FEUC e a minha primeira reação para com a minha mulher, que estava a meu lado, foi: isto não é verdade, não é nada assim, não me parece estar correto o que se está a dizer, tendo em conta o que o Joaquim Feio me disse no Hospital da Luz.

Ao ouvi-lo falar da doação da biblioteca, lembrei-me instantaneamente de uma conversa curiosa que tive com o Joaquim Feio e que se pode resumir ao seguinte: disse-lhe que ele, ao ser um bibliófilo, não fazia nada mais nada menos do que andar a imitar Sraffa e Keynes, que nos anos de 1940 calcorreavam os alfarrabistas de Cambridge à procura de raridades bibliográficas. Nessa altura e numa conversa cruzada com um amigo comum presente, falou-se do destino dos seus livros e sobretudo das suas raridades bibliográficas. O que se disse nessa altura não tinha nada a ver com o que na capela ouvi sobre o mesmo assunto. O que ele me disse era que estava preocupado com o destino a dar aos seus livros. Quanto aos livros normais não gostaria que fossem comprados a 1 euro o volume, como aconteceu com a biblioteca do António Gama. E mesmo quanto a estes, muito menos gostaria de os ver em oferta pública a quem os quisesse aceitar como dados. Quanto aos outros livros, os especiais, eram o investimento que deixava à filha, que bem precisava.

Do seu discurso de improviso, senhor diretor, há verdadeiramente duas coisas a salientar, que a seguir iremos analisar com algum pormenor:

  1. A de que o Joaquim Feio lhe disse em 2011 que esta já não era a sua Faculdade (ou Universidade, já não me lembro bem, mas esse pormenor é aqui irrelevante)
  2. A afirmação de que o Joaquim Feio tinha doado a sua própria biblioteca à Faculdade.

 

1. Um longo comentário sobre ”Esta já não é a minha Faculdade”

O Joaquim Feio disse que esta já não era a sua Faculdade. A ênfase cultural sobre a trajetória do Joaquim Feio em todos os três discursos era de tal forma intensa que dava a entender implicitamente que a Faculdade (Universidade) reconhecia a razão de ser dessa afirmação e que estava agora no bom caminho, daí a tónica sobre a cultura de que o Joaquim Feio era um verdadeiro símbolo. Teríamos assim a Faculdade (Universidade) a recriar-se como uma Faculdade (uma Universidade) cadinho de cidadania e da formação de técnicos à altura de serem ferramentas dessa mesma cidadania de que a sociedade tanto precisa. Tanto assim que a própria FEUC era agora recriada pela sua própria mão e pela do Tiago Sequeira com o seu curso de Economia verdadeiramente novo, novo em folha, repita-se, estaria a “corrigir os vícios do passado”, como me disse uma vez alguém de quem já fui muito amigo e que está agora muito ligado ao novo projeto FEUC. Ilusão minha, o discurso do diretor circunscrevia-se exclusivamente ao que representava Joaquim Feio na Universidade, nada mais do que isso.

O que eu imaginei com aquele discurso e que acabo de descrever, não se tratou de pura poesia ou simples descuido, mas talvez de um certo desejo do que deve ser a Universidade. Com efeito, quando presidente do Conselho Pedagógico da FEUC, escrevi um texto em que defendia que uma Faculdade ao nível da exigência em que se deve colocar tem a obrigação de levar a que muitos alunos de baixo nível atinjam o nível médio, que muitos alunos de nível médio atinjam o nível de alunos de qualidade e que alguns alunos de qualidade atinjam o nível de excelência. Ainda hoje mantenho a mesma posição: a Universidade deve ser uma fábrica de inteligência e nunca de destruição de potencialidades da mesma. Curiosamente, hoje começa-se a considerar que há diferentes tipos de inteligência, contra a ideia de um QI único, e que, no caso que nos diz respeito, os tipos de inteligência que devem ser dominantes nos alunos das áreas estudadas na FEUC, se aí estão por opção desejada, devem ser:

  1. Inteligência linguística;
  2. Inteligência lógico-matemática;
  3. Inteligência interpessoal;
  4. Inteligência intrapessoal.
  5. Inteligência espacial

 

Em tudo isto não devemos esquecer que:

“inteligência é a capacidade de aprender com a experiência e de se adaptar, moldar e selecionar ambientes. A inteligência, medida por testes padronizados convencionais (pontuações brutas), varia ao longo da vida e também entre gerações. Estudos sobre os efeitos dos genes e do ambiente sugerem que o coeficiente de hereditariedade (relação entre a variação genética e a variação fenotípica) se situa entre 0,4 e 0,8, embora a hereditariedade varie em função do estatuto socioeconómico e de outros fatores”. (original – ver aqui).

 

Nesta linha de pensamento e basicamente, ensinar a aprender é a função das Universidades enquanto a função das empresas é a de ensinar a fazer. Saibamos então cumprir aquela que é a nossa missão. Se olharmos retrospetivamente para a minha prática académica na FEUC ao longo de décadas, verificamos que esse foi sempre um eixo assumido por mim como docente, e por todos aqueles que trabalharam comigo, e é essa prática que explica e justifica este meu texto, que preferiria nunca ter necessidade de o escrever.

 

(continua)

 


Notas

[1] Este texto foi concluído em 8 de outubro, para arrumar de vez os fantasmas que se me levantam quanto à questão da doação da biblioteca do Joaquim Feio; não o plano de curso, esse já era esperado: O texto ficou a aguardar pelo momento que eu considerei oportuno para o seu envio.

 

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