MORREU O PROFESSOR ANTÓNIO GAMA – A HOMENAGEM DE JÚLIO MARQUES MOTA

Hoje, um amigo meu morreu. Um homem de uma estatura verdadeiramente fora do comum num meio onde muita  gente se pensa como de excepção devido à nobreza garantida pelos seus títulos, títulos que esse meu amigo não tinha. Mas tinha outros, seguramente.

Hoje, um amigo meu morreu. Um amigo que à Universidade conferiu e entregou todo ou quase todo o sentido da sua vida.

Hoje, um amigo meu morreu.  Um amigo que na vida se alimentava sobretudo do grande  prazer de ensinar  e que daí obtinha, portanto,  grande  parte da sua alegria de viver.

Hoje, um amigo  meu morreu. Um amigo a quem um seu colega espanhol  lhe escreveu já com ele no leito da morte dizendo  que está escrito na memória dos investigadores espanhóis que com ele trabalharam  e escrito como na pedra o reconhecimento deles pela  sua dedicação à investigação e pelo seu rigor de análise  que a esta o meu amigo conferia.

Hoje, um amigo meu morreu. Dessa carta  recebida já no leito de morte e que me deu a ler, relembro-a pela leitura quase de relance, comovido que eu estava por uma ou outra lágrima que lhe escorria da alma e dos olhos também.

E da vivência em comum na Universidade relembro   três detalhes:

  1. A sua participação no Ciclo Integrado de Cinema Debates e Colóquios na FEUC, em particular numa sessão onde se projectava Kisagany Diary, o mais dramático documentário que já vi. Relembro-o ao lado de Francisco Louçã (ISEG-UTL), Pezarat Correia (FEUC), José Soares da Fonseca (FEUC). E dessa sessão, com o Auditório  completamente cheio, relembro a sua leitura  sobre os movimentos de populações em África, um continente verdadeiramente à deriva, sobre as deslocações que nem  a ONU queria reconhecer.

  2. A sua participação na elaboração de uma brochura sobre a China, sobre os Left-Behind, publicada sob o título: O CAPITALISMO NA CHINA: AS CLASSES SOCIAIS, AS MIGRAÇÕES E A REPARTIÇÃO DO RENDIMENTO. Relembro aqui as discussões havidas à volta de centenas de páginas  a ler, a seleccionar, a traduzir e numa sequência  temporal de cronómetro para realizar a brochura que iria ser editada e distribuída gratuitamente no Gil Vicente. Tratou-se de uma  selecção esta que tinha também ela a mão do artista em migrações, em Geografia Humana,  que se chamava e já se não chama, António Gama. Uma brochura em que ficou  também a sua marca.

  1. Relembro um encontro que nunca se deu e que agora se há-de dar um pouco à maneira dos Amigos de Alex. Por isso relembro o que ainda não se verificou! Tratava-se do encerramento à distância de anos do Ciclo de Cinema, entre aqueles que o fizeram, num jantar à nossa conta e num restaurante por ele escolhido, perto da sua casa. E esses convidados seriam Margarida Antunes, Luis Peres, eu próprio e Arnaud Lantoine. E, por mim, esse jantar será feito. Um encontro falhado, um encontro falhado com a vida  e com a nossa história pessoal mas que a vida, em sua homenagem,  deve recuperar. Um   jantar que dessa forma serve também para relembrar o cinema documentário que nos ligou,  a lembrar neste caso igualmente Os Amigos de Alex.

E a esse amigo meu que hoje morreu e que não mais verei, porque um fervoroso defensor  do rigor na ciência dedico os dois próximos textos a publicar em A Viagem dos Argonautas sobre a problemática da medida , cujos títulos são:

  1. Défices estruturais e estabilizadores automáticos- a grande vigarice.

  2. A inexacta ciência de calibrar a política fiscal, textos  estes onde o autor de suporte é Bill Mitchell.

Trata-se de textos que têm como tema central a falta de rigor na União Europeia até na sua própria medida das grandezas macroeconómicas, uma vez que a modelização utilizada para as calcular está ideologicamente bem marcada e enviesada para a obtenção de resultados  que antecipadamente deseja obter  e considerar a seguir como “dados indiscutíveis” . A partir daqui, a partir deste enviesamento técnico, fustigam-se  nações inteiras com as políticas de austeridade impostas e inclusive este amigo  meu que morreu talvez, por um tratamento bloqueado por falta de um  medicamento, de nome  ZYTIGA, que era caro e que lhe chegava às mãos por mãos travessas, fornecido por uma clínica privada a um Hospital público.  A austeridade da Troika no Ministério da Saúde a fazer sentir os seus efeitos devastadores. Talvez por isto tenha partido bem mais cedo do que seria de esperar, quando foi obrigado a parar a terapêutica que se estava a praticar porque, por questões burocráticas,  o medicamento faltou e o tratamento por uns tempos se  bloqueou. Mas entre os dois extremos, a vida e a morte, como entre a política a sério e a política da mentira feita e imposta pela Troika, não há meio termo e, nesse espaço de vazio, a doença assim terá galgado os diques do seu sistema imuno-defensivo e do mundo das nossas vivências a vida dele terá assim levado.

Por isso, devo dizer com uma profunda revolta no coração: hoje, um amigo meu morreu, o  António Gama.

E é tudo.

Júlio Marques Mota

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