Cândido Rondon – 3 – por Fernando Correia da Silva

(Continuação)

 

NOS CAMPOS DO MIMOSO

 

 – Menina, Você é muito impaciente, tenho que falar com o seu maracá…

 

 – O meu quê?

 

– Maracá, anjo da guarda. Tenha calma, repare, entenda: foi o ouro de Cuiabá que atraiu os bandeirantes paulistas a Mato Grosso. Mas depois as reservas esgotaram-se e os seus descendentes, já misturados com índios e negros, ficaram pasmados nos campos do Mimoso, palmais, florestas, rios, lagoas e mais lagoas. Sem ouro para minerar, o que iriam eles fazer naquela região tão isolada? A alternativa foi criar gado porque sem estradas, nem caminhos, só o gado consegue locomover-se através de milhares de quilómetros até aos mercados do litoral. Em linha recta, Você sabe, Menina, qual é a distância de Cuiabá até ao litoral atlântico?

 

– Uns mil quilómetros? – Diga antes dois mil. Mais ou menos a distância de Lisboa a Praga.

 

– É um mundo, o seu Brasil…

 

– É quase um continente. Foi nos campos do Mimoso, na sesmaria de Monte Redondo, que a 5 de Maio de 1865 nasceu Cândido Mariano da Silva Rondon. Da sua vertente paterna recebeu sangue de portugueses e espanhóis, também de índios Guaná; da materna, sangue de índios Terena e Bororo. Nele, tudo se soma, nada se perde.

 

– Família rica?

 

– Gente pobre. E ele, aos dois anos, já é órfão de pai e mãe. Um tio paterno é quem toma conta dele e o leva para Cuiabá. Ali cresce, ali estuda e conclui com distinção o curso secundário. Um fora de série em Matemática.

 

– E havia universidade em Cuiabá?

 

– Não, não havia, mas Cândido quer continuar os estudos, a sua ambição é o Rio de Janeiro. Para um menino pobre há apenas duas saídas: ou Escola Militar, ou Seminário. Pede licença ao tio e opta: antes murubixaba do que pajé. – Desculpe, não percebo. – Antes chefe guerreiro do que padre.

 

FAZER A PAZ

 

– O alferes Cândido Rondon tem 23 anos quando auxilia Benjamim Constant a implantar o regime republicano. E no ano seguinte, em 1890, é graduado bacharel de Ciências Físicas e Naturais e promovido a tenente. A convite do seu mestre Benjamim Constant, na Escola Militar começa a leccionar Astronomia, Mecânica Racional e Matemática Superior. Mas, pouco tempo depois, convidado para o serviço mais árduo do Exército, que é a construção de linhas telegráficas pelo interior do Brasil, não hesita em abandonar a sua promissora carreira de magistério. E ei-lo, com a sua tropa, a abrir picadas, a abater árvores, a levantar postes, a instalar fios atravessando as matas de Goiás até ao seu Mato Grosso natal. No meio da selva, apavorados, os soldados querem reagir com violência às sucessivas ameaças dos bugres.

 

– Bugres? O que é isso?

 

 – Bugre é o índio dito selvagem, no linguajar dos brancos. E bugreiro é o caçador de índios. Normalmente é um mestiço que, através da violência contra os seus parentes indígenas, tenta cativar o favor dos brancos. Os índios que se opunham ao avanço dos usurpadores sobre os territórios tribais, eram dizimados e as suas tabas e malocas incendiadas. Para isso é que serviam os bugreiros, muitos deles pagos pelos próprios governos estaduais.

 

 – Tabas?

 

– Aldeias. O objectivo de Rondon não era matar, mas pacificar.

 

 – Princípio positivista?

 

– Exactamente.

 

– Talvez por influência de Benjamim Constant, não?

 

– Acertou. Em 1898 Rondon irá aderir à Igreja da Religião da Humanidade.

 

– Mas o Positivismo é uma Religião e tinha Igreja?

 

– Menina: a palavra “religião” deriva de “religar”. Nesse sentido, o Positivismo é uma Religião, porque ambiciona religar os Homens. E a sua Igreja é diferente das outras. No Positivismo, a crença em seres e fenómenos sobrenaturais é substituída pela adoração e entendimento de uma nova Trindade: não mais o Pai, o Filho e o Espírito Santo, mas sim a Humanidade, a Terra e o Espaço. A sua Fórmula Sagrada é O Amor por Princípio, a Ordem por Base, o Progresso por Fim. E a sua Fórmula Moral é Viver para Outrem.

 

– E Você? Também é positivista?

 

– Não vim à Europa para falar de mim.

 

 – Mas como é possível pacificar um povo em armas, estando os seus guerreiros, com razão, indignados e

 

furiosos?

 

– Essa é, justamente, a grandeza de Rondon. Foi sempre rigoroso na aplicação da sua máxima “Morrer, se for preciso; matar nunca!”. Dezenas de oficiais e mais de centena e meia de soldados e trabalhadores civis foram mortos porque desistiram de matar. Melhor dizendo: deixaram-se matar. Neles, a força de uma ideia suplantou o instinto de conservação. O humanismo, levado a sério, tem custos altos.

 

– O princípio teórico, eu compreendo. Mas, na prática, como é que Rondon o aplicava?

 

– Aurora: antes compreenda, como Rondon o compreendeu, que os índios são homens a viver no neolítico. Mas somos homens e, como todos os homens, ambicionamos viver melhor. Súbitas e maravilhosas ferramentas de metal postas à nossa disposição, facas, facões, cunhas, alavancas, anzóis, tesouras, machados e machetes, podem ser o chamariz que nos decida à caminhada da pré-história à civilização. Quando cercado e atacado pelos índios, Rondon deixa os presentes numa clareira e trata de recuar com a sua tropa. Sinal evidente de que deseja a paz e, no dia seguinte, torna. Uma, duas, três vezes, as que forem necessárias até que os índios se disponham a ir à fala…

 

 – E todos eles aceitavam o diálogo?

 

– Nem todos, alguns são muito renitentes. Rondon explica-nos porquê: “Eles nos evitam; não nos proporcionam ocasião para uma conferência, com certeza por causa da desconfiança provocada pelos primeiros invasores que profanaram seus lares. Talvez nos odeiem também porque, do ponto de vista em que estão, todos nós fazemos parte dessa grande tribo guerreira que, desde tempos imemoriais, lhes vem causando tantas desgraças, das quais as mais antigas revivem nas tradições conservadas pelos anciães.” Eis porque um dos meus antepassados, da tribo dos Nambikuára, quase o mata à frechada; uma das setas raspa-lhe o rosto, a outra crava-se na bandoleira da carabina.

 

– E ele?

 

– Limita-se a disparar dois tiros para o ar. Assim nós, os Nambikuára, estamos vendo que aquele guerreiro, da tribo dos brancos, não quer matar.

 

– E os soldados?

 

– Exigem vingança. Um oficial grita que é uma vergonha se o Exército não der um correctivo exemplar àqueles selvagens. Rondon corta-lhe a palavra: “Quem representa aqui o Exército sou eu, e o Exército não veio aqui para fazer guerras. Os Nambikuára não sabem que a nossa missão é de paz. Se esta terra fosse vossa e alguém viesse roubá-la e, ainda por cima, vos desse tiros, o que é que os senhores fariam apesar de civilizados?” Mão firme e palavras como estas é que travam a tropa.

 

– Isso aconteceu durante a primeira expedição de Goiás a Mato Grosso?

 

– Não, isto acontecerá mais tarde, em 1907, se não me falha a memória. Pela mesma época também descobre o rio Juruena; alguns duvidavam que existisse, seria apenas lenda… Durante as primeiras expedições ele pacifica outras tribos. Mas se é difícil fazer a paz, mais difícil é mantê-la.

 

(Continua)

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