Eva Cruz Aurora Adormecida
Capítulo 25
(continuação)
Aurora amava o marido mas sofria em silêncio ao vê-lo arruinar-se. Os filhos sofreram com ela. Homem lúcido e respeitado, deixou degradar a sua imagem até perder a auto-estima por completo. Acabou numa dependência total, como uma criança, numa docilidade que tudo aceitava, até a própria morte. Nunca perdera o juízo. Ficava eufórico, de olhar toldado, sempre manso, mas a degradação crescia de dia para dia e a doença depressa se apoderou do seu corpo. Uma cirrose hepática mirrara-lhe a vida durante anos até o arrancar ao seio da família.
Aurora tinha muitos ciúmes do marido, com ou sem razão. Fazia-lhe a vida negra e não o deixava parar em ramo verde. Ele gostava muito dela, a seu modo. Não era homem para a adular com presentes, pelo contrário. Ela tinha muita dificuldade em lhe arrancar dinheiro que não fosse para o indispensável e necessário. Essa dependência económica do marido tolheu-a a vida inteira. Senhora e mandona, sofria, ao ver-se assim controlada.
Era considerado um homem rico, para a época. Tinha algumas economias, em empresas da terra. Emprestava dinheiro sem juros a gente pobre, perdoou algumas dívidas por razões de saúde ou morte. O dinheiro guardava-o numa caixa de madeira, atulhada de notas e numa gaveta cheia de moedas, no guarda-livros. Em dias de boa disposição, regalava-se a mostrar aos filhos a sua pequena fortuna.
Um dia escorregaram algumas notas de conto de reis pelas traseiras do armário. Aurora guardou-as muito bem guardadas a ver no que dava. Ele nunca descobriu. Com esse dinheiro pagou as explicações da filha à professora primária, a fim de, em Coimbra, fazer o exame de admissão ao Liceu. Só o filho estudava, então. A mãe achava que a filha também tinha o mesmo direito.
* Ambos saíram da mesma barriga.
O irmão José, também padrinho da miúda, achava que a garota era esperta e lembrava-lhe a tristeza que ele sempre sentira por não ter estudado.
* Fui uma grande mulher e uma grande mãe. Se não era eu, a tua mãe nunca teria ido estudar e hoje era uma empregadeca e tu eras um borradito.
° Eu, avó, um borradito, neto de uma avó tão limpinha? Ai, avó, avó, vê lá bem de quem eu sou neto.
* Ai, limpinha, limpinha sou.
° És limpinha porque a mamã te limpa. Se não era a mamã, queria-me rir.
* Queres-te rir porquê? Então ri-te, ri-te, caganite.
A sua preocupação era enaltecer-se aos olhos dos netos, provocando-os constantemente no seu discurso. Não precisava de o fazer porque eles tinham-na num pedestal tão alto como ninguém. Deve ter sido a imagem mais bonita que lhes ficou da vida. Felizmente, ela sabia-o bem, mas gostava de se sentir provocada nessa lisonja.
Aurora viveu anos de grande felicidade com o marido e os dois filhos, um menino e uma menina. Fazia as roupas da menina, os bibes de popeline, os calções e as camisinhas do menino. Tratava da casa, cevava porcos, criava galinhas, patos e perus. Tinha uma toura e uma cabra para dar leite. Ajudavam-na uma criada velha, a quem o marido pusera o nome de Faruk, por se movimentar de rabo alçado em forma de prateleira, e um criado, rapaz novo, que no tempo da guerra ia, de madrugada, para a bicha do pão, a fim de conseguir dois ou três pães ou uma simples sêmea. De casa do cunhado Zé vinha todas as semanas broa e bolo de milho.
O irmão padre, então missionário em Moçambique, dono de uma grande área onde fundou escolas e uma cantina para os negros, juntamente com algumas religiosas, mandava cachos de bananas e sacas de arroz e açúcar, com caras de pretas nelas desenhadas. Era um luxo para tal época de fome, tempo da guerra.
Em troca, enviava-lhe a cunhada os melhores chouriços e salpicões feitos com vinho branco, que, depois de defumados, eram religiosamente guardados no escabelo da cozinha à espera da altura de serem enviados ao tio padre.
* Um dia, abri o escabelo para fazer a encomenda para o tio padre e…chouriços de grilo. Fiquei morta. O teu tio foi tasquinhando, tasquinhando e lambeu-os todos.
º Fez ele muito bem, avozinha. Se fosse eu fazia o mesmo. Que era o padre mais do que ele?
* Capaz disso eras tu, meu macaco.
No escabelo restara apenas o cheirinho apetitoso envolto no pano de linho primorosamente limpo.
(continua)