Eva Cruz Aurora Adormecida
Capítulo 28
(continuação)
Aurora e o marido decidiram matricular o filho num colégio da terra. Porém, a sua preparação dos jesuítas era tão boa, que ele entendeu nada ter ali a aprender. Foi, então, para um colégio mais distante, com melhor reputação pedagógica. Mais tarde acompanhou-o a irmã.
Todos os dias os filhos acordavam, automaticamente, ao som da sirene da fábrica e dos afagos da mãe. Preparava-lhes um lanche para a tarde, uma garrafinha com uma gemada e um pão com marmelada ou manteiga. Subiam o Caminho Novo, sempre à recta, com o simpático motorista da Leyland, à sua espera quando raramente se atrasavam. Ao princípio da noite regressavam a casa. Esperava-os, sobretudo em tempo de chuva, o Bininho, o corcunda, para os ajudar a trazer as pastas pela calçada abaixo. O Bininho vivia com a mãe, velhinha, a ti Fruménia (forma aldeã da palavra Filomena). Tinha uma figura tão bizarra e grotesca que fazia lembrar o Quasimodo da Notre Dame, de Victor Hugo. Já nesse tempo, os dois miúdos liam muito e faziam eles próprios essa analogia com o corcunda do grande escritor francês.
Não era fácil crescer intelectualmente num ambiente tão rural, nem tão pouco crescer saudavelmente em tempos tão difíceis. Só a grandeza de alma, a inteligência e a sensibilidade dos pais que tiveram, facilitaram a sua perspectiva de vida e o modo como futuramente construíram a sua visão do mundo.
O Bininho era mais uma das muitas figuras com aleijões físicos e mentais que se tornaram carismáticas na aldeia. Uns corcundas, outros mongolóides, filhos últimos de casais com grande prole, outros vítimas de meningite ou poliomielite iam vivendo e convivendo por ali, perante a complacência de muitos e a troça de outros. Toda a aldeia tem um tolo, era um ditado popular. Aquela tinha vários.
O cigarrito era o principal prazer da vida do Bininho. Volta e meia abria a cigarreira de metal, que lhe havia dado uma irmã que vivia no Porto, olhava de lado a ver se alguém se compadecia da cigarreira vazia e lhe dava uns tostões. Quando fazia anos, abordava ao romper do dia os seus meninos e dizia:
– Meninos, parabéns.
– Porquê, Bininho?
– Hoje faço anos.
Em casa havia um pequeno cão de raça, o Pluto, e uma cadelita meio raçada, a Xerxes, assim baptizada por influência de leituras.
– Sempre que a cadela paria, o corcunda andava num sino, para levar os cãezitos a afogar no rio. O teu avô dava cinco escudos por isso. O tolito passava a vida a chegar os cães à cadela e arreliava-se todo por ela não emprenhar.
Era tão tolo ou tão pouco, que um dia foi-se confessar ao Sr. Prior e ele perguntou-lhe se ele tinha alguma amiguita. O palerma foi-lhe dizer que tinha sim, senhor, que era a Aurorinha do Engenho. O teu avô fartou-se de rir.
° Se calhar, Avó, era mesmo verdade.
* Rais te partam, amiga dele e dos pobres como ele, fui eu toda a vida. O que vale é que o prior sabia que ele era pobre de espírito.
Todas as festas de ano eram celebradas com rigor naquela casa. No Natal não faltava o presépio com musgo, e por técnicas e hábitos aprendidos no seminário, chegava a fazer-se um presépio com água a correr e pastorinhos a mexer. Nessa época também se representavam comédias e teatros de sombra para as pessoas da aldeia que ali quisessem vir. Na lareira ficavam os sapatos e as chanquinhas, à espera dos bonecos de chocolate revestidos de pratas coloridas e reluzentes, que o Menino Jesus iria trazer à meia-noite, entrando pela chaminé. A tudo isto se juntava a ceia de Natal, a bacalhoada, as rabanadas, os mexidos, os belharacos, as castanhas cozidas, o cheiro a canela e vinho fervido. No Entrudo, as caras enfarruscadas na lapeira, as serpentinas, as bichas, as caretas, a fantasia da simplicidade. Na Páscoa,o repicar dos sinos, o cortejo pascal, o doce sortido, as amêndoas e o doce cheiro da Primavera. As romarias, as cascatas com canos de abóbora e ramalhos de carvalhas e o S. João a mijar em bica.
– Um tostãozinho para o santinho.
A Senhora da Saúde, as pandeiretas, as rusgas, as cestas com o farnel, o manjerico atrás da orelha, o frenesim dos carroceis e do arraial eram a apoteose das festas de Verão. As de S. Gonçalo, as da Senhora da Piedade e até a Senhora do Carmo, a maior da freguesia, não se comparavam à da Senhora da Saúde.
(continua)