O saudoso tempo do fascismo – 15 – por Hélder Costa

Penamacor 62

 

 

 

 

No dia 13 de Maio de 1962, às 7 h da manhã, apresentei-me ao portão do quartel de Penamacor.

 

Éramos quatro que vínhamos de Coimbra: o Barbosa, médico, o Morais Cabral, advogado, o Júlio Taborda, professor de Liceu, e eu, estudante de Direito.

 

Gente considerada perigosa, e que, por isso mesmo, tinha sido colocada nesse quartel, que mais tarde soubemos que se tratava de uma Companhia Disciplinar. Realmente, devíamos ser muito perigosos, porque tínhamos sido escolhidos para estrear mais uma jóia da parafernália fascista.

 

A notícia tinha caído como uma bomba.

 

Lembro-me que tinha acabado de jogar à bola no campo de Santa Cruz. A nossa República, a ” Pra-kys-tão”, tinha jogado bem, e lá tinha conseguido ganhar aos” Kágados”. O Luís Filipe Madeira tinha-me dado uma joelhada numa perna – sem querer, está claro! – doía um bocado, mas lá fomos comemorar ao Mandarim.

 

A meio dos finos com o Monteiro e o Lameiras, disseram-me que tinha chegado um papel para eu me apresentar em Penamacor.

 

As coisas complicaram-se quando se soube que não tinha sido só eu a receber esse papel.

 

Falava-se do Barbosa e do Morais Cabral. Então, era história com a Pide … esses já tinham sido presos, o Barbosa, que já era médico, até tinha estado um ano em Caxias … mais umas palmadas nas costas …
“é engano, tu safas-te, nunca foste preso, nem sequer interrogado, se isso fosse assim, antes de ti iam para lá outros”, etecetera e tal.

 

O Barbosa sugeriu que eu protestasse, escrevi ao Ministério do Exército, e fui à Pide “esclarecer o assunto” .

 

Depois de quatro horas a ser matraqueado com uma máquina de escrever que registava conscienciosamente as minhas prudentes alegações, tive a bendita sorte de ser presenteado com mais três horas  de ameno cavaqueio com o tal inspector Sachetti.

 

Esta figura, que tresandava a perfume de cabaret, com o inevitável  lencinho de seda ao pescoço, de calva luzidia e bem engraxada, era o retrato fiel da figura nazi do “cliché” cinematográfico.

 

(Como a malta gostava muito de cinema, até achávamos piada à figura).

 

Bem, a conversa redundou numa situação de impasse quando o sr. inspector começou a perguntar-me porque é que eu tinha tantas actividades Académicas, teatro, Orfeon, secção de Intercâmbio da MC. escrevia na “Via Latina”, participava no Conselho das Repúblicas … tentei fazer humor, dizendo que tinha tempo para isso, para estudar, para namorar. .. o chefão não achou graça nenhuma, e atacou informando-me que eu estava previsto
para vários cargos dirigentes no Citac, Cine Clube, e na direcção da Associação Académica!

 

Protestei como pude, que isso era impossível, o Pide sorria e insistia – olhe que é verdade, senhor doutor – percebi que alguma coisa estava errada no nosso campo de agitação, e fui despedido com ordem de marcha para Penamacor e o aviso que nunca mais me queria ver em Coimbra.

 

(Tempos depois, soubemos que o funcionário clandestino do partido Comunista estava ao serviço da Pide).

 

A seguir, foi fazer as malas, e tratar das despedidas.

 

Eu pertencia a um grupo, os “Pequenos Prazeres”, malta do Citac que se interessava por politica e se reunia em tertúlias gastronómicas. Entre eles, Fausto Monteiro, Eduardo Guerra Carneiro, Amónio Barreto, Cutileiro, Germano Ferreira da Costa, Mendonça Neves, (o Allah), e outros que tais.

 

Levantaram-me o ânimo, ofereceram-me “O valente soldado Schveick”, e disseram-me que esse castigo podia ser uma boa experiência para uma futura actividade de escritor, à moda dos romancistas Norte-Americanos, mais Jack London, Sartre, Genet  e outros que tais.

 

Com abraços gargalhadas, os futuros reclusos tomaram o comboio para Alcatraz decidimos beber uns copos de despedida da civilização em casa do Pauloro, no Fundão. A família foi muito simpática, o José César mobilizou as nossas resistências para enfrentar previsíveis provocações nesse mundo que .- só a pouco e pouco íamos sabendo – era constituído por ladrões, assassinos, e (dizia-se) homossexuais.

 

Claro que percebemos a nossa situação: nós, os políticos, éramos a “escória da sociedade”.

 

À noite, já em Penamacor, um barbeiro fez de chefe de trupe e rapou-nos meticulosamente.

 

No dia seguinte, 13 de Maio, em vez de irmos a Fátima, estávamos frente à sentinela, atrás do portão do quartel de Penamacor.

 

O que se seguiu dá uma grande história que não cabe nesta crónica.

 

No entanto, não quero deixar de registar que foi nesse mundo marginal que vi, irónica e paradoxalmente, serem assumidos alguns códigos de honra: ser solidário, odiar os bufos e lambe-botas, e enfrentar com coragem
– ou com humor -, as autoridades intocáveis e os seus lacaios.

 

Afinal de contas, acho que fiquei a ganhar com o castigo de ter sofrido mais uma miserável medida repressiva do fascismo português.

 

Última nota: durante muito tempo, este grupo julgou que tinha inaugurado o sector político estudantil dessa Companhia Disciplinar. Muito recentemente soube que o quartel de Penamacor já tinha rido esse funcionamento
nos anos 30/40, e que, curiosamente, parece que o último “cliente” dessa época tinha sido Álvaro Cunhal!

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