OS HOMENS DO REI – 40 – por José Brandão

D. JOÃO III (reinou de 1521 a 1557)

Filho de D. Manuel e da sua segunda mulher D. Maria de Castela, D. João III nasceu em Lisboa, a 6 de Junho de 1502. Foi na própria câmara da rainha que, pouco depois do parto, Gil Vicente veio saudar o herdeiro com o Auto da Visitação, enquanto que por toda a cidade se sucediam grandiosos festejos.

 

A educação do futuro monarca preocupou desde muito cedo seu pai, que o confiou aos mais ilustres e compenetrados aios e letrados do reino, que lhe incumbiram uma invejável formação humanista. Daí se explica que no seu reinado florescessem por demais as artes e as letras, profanas e divinas.

 

Seu pai o confiou então aos cuidados do fidalgo Gonçalo de Figueiredo, seu aio, e na idade própria ao preceptorado de D. Diogo Ortiz de Vilhegas, bispo de Ceuta e grande cosmógrafo de D. João II, que o iniciou na cultura científica da Matemática, da Cosmografia e navegação astronómica, e teve por mestre dos clássicos greco-latinos o grande humanista Dr. Luís Teixeira, graduado em Itália.

 

De humor parco e retraído, pouco dado aos exercícios violentos e sem o prazer dos jogos de guerra e de caça – e também, por antagonismo de temperamentos, avesso ao gosto do fausto e ostentação de seu pai – a adolescência lhe decorreu apagada e tristonha, logo traumatizada moralmente aos dezasseis anos, quando, já oficialmente noivo da infanta D. Leonor, irmã de Carlos V, lha usurpou seu pai, viúvo e quase de cinquenta anos, casando com ela em terceiras núpcias.

 

Aclamado rei em Dezembro de 1521, com 19 anos, julga-se que teria pretendido casar com sua ex-noiva e formosa madrasta viúva, D. Leonor, mas não lho consentiu o imperador Carlos V, mandando-a regressar a Espanha e dando em troca ao novo rei de Portugal outra irmã sua, D. Catarina, com quem casou 4 anos depois e lhe foi preciosa esposa e conselheira, pelo carácter, bom senso e austeridade no difícil governo do reino. Não conseguindo D. Leonor, D. João III contentou-se com a irmã, D. Catarina de Áustria, com quem casou, talvez para se manter mais perto da amada, ou porque a nova rainha lha fizesse lembrar.

 

Contrariando os gostos faustosos do pai, as belas e fartas roupas não o seduziram. O vasto guarda-roupa de D. Manuel foi doado a muitas paróquias, servindo de paramentos para muitos clérigos. De seu pai e avô herdou o fervor religioso, impedindo a entrada no reino de qualquer manifestação da Reforma e reforçando os poderes do Tribunal do Santo Oficio. Chamou também ao reino os Jesuítas, que logo se empenharam na evangelização dos novos territórios. No reino vive-se a exaltação da fé.

 

Quer impor-se a religião aos cristãos-novos que abjurarem e combater os bruxos, os feiticeiros, a blasfémia e a bigamia. Só um tribunal tutelado pelo Papa tinha força para travar estas situações: O Tribunal da Inquisição. Em 23 de Maio de 1536, Paulo III autoriza a criação do Tribunal da Inquisição ou Santo Oficio. Compõem-no os Bispos de Coimbra, Lamego, Ceuta e outra pessoa escolhida pelo rei. Este Tribunal tinha como finalidade castigar os crimes contra a fé e os bons costumes. Enquanto funcionou viria a condenar à morte, pelo fogo, muitas centenas (senão milhares) de pessoas de todas as origens e credos. Desde a infância que o seu carácter sereno e sério imprimia respeito a todos os que com ele tratavam. Exemplo curioso, foi o facto de, aos três anos, a sua ama, Filipa de Abreu, se ajoelhar, para, respeitosamente, pedir licença para lhe tirar o seio, de que ainda fazia guloso uso. Ele, já bom entendedor, nunca mais o pediu. Aos doze anos caiu de uma varanda do Paço, e já ninguém dava nada por ele, tais eram os ferimentos.

 

A salvar-se, ficava louco, diziam. Mas não morreu, nem quando foi acometido de graves ataques de pleurisia, «no que lhe acudiu Deus na sua infinita misericórdia». Frei Luís de Sousa descreve assim o infortunado monarca: «de gentil presença, amável semblante mas temperado de vigor e virilidade, que criava respeito, e reverência em quem o via. De meã estatura, grande proporção de membros, muita graça nos olhos entre o verde e o azul.., em tudo era airoso, grave e composto».

 

Dos nove filhos que D. Catarina lhe deu, todos enfermiços por degenerescências de múltiplas consanguinidades, sucessivamente lhe foram morrendo em crianças, menos o príncipe D. João, único a vingar até aos dezasseis anos; e esse mesmo, já casado, finava-se-lhe de morte natural, em 1554, meses antes de lhe nascer o seu único filho, o Desejado D. Sebastião. D. Catarina de Áustria teve papel activo nos negócios do reino, participando nos conselhos de estado e exercendo influência sobre seu marido. Em 1557, após a morte de D. João III, tornou-se regente do reino e responsável pela educação do neto, D. Sebastião.

 

Abandonou a regência em 1562, passando Portugal a ser reinado pelo cardeal-rei D. Henrique até aos 14 anos de D. Sebastião. Continuou, porém, a intervir na educação do futuro rei. Recolheu-se ao Paço de Xabregas, morrendo meses antes da batalha de Alcácer Quibir. Foi fundadora de diversos mosteiros e igrejas. Em que sombrio desespero não viria a morrer, três anos depois, quem deixava apenas um neto de três anos, por seu único herdeiro legítimo dum imenso império pelo mundo em pedaços repartido e que precisamente atingira então o apogeu da sua extensão territorial! A sua actuação governativa tem merecido juízos variados. Considerado fanático por alguns, como Herculano, pela introdução do Santo Ofício e o apoio que concedeu à Companhia de Jesus, foi encarado por outros, como o visconde de Santarém e Gomes de Carvalho, como um hábil diplomata que teve sempre em vista salvaguardar a paz do Reino a fim de se consagrar à expansão ultramarina.

 

D. João III nasceu em Lisboa, a 6 de Junho de 1502 e faleceu na mesma cidade, a 11 de Junho de 1557, tendo sido sepultado no mosteiro de Belém. Varado de desgostos íntimos, fatigado, falecia e era enterrado em Lisboa sem pompas, nem elegias póstumas, ao contrário de seu pai o «Venturoso».

 

João de Barros, João de Castro e Damião de Góis foram homens do rei D. João III.

 

João de Barros (1496-1571)

 

João de Barros nasceu perto de Viseu, em 1496, de família fidalga. Por desejo de seu pai, expresso à hora da morte, entrou na idade do pião, segundo ele mesmo informa, para o serviço do futuro rei D. João III, mais novo 5 anos, como seu moço de guarda-roupa; e nenhum dos discípulos dos mestres que ali ensinavam membros da família real ou jovens fidalgos, mostrou melhor ter aproveitado as lições do que o futuro historiador das Décadas. D. João III, em 1522, fê-lo governador do castelo de S. Jorge da Mina, cargo que não se sabe se exerceu e, três anos depois, nomeou-o tesoureiro da Casa da Índia. Sua primeira obra de escritor consumado escreveu-a em sua quinta, perto de Pombal, onde se refugiara da peste que em 1590 grassou em Lisboa.

 

De novo na capital, transitou em 1533 para a situação de feitor da mesma Casa da Índia e nela se manteve durante 35 anos, toda a sua actividade de burocrata, escritor e homem de acção assim ficando ligado ao Ultramar. Homem de acção porque, na verdade, o empreendeu ser, quando D. João III dividiu o Brasil em Capitanias, de que a ele, a Aires da Cunha e a Fernão Álvares de Andrade confiou a que demarcava, ao sul, o Rio Grande e ao norte, o Maranhão, e se prolongava para o Interior até aos confins das terras auríferas do Peru. Um grandioso sonho fracassado no naufrágio que nos baixos do Maranhão destruiu a expedição magnífica, de 10 naus e 900 homens, entre os quais 2 filhos e o sócio Aires da Cunha. Escaparam muitos, que se fixaram na terra firme ou puderam em jangadas ser arrastados até ao Haíti, onde foram obrigados a fixar residência.

 

Com dificuldade, obteve o escritor recuperar os dois filhos, mas, à perda sofrida, quis a sua generosidade juntar o encargo de socorrer as famílias dos náufragos com as indemnizações que Aires da Cunha lhes tinha prometido. Este desastre explica as compensações que de D. Sebastião ele recebeu – uma tença de 40 000 reais, o privilégio de mandar vir da Índia mercadorias com isenção de direitos e, por sua morte, os benefícios que à viúva e aos filhos foram conferidos. Nestas preocupações encontrava João de Barros o alívio nos trabalhos literários, a que dedicava o tempo que o cargo lhe deixava livre – os feriados e as horas da noite roubadas ao descanso. Pela morte, em 1531, de seu tio Lourenço de Cáceres, fora-lhe confiada a redacção da Ásia e a ela aplicou esforço e talentos notáveis. Publicou três Décadas, deixando o material com que foi possível postumamente compor a quarta, mas com outros trabalhos de circunstância se ia refazendo das canseiras daquela obra monumental.

 

Além dos panegíricos históricos da infanta D. Maria e de D. João III, postumamente publicados por Manuel Severim de Faria, em 1655, escreveu em 1540 o Diálogo da Viciosa Vergonha e o Diálogo sobre preceitos morais. Para facilitar a conversão de moços malabares vindos para Portugal, fez-se didacta; não lhe devemos apenas uma Cartilha para aprender a ler, mas também a primeira Gramática da Língua Portuguesa. Toda a sua obra é realizada neste propósito de servir a Comunidade, em religião, moral e consciência nacional.

 

Quanto às Décadas, constituem um monumento literário sem precedentes nas nossas letras, e de sua singular categoria logo os estrangeiros mostraram a clara visão, traduzindo-as. Decorre a acção num imenso ambiente cujos traços físicos e morais o autor nos dá com fidelidade modelar e para obter a qual se não poupou a esforços. Toda a obra, pela matéria seleccionada, pelos feitos que louva, pelos que censura e pelos que exalta, é uma grande lição de dignidade nacional. Morreu em 1571, deixando a família, depois de toda uma vida ao serviço da sua terra e do rei D. João III.

 

A seguir: João de Castro

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