De uma tomada da Bastilha que se fez a uma outra que ainda está por fazer – 2. Textos de Claude Dilain e Tahar Ben Jelloun – Le Monde. Selecção, introdução e tradução por Júlio Marques Mota.

(Conclusão)

 

2. Da Europa da Não-Integração

Eu, Claude Dilain, presidente da Câmara municipal de Clichy-sous-Bois,  eu tenho vergonha “

LE MONDE | 10.04.10 |

 

Na segunda, 29 de Março de 2010, uma outra  semana banal em  Clichy-sous-Bois, cidade da qual sou o presidente da Câmara Municipal desde 1995. Com Xavier Lemoine, o presidente da câmara municipal de Montfermeil, a cidade vizinha, acolhemos uma delegação de deputados no âmbito “de uma missão de avaliação das políticas públicas nos bairros em dificuldade “. Diligência lógica: o nosso território, entre os mais pobres da França, é elegível a  todos os dispositivos instaurados desde há dezenas de anos. Encarna “a política da cidade”, uma das políticas públicas mais avaliadas, as mais postas em questão  também, sem dúvida porque não teve conseguiu, sozinha,  parar a guetização dos nossos bairros.

 

Neste dia, quero mostrar a   realidade ignorada de Clichy-sous-Bois, uma comuna encravada  a cerca de 15 Kmde Paris. Desejo também que as dezenas de pessoas que se investem  diariamente nas associações, nas escolas ou no imenso projecto de renovação urbana possam testemunhar esta mesma realidade. Por último, desejo fazer passar uma mensagem essencial: a política da cidade, se não for defendida  ao mais elevado ao nível do Estado por um primeiro ministro capaz de mobilizar todos os ministérios, não pode resolver os problemas dos subúrbios mais difíceis, qualquer que seja a vontade afirmada pelos ministros ou secretários de Estado sucessivos.


9 horas.  Mal os  deputados chegaram sou alertado por um eleito , que habita  no  bairro do Chêne-Pointu : um lugar  técnico,  ocupado  por jovens,  foi queimado à  “Mermoz”, um dos locais desta  imensa co-propriedade  degradada do centro da cidade. O fogo foi  bastante limitado dada a acção rápida  dos bombeiros mas os fumos tóxicos tiveram  tempo de progredir até ao 10e andar. Por milagre, não houve vítimas graves. Deixo os deputados e vou para este local. Descubro um hall devastado. Até ao último andar, a caixa das escadas está  preta de fuligem e, na obscuridade, os cabos eléctricos estão queimados. Subimos as  escadas com a luz dos nossos portáteis ou com a dos nossos isqueiros. Escusado será  dizer que não tomamos o elevador dado que está avariado  desde há meses, tal como a maior parte dos ascensores desta enorme propriedade de 1.500 alojamentos.


No 4e andar, visitamos o alojamento “de um comerciante de sono”. Há três famílias num  T-3  num estado que amedronta. Um das crianças está  hospitalizada  com a sua  mamã. As famílias, africanas, com crianças de tenra idade , pagam 420 € de aluguer por mês para um quarto de 10-15 m2. A família que ocupa a sala  paga 700 € por mês. O negócio do sono é rentável. O pai, em situação regular, trabalha na França desde há onze anos. Mostra-me algumas folhas soltas, escritas a mão, que lhe servem para  passar recibo do pagamento dos seus alugueres. Nenhuma destas famílias tem arrendamento. Compartilham a cozinha, uma sala de banho. Várias janelas estão quebradas, os muros estão pretos de humidade.


Caso isolado? Não. Este alojamento acaba de ser comprado por um novo comerciante  do sono depois de ter sido posto à  venda pelo administrador judicial desta co-propriedade  porque o proprietário precedente já não pagava as suas despesas. Na minha comuna, são centena de alojamentos que pertencem assim a estes comerciantes do sono comerciantes sobre a miséria. Em toda a impunidade, ou quase. Convido os deputados, acompanhados pelo sub-perfeito, a vir ver esta realidade. Reencontramo-nos por conseguinte a subir os andares  com lâmpadas de bolso. Nova visita ao  alojamento do 4e andar e encontro alucinante no patamar da escada , na escuridão mais completa, com numerosos vizinhos a descerem  ou a subirem , que vinham a  gritar uma  vez mais o seu desespero, face a esta chegada inesperada  de representantes da câmara municipal, da Assembleia nacional e do Estado…


Pais e mães de família que conhecemos bem na  Câmara Municipal pelo facto de as termos recebido já  muitas vezes  durante o inverno para resolver problemas recorrentes de aquecimento colectivo e dos  ascensores. Sei infelizmente que seremos levados a reexaminá-los mais  cedo ou mais tarde  porque estes problemas não foram  resolvidos até agora. Será necessário acrescentar agora a caixa das escadas  incendiada, que levará  provavelmente meses antes de ser renovada, a menos que os habitantes decidam eles  próprios pintá-la  pelos seus próprios meios.


Esta cena única, numa  caixa de escadas estreita, à luz das lâmpadas de bolso, toma aspectos  surrealistas. As pessoas chegam, cada vez sempre mais numerosas, de cima, de baixo … Nesta confusão , uma mulher lenta e silenciosamente  sobe as escadas , vai  dobrada em duas , sob o peso do carro das compras  cheio, que leva com um lenço na cabeça . Habita no 8e andar. Estamos a 15 Km de Paris, é possível?  Fora,  cerca de trinta jovens vieram  ver o presidente da Câmara  Municipal e estes “políticos” que não  “fazem nada”. Os deputados e os polícias que nos acompanham  não estão muito à vontade. É necessário dizer que na semana passada um dos seus colegas recebeu, aqui mesmo, uma bala  sobre a cabeça (dez pontos de sutura).


Os jovens comparam o Chêne Pointu com as favelas. Como eleito republicano, não posso resignar-me a esta comparação e evoco, na frente deles, “os planos de salvaguarda” assinados em Janeiro passado, que devem permitir-nos finalmente  financiar os trabalhos de emergência e as equipas de trabalhadores sociais encarregados de  acompanhar as famílias, das quais 70% – sim leu bem: 70% – vivem abaixo do limiar de pobreza. Estas explicações não convencem os jovens. Não me satisfazem também a mim,  realmente. Desde há anos, alerto os diferentes ministros competentes, os prefeitos, o conselho geral, o conselho regional, estive até no Eliseu  para falar da situação destas  co-propriedades a  que tenho chamado bairros de lata verticais, portas de entrada em Ile-de-France de numerosas famílias imigradas, cada vez mais precárias, que vêm habitar  em  Clichy-sous-Bois por incapacidade de  encontrar um alojamento social acessível noutro lugar.


 

Os habitantes também manifestam e gritam regularmente a sua cólera e a sua impotência na Câmara Municipal, na  subprefeitura. Sem sucesso. Os trabalhos prometidos desde há meses nunca  puderam começar por  falta de notificação de certas subvenções públicas, sempreem espera. Outroescândalo entre tantos outros. Mas sei sobretudo que os financiamentos obtidos são de qualquer modo largamente insuficientes para encontrar uma resposta global. Sei que deveremos inovar, comprarmos fortemente  os alojamentos dos comerciantes do sono e os dos proprietários que não podem mais fazer face aos encargos colectivos, mas também fazer evoluir as legislações sobre co-propriedade  degradadas. Sei que sem uma vontade política forte, sem um trabalho profundo e de estreita ligação com  de construção com os parceiros competentes e com os habitantes destas compropriedades, toda e qualquer intervenção será destinada ao malogro e permaneceremos assim num  impasse.


A cena que vos  descrevi não tem, infelizmente, nada excepcional e mereceu apenas uma curta notícia nas páginas locais do Parisiense. Do mesmo modo, o polícia  ferido na  semana passada no bairro Chêne Pointu  não mereceu sequer fazer parte das notícias do dia. Tais acontecimentos fazem parte do nosso dia a dia e continuam a serem  muito frequentes  na minha comuna. Do que é que se está à espera? De novos motins? Que “Cocotte-Minute” venha a explodir? Nas  últimas eleições regionais, a taxa de participação nas eleições foi muito fraca em Clichy. Mas como acusar os eleitores de Clichy de se  desinteressarem  das  eleições para instituições das quais se sentem-se profundamente excluídos, neste território abandonado da República? Espero que os deputados e os representantes do Estado, testemunhos deste dia comum na minha cidade, sejam  portadores desta realidade até ao mais elevado  nível do Estado. Porque hoje, eu, presidente da Câmara Municipal de Clichy-sous-Bois, tenho vergonha de ser o representante impotente da República francesa. “


PostScript: uma reunião sobre o “plano de salvaguarda” de Chêne- Pointu  devia ter lugar na sexta-feira, dia 9 de Abril. Foi anulada à  última hora, porque  a maior parte dos representantes institucionais não  puderam estar  disponíveis.

 

 

  1. Nesta Europa, a maioria dos cidadãos vivem  nos seus diversos subúrbios

 

Nos  subúrbios está-se mal, vive-se mal,

Tahar Ben Jelloun

LE MONDE | 10.04.10


A dor de viver dos e nos subúrbios não pode ser discreta. Transborda, enlameia e perturba. A dor, é o aborrecimento que cava e alarga  o sulco da desgraça em corpos que se sentem inúteis a não saberem  o que fazer da sua juventude, das suas ambições, dos seus sonhos. A promiscuidade , o insucesso  escolar, o desemprego, tudo  segrega este mal-estar que nos faz perder  e expulsa todos os  que sofrem  para as margens, para os territórios ocupados pelos profissionais da ilegalidade. Tráfegos e brutalidade.

 

Da mais elevada das solidões (os anos 1960) passou-se a uma forma de pobreza extrema  onde o corpo já não é mais mutilado mas é exposto à violência. Os primeiros  eram trabalhadores imigrados chegados a França sem a sua mulher, os outros são Franceses que estes mesmos imigrantes fizeram graças ao agrupamento familiar (1974).


Os imigrantes não se exasperam. Vivem ou sobrevivem assistindo ao naufrágio do seu destino. Fizeram crianças para estarem menos sós , para  serem  como os outros e seguidamente deram-se conta de  que tudo lhes escapa. Não dominam nada, nem o tempo que passa nem o modo de vida dos seus filhos. Sentem-se largados, deixados,  esquecidos à beira da estrada . Alguns adaptam-se e estão mesmo felizes. Outros olham para a vida desenrolar-se com a esperança que esta venha a ser-lhes clemente.


Quando se lhes diz  que um dos seus filhos morreu depois de uma zaragata ou depois de um acto de delinquência, continuam a estar  aturdidos, com o céu a cair-lhes  sobre a cabeça e a não compreenderem porque é  foram escolhidos pela desgraça. Quando as suas cidades se tornam  o teatro de ajustamento  de contas entre bandos rivais ou entre estes bandos e a polícia, quando os autocarros são  incendiados  e que a polícia desmonta uma rede de traficantes de droga, os pais, os que olham pela janela, vêem-se  impotentes, sem voz, sem recursos. Talvez lhes  valesse a pena  colocarem-se-lhes a seguinte  questão: “A viagem valeu  a pena?” Com todas as contas feitas, e sem ter a ingenuidade de querer refazer a história, a pergunta é cruel mas é legítima. Tudo isto, para isto! E, sobretudo, deixar de continuar confundir os imigrantes, os que fizeram a viagem, com os seus  filhos , nascidos sobre o solo francês e que são de nacionalidade francesa. São os primeiros que se sentem mal  e que não sabem o que fazer do  tempo que os estorvam. Evidentemente também há quem se saia bem apesar dos obstáculos. Quando assim é, afastam-se então  dos subúrbios. Fala-se a   seu respeito de integração. É um erro. Integra-se o estrangeiro, não o indígena, o autóctone. Seria necessário falar “de promoção”, “de reconhecimento”.


O Outono quente de 2005 foi um enorme  alerta. Milhares de carros  (muitos deles a serem  pertença de imigrantes) incendiados. Era a época “Krcher” e das promessas de limpeza a seco. Era uma chamada de  socorro de uma geração de franceses que a França tratava como bastardos, como crianças nascidas fora de casamento. Hoje, tornaram-se, de acordo com os termos do ministro do interior(do governo Sarkozy), “crápulas”. É certo que traficantes de droga não serão boas pessoas, algumas delas a terem-se  juntado  ao crime organizado. Mas porque não levantar  então  a questão de saber porque é que a cidade de  Tremblay por exemplo se tornou a referência em termos  de traficantes e de  bandidos? Como é que se fica  delinquente dado que, até agora, ninguém  nasce com genes de delinquente? A repressão sacia um desejo de resposta mas não resolve  o fundo do problema. Pode-se “intensificar operações  de fortes controles  ” como sugere  o presidente da República, Nicolas Sarkozy. Mas isto  não resolverá o problema de fundo. Ora, os subúrbios, como foram  concebidos e  seguidamente negligenciados para não dizer mesmo abandonados , tornaram-se um lugar patogénico. Não importa qual é a população aí  instalada nestes edifícios que esta produziria a delinquência e a violência. Os franceses de origem imigrante  não estão condenados a serem caracterizados por  atraso escolar, por  provocar as pessoas na rua, por roubar, por vender  droga e por acabarem os seus dias na prisão. São o produto de um mal-estar  mantido pela indiferença, pela pobreza, pelos acidentes da vida. É um corpo doente e ninguém, nem a direita nem a esquerda, se preocupou realmente com o seu destino. Todos deixaram a situação apodrecer. Os que se ocuparam dos subúrbios e em certos casos tiveram êxito na sua missão, são os  islamistas. Dê-se  um exemplo próximo de nós: foi da Bélgica que tinham  partido os dois estudantes tunisinos que assassinaram o comandante Massoud a 9 de Setembro de 2001 na província de Takha.


Todos os sinos de alarme foram tocados pelas associações, pelas  famílias, pelos  militantes, pelos sociólogos, mas não há nada a fazer, ninguém quis  ouvir as mensagens de alerta.


Outros tumultos virão a  aparecer . Tomarão formas diferentes, provocarão perturbações que terminarão por juntar  várias cidades. Até agora, os jovens em cólera descarregaram-se sobre os bens materiais, não mataram ninguém. Mas espalham o medo entre os cidadãos. Mais ninguém não quer ser o seu vizinho, e isto compreende-se. É o caso de famílias imigradas que, como os franceses, já não podem mais viver neste inferno. Então o Estado já não pode esperar mais; “os punhos na mesa ” mesmo se são espectaculares e necessários não fazem uma política. Ora os subúrbios tem necessidade de uma política de recuperação  quer sobre  o curto quer sobre  o longo prazo. Para  isso, os estudos e os projectos abundam. É suficiente considerá-los com a firme vontade de tratar um grande corpo doente. Se assim não for , sabe-se lá o que se irá passar?.


Escritor e poeta , Tahar Ben Jelloun é membro da Academia  Goncourt desde  2008. Recebeu o prémio  Goncourt pela  obra   “La Nuit sacrée” (Points Seuil) em  1987. Publicou   “Le racisme expliqué à ma fille” (Seuil, 1997). Último livro publicado  “Au pays“, Gallimard (2009).

 

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