Democracia e Fascismo: uma análise sobre os impasses, os compromissos, as cumplicidades da União Europeia XII PARTE. Selecção e tradução de Júlio Marques Mota.

Nota sobre o texto de Jürgen Habermas: “Europa em Schreckstarre”

 

 

Jean-Marc Ferry, Professor na Universidade Livre de Bruxelas

 

 

Será conveniente romper com as premissas sob as quais parece estar a visar-se a inclusão de um “governo económico” na zona euro, com a intenção de ” transmitir e transpor as exigências dos mercados para os orçamentos nacionais” (Jürgen Habermas).

 

Desejo primeiramente e de forma breve comentar em dez pontos o texto de Jürgen Habermas e com isso exprimir também a minha adesão ao referido texto. Vou descrever, em seguida, três considerações relativas à organização dos poderes públicos da União Europeia (UE), ao projecto de um governo económico da zona euro, e, enfim, aos requisitos substanciais e processuais de uma Constituição para a Europa.

 

Uma leitura selectiva do diagnóstico de Jürgen Habermas sobre a actual crise da União Europeia.

 

1. A globalização faz aparecer o risco de disjunção entre o pólo do que é Comum (a soberania popular) e o polo do que é Universal (direitos fundamentais), de que a tensão tem sido gerida pelos Estados que a União Europeia tem por vocação proteger.

 

Em vez de suprimir a mediação política dos Estados nacionais no seu seio, a União Europeia tem por missão proteger a coerência que estes Estados, desde que estejam em conformidade com o princípio de um Estado de direito democrático, tem podido realizar entre a vontade colectiva e os direitos individuais.

 

 

2. A civilização das relações intracomunitárias entre os Estados-Membros da União promove o surgimento de um poder europeu que poderia contribuir para a domesticação do meta-poder económico e financeiro.

 

Esta perspectiva só se tornará credível, na minha opinião, se o poder europeu encontrar a sua base numa sociedade irrigada de forma democrática através de uma interligação dos parlamentos local, regional, nacional, horizontalmente entre eles e verticalmente em ambas as direcções com o Parlamento Europeu

 

3 ” A ” soberania originalmente partilhada” não tem o mesmo significado na União Europeia e num Estado federal.

 

Sob a expressão ” soberania partilhada ” tem-se o costume de se entender uma co-soberania de Estados-Membros. No entanto, Jürgen Habermas coloca a tónica sobre uma outra partilha de origem nativa: entre o Estado e os cidadãos da União que se “partilhariam” eles próprios em dois polos distintos: constituintes do seu Estado e constituintes da União Europeia . É isto que justifica que as soberanias estatais não sejam reabsorvidas num Estado Supranacional.

 

4. A União Europeia é uma comunidade política “desestatizada”. Ela é dotada de personalidade jurídica, mas não tem ela própria carácter estatal.

 

Não obstante a transferência de soberania para funções de nível supranacional, a integração europeia pode-se considerar como uma Agência assente num esquema horizontal na perspectiva duma solidariedade transnacional. Nesta medida a integração política da UE é pós-estatal. A partir daí tem-se uma perspectiva constitucional original, que é cosmopolita no seu princípio e, portanto, não convida a olhar para a União como “uma espécie de República Federal da Alemanha incompleta” (Jürgen Habermas).

 

5 Enquanto que participantes no e do processo constituinte, as pessoas não são supostas transferirem a sua soberania para órgãos supranacionais mas sim, e sobretudo, são supostas vigiar para que sejam salvaguardadas as conquistas democráticas.

  

Esta “reservas de soberania” sugere uma diferenciação conceptual entre “soberania negativa” e “soberania positiva”. Os Estados-Membros individualmente mantêm uma soberania “negativa” (direito de veto, direito de saída), uma vez que eles só  podem recuperar “a sua soberania positiva” (ou seja, a sua capacidade de agir) colectivamente no quadro da  (na UE).

 

6. É consistente com o modelo de uma soberania originalmente partilhada pelos cidadãos da União e pelos povos da Europa, que a igualdade garantida pelos estatutos dos dois níveis do direito se venha a marcar por e num equilíbrio de poderes entre o Parlamento e o Conselho.

 

Neste caso, o Parlamento Europeu deverá provavelmente ser reformado quanto ao seu modo de eleição, para que os deputados sejam verdadeiros representantes em vez de beneficiários de uma “partidocracia”. No entanto, ao Conselho deve ser claramente atribuído o estatuto de “Câmara dos Estados”, que não é a via que se seguiu até hoje? Do ponto de vista de uma Constituição Parlamentar, só a Comissão teria vocação a tornar-se um governo da União. Mas isso exigiria que o seu Presidente seja investido por um amplo colégio eleitoral: pode-se imaginar que cada um dos vinte e sete eleja um candidato no Congresso, que o Parlamento Europeu retenha, por exemplo, dez personalidades entre as 27 “candidatos” que finalmente o Conselho proceda à  eleição de um Presidente da Comissão entre os dez escolhidos pelo Parlamento. Assim, o Presidente da Comissão desfrutaria de legitimidade política suficiente para garantir a sua autoridade – não a sua soberania!- enquanto coordenador das políticas públicas dos Estados-Membros.

 

7. Os processos de aprendizagem que vão no sentido de uma solidariedade alargada ao nível do continente podem ser estimulados pelo desafio que representa hoje a globalização, apelando para uma convergência política da economia, o processo de catch-up. Este desafio actual assumiria o papel do poderoso desafio fundador do pós-guerra: o da paz na Europa.

 

Certamente, mas enquanto projecto credível o projecto europeu deverá ser assumido como uma resposta política “pro-activa” face à  subversão tendencial dos Estados que é feita pelos mercados, deverá ser assumido pela dominante do político  sobre o  económico, enquanto que, no momento, o significado da construção da Europa, tal como ele é sentido pela opinião pública nacional, este projecto seria sobretudo o de os Estados se adaptarem  aos imperativos capitalistas de governança global neoliberal?

 

(Continua)

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