LIÇÕES DE ETNOPSICOLOGIA DA INFÂNCIA – 29 – por Raúl Iturra

 

(Continuação)

 

O interessante é saber porque é que ao falar de resiliência, o autor fala dos “vilões pequenos patos”. Penso que a ideia não é difícil. Primeiro, vilões por serem capazes de se desenvolver a partir do “agarrar-se” a uma feliz memória pessoal ou da sua cultura. Pequenos patos, porque são capazes de nadar apesar de essa corrente ser tão forte dentro da sua cultura ou processo de interacção social. Hoje em dia tem vindo a público, factos de abuso de menores que, já faz tempo acontecem, mas apenas hoje se defende e se fala, do colo que a sociedade dá aos mais novos por se terem envolvido adultos que organizam o poder de uma nação. É evidente que nem todas as culturas têm este problema, bem ao contrário: muito embora o incesto seja um tabu universal, a pedofilia é definida de forma diferente nas diversas culturas, algumas até a praticam como parte do crescimento dos mais novos. Mas, este conceito é para outro capítulo. O que me interessa ver neste capítulo, é a prevenção que os sabidos homens da religião têm organizado para defender les petits canards de actividades que ou não são rituais, ou, se são rituais, saiam da estrutura organizada, como processo criminoso para novos e velhos, como tenho referido noutros textos. O capital, a nossa relação social, deixa-nos com a ilusão de sermos pais para passar a guardiães dos nossos pequenos e de vigiar os adultos que andam por perto.

 

De facto um pequeno parágrafo do capítulo II do Catecismo Católico Romano de 1992, como o de Lutero de 1529, vai directo ao ponto do que hoje em dia, apenas, denominamos traumatismo. É esse traumatismo e como ele é causado, o que diz respeito ao final desta primeira parte deste tão difícil texto, mas tão necessário pela sua actualidade e incompreensão cultural.

 

Esse pequeno parágrafo parece referir o segundo conceito deste número, a culpa, tal como acontece com o Catecismo de Lutero[1], com o Alcorão[2] e o Torah[3] ou Dez Mandamentos e os Comentários Rabínicos de los Diez Mandamientos, textos que orientam o comportamento do povo judeu. Todos eles referem o mesmo tipo de comportamento, em referência à culpa, denominada pecado. Penso que devia começar pela última frase do parágrafo referido.

 

O parágrafo referido acaba com uma frase que diz: “Portanto, a caridade é o pleno cumprimento da lei” (Epístola de Paulo de Tarso aos Romanos, 13, 8-10)[4]. O que está a querer dizer Paulo de Tarso aos Romanos ao falar de que é obrigação de todo cidadão cumprir a lei, e que cumprir a lei é caridade? Primeiro, está a referirse à subordinação de todo ser humano aos poderes políticos: “Todos hábeis de estar sometidos a las autoridades superiores, que no hay autoridad sino por Dios, y las que hay, por Dios han sido ordenadas”[5]. Como cidadão romano, está a escrever aos seus compatriotas sobre um tema que era desconhecido, como hoje em dia acontece muito, a caridade. Este conceito, extremamente usado nos textos que fundamentam a nossa cultura, tem um significado não definido, mas muito adjectivado, na época em que se procura a igualdade entre os seres humanos. Não podemos esquecer que no começo deste texto, referimos a hierarquia entre os romanos: cidadãos, submetidos ou sujeitos à autoridade do Pater Familias, escravos, povos colonizados, é dizer, pessoas com manu, etc. A palavra caridade, ao longo do tempo, faz parte da cultura ou costumes dos povos que hoje em dia conhecemos e podemos procurar uma definição ética: Caridade. […] S.f. 1. (Ética) No vocabulário cristão, o amor que move a vontade à busca efectiva do bem de outrem […]. 2. Benevolência, complacência, compaixão. 3. Beneficência, benefício, esmola, definição retirada de um texto do ano 2000[6]. Das três alternativas o texto comentado está, a meu ver, a usar o primeiro sentido. Muito embora ao longo dos textos denominados sagrados e que são ensinados às crianças desde muito cedo na sua vida – desde o Século III da nossa era até o dia de hoje, todo ser humano mais novo aprende primeiro as formas de interacção, que na nossa legislação actual denominamos bem comum ou garantia dos bens materiais em igualdade para todos, o princípio representado no artigo 9º da Constituição da República Portuguesa[7]e ao longo do texto constitucional, especialmente no Título III, sobre Direitos e deveres económicos, sociais e culturais, artigos58 a 79.

 

 


A nossa constituição assegura a vida dos mais novos, especialmente o artigo 69, que fala da Infância[8]:

 

Artigo 69.º

(Infância)

1. As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.

2. O Estado assegura especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privado de um ambiente familiar normal.

3. É proibido, nos termos da lei, o trabalho de menores em idade escolar.

 

Por outras palavras, a antiga ideia de caridade, foi redefinida mais tarde como bem-estar, bem comum, igualdade, soberania, divisão de poderes, protecção à infância, à família e à juventude, especialmente à educação. Mas, a ideia é herdada do parágrafo que comecei a comentar para poder definir a lei como a procura do bem de outrem. A diferença está entre as ideias do Catecismo, parte da nossa cultura, e a Constituição, em que o texto da Igreja Romana começa por definir “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”, no Capítulo II do texto citado; em trocas, a nossa Constituição, desde o primeiro Ensaio Constitucional de 1974 até hoje, começa por definir os seus Princípios fundamentais, da maneira seguinte:

 

Artigo 1.º

(República Portuguesa)

Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

 

Artigo 2.º

(Estado de direito democrático)

A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.

 

Artigo 3.º

(Soberania e legalidade)

1. A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.

2. O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática.

3. A validade das leis e dos demais actos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição.

 

Estas ideias que quis expor e que devem, de certeza ser por todos conhecidas como o acerbo cultural da sociedade Portuguesa que orienta o comportamento de adultos e crianças e, especialmente, regulamenta a relação entre esses adultos e a sua descendência, como está prescrito no artigo 67 da mesma. Garantia que é possível por existir uma carta ou lei fundamental que entrega o poder de governar a massa do povo ao próprio povo, como se pode ler mais acima no Nº1 do Primeiro Artigo, ao falarse de Soberania. Mas, o que é a soberania, se não a capacidade de definir, dentro dos ideias da nacionalidade lusa no nosso caso, as ideias que dinamizam a interacção social entre indivíduos, entre estes e os bens reprodutivos da República e de ter a capacidade de retirar de mãos individuais riquezas que servem para o bem-estar de todo o povo e não apenas para os seus possuidores? A soberania é o conceito que define a capacidade de auto determinar o futuro do país e o que acontece dentro das fronteiras. Conceito nascido já na época da Revolução Francesa, época na qual o povo, as terras, as actividades pertenciam apenas a uma família que não governava, mas reinava dentro do Estado. Época que em Portugal acabou muito recentemente, no tempo do derrube de uma ditadura que, de alguma maneira, substituiu a Monarquia Lusa, constitucional mas proprietária do território na prática, quer Continental, quer das Colónias. Soberano é quem tem a capacidade de mandar. Para mandar, é preciso uma legislação a ser respeitada após ter sido votada por todos os seres humanos nacionais capazes de decidir, pela sua idade. Donde, qual a causa da culpa que organiza a ilusão de sermos pais, de que trato? Se o Estado é Soberano, se a soberania representa a igualdade e o poder de optar de cada indivíduo, porquê essa procura de culpa na relação entre adulto e criança? Ao que parece, a lei fundamental é um conjunto de palavras eruditas que permite o que hoje denominamos violência doméstica. Violência que existe na base de uma relação social baseada na necessidade de lucrar para viver com uma certa dignidade e conforme o desenvolvimento tecnológico existente na maior parte dos países que partilham connosco o incremento da produção interna. Até parece real ainda, a lei que Paulo de Tarso tenta fazer respeitar no parágrafo que serve de base a esta parte do debate. É possível apreciar que a lei é produto de uma erudição de mandatários descendentes de hierarquias antigas e que estão na vida política há muitos anos, tendo passado por várias formas de Governo dentro de Portugal e na Europa; essa lei, parte do património cultural de forma etnográfica, como referi mais acima, precisa, na carta fundamental, distinguir os direitos de seres humanos diferentes devido a um conceito que referi antes e noutros textos: a mais-valia apropriada pelo denominado Direito de Propriedade, garantido na Carta Fundamental da República. Este Carta distingue entre operariado, salário, greves, política industrial e, necessariamente, deve acudir às crianças e aos mais novos ou jovens.

 

Artigo 67.º

(Família)

1. A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.

2. Incumbe, designadamente, ao Estado para protecção da família:

a) Promover a independência social e económica dos agregados familiares;

b) Promover a criação e garantir o acesso a uma rede nacional de creches e de outros equipamentos sociais de apoio à família, bem como uma política de terceira idade;

c) Cooperar com os pais na educação dos filhos;

d) Garantir, no respeito da liberdade individual, o direito ao planeamento familiar, promovendo a informação e o acesso aos métodos e aos meios que o assegurem, e organizar as estruturas jurídicas e técnicas que permitam o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes;

e) Regulamentar a procriação assistida, em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana;

f) Regular os impostos e os benefícios sociais, de harmonia com os encargos familiares;

g) Definir, ouvidas as associações representativas das famílias, e executar uma política de família com carácter global e integrado;

h) Promover, através da concertação das várias políticas sectoriais, a conciliação da actividade profissional com a vida familiar.

Seria este artigo útil dentro de uma república igualitária, de acesso facilitado às riquezas? Ou será como diz Françoise Dolto no seu texto de 1977: “Oui, nous avons besoin de plaisir mais ce n’est pas le plaisir, c’est la souffrance que nous façonne…l’enfant quitte le sein que lui donne sa mère, pour découvrir une sourire, sa présence, l’amour de celle qui l’entoure… »[9]

(Continua)


[1] Lutero, Martin, 1529: Catechism, Concórdia Publishing House,St Louis,USA. Website com texto

http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Martin+Lutero+Catechism&btnG=Pesquisar&meta= texto: http://www.luther.de/en/

[2] Alcorão, Muhammad, (570?) (632), 1989: Alcorão, Europa-América, Lisboa. Website com comentários

http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Mohamed+Alcor%C3%A3o+on+line&btnG=Pesquisar&meta=

[3] Tora, Livro denominado Antigo Testamento ou Bíblia, de data duvidosa de origem. No entanto, o Tora parece ser c. 1000, antes da nossa era; 1996: Editorial Desclée de Brouwer, Bilbao. Website com comentários. Texto: http://www.jr.co.il/hotsites/j-torah.htm

http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Torah&btnG=Pesquisar&meta=

[4] Catecismo da Igreja Católica, página 471, artigo 2196. Ver nota 17 para Website e referências.

[5] Paulo de Tarso, Carta aos Romanos o Epístola, C. 13, versículos 1 a 3. A versão que uso é Castelhana, Bac, 1956, Madrid. Também http://www.google.pt/search?q=Paulo+de+Tarso+Ep%C3%ADstola+aos+Romanos&ie=UTF-8&hl=pt-PT&btnG=Pesquisa+Google&meta=

[6] Seno Chibeni, Sílvio, 2000: “Caridade e amor” em Revista Mundo Espírita, São Paulo. Website com texto http://www.geocities.com/athens/academy/8482/caridade.html . Para mais debate ver

http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=+Defini%C3%A7%C3%A3o+Caridade&btnG=Pesquisar&meta=

[7] Constituição da República Portuguesa, 2001, Revista em 2004, edição organizada por José Magalhães, Editorial Notícias, Lisboa. Website http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Constitui%C3%A7%C3%A3o+da+Rep%C3%BAblica+Portuguesa+2001&btnG=Pesquisar&meta= texto integral, com texto da revisão constitucional de 2004 http://www.cne.pt/_x.cfm?sec=06010000

[9] Dolto, Françoise, 1977: L’Évangile au risque de la psychanalyse, Volume II, Éditions de Seuil. Resposta de Dolto a um comentário de Gérard Sévérin, que conduz a entrevista : « ce jeune prodige lui, est descendu à ses propres “enfers”», páginas 66 e seguintes. Website apenas para bibliografia, recensões e comentários. http://www.google.pt/search?q=Fran%C3%A7oise+Dolto+G%C3%A9rard+S%C3%A9v%C3%A9rin+L%27%C3%89vangile+au+risque+de+la+psychanalyse&ie=UTF-8&hl=pt-PT&btnG=Pesquisa+Google&meta=

 

 

 

publicado por João Machado às 14:00
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