A CANETA MÁGICA – Samarcanda – por Carlos Loures

Caneta mágica? Todas as canetas (ou teclados) o são, pois ao juntarem palavras a magia às vezes produz-se – uns traços convencionais transformam-se em ideias. Pelo poder da palavra, como diria Paul Éluard, somos transportados ao passado, ao futuro, porque a nossa memória nos leva onde quisermos.  Há muitos anos que tenho o hábito de me fazer acompanhar de uns cadernos onde tomo os meus apontamentos – cadernos de capa preta em formato A 4 ou A3 – verdadeiros portáteis avant la lettre que me permitem registar ideias, fixar momentos… – pequenos apontamentos, às vezes uma palavra ou duas, que encontro pelos meus cadernos de capa preta, um portátil avant la lettre que me acompanha há mais de quatro décadas.  Palavras que encontro nos cadernos, outras que encontro na memória, serão a fonte desta caneta mágica.

 

 

 

 

Samarcanda é um lugar mítico, uma cidade mágica – Eça de Queirós referiu-a por diversas vezes como paradigma do fascínio oriental. Ao dizermos a palavra, logo nos ocorre a poesia de Omar Khayyam, que ali viveu, teve o seu negócio e escreveu boa parte da sua obra – cúpulas brilhando ao sol poente, minaretes de onde os muezins chamam os fiéis… Porém, se consultamos a Britanicca ou a qualquer outra enciclopédia, lá se vai a magia, surge-nos uma Samarcanda diferente – objectivada, quantificada, tipo – «Samarcanda significa “Forte de Pedra” ou “Cidade de Pedra”, (em uzbeque: Samarqand; em tadjique: Самарқанд; em persa: سمرقند …). Com mais de 500 mil habitantes é a segunda maior cidade do Uzbequistão, situando-se num fértil vale irrigado.» Quero eu bem saber como se diz Samarcanda em uzbeque, o significado do nome e se o vale onde se situa é irrigado…

 

Para mim, Samarcanda fica nessa Pérsia que já não existe, pois a Pérsia que existe está em risco de desaparecer sob um bombardeamento americano. Mas não faço ideias de lá ir e quero continuar a evocá-la como a imagino. Se quisesse lá ir, teria de saber que estradas tomar, de que aviões ou comboios teria de comprar bilhete, de que vistos diplomáticos teria de me munir…

 

Se em vez de Samarcanda, dizemos Democracia, duas uma – ou nos referimos um conceito mítico ou a um objectivo concreto. Ou queremos atingir a Democracia ou queremos continuar a sonhá-la como um local onde não iremos nunca. Fizemos aqui um debate sobre a Democracia e o rumo que queremos que assuma – Sabemos que o problema da Democracia não se resolve com debates – claro que não. Mas debates é a única coisa que um blogue pode fazer. Por outro lado, partidos e sindicatos revelam-se impotentes para construir uma alternativa à política de direita – e porquê? Porque enquanto quem está no poder se guia por interesses económicos e é muito fácil chegar a acordo quando se trata de dinheiro – podem dizê-lo de maneiras diferentes, mas todos querem o mesmo. Nós, os que nos guiamos por princípios, temos mais dificuldade em nos entendermos, pois os nossos princípios não são coincidentes. Como se quiséssemos ir mesmo a Samarcanda, mas cada um tivesse um mapa diferente.

 

Antes da Revolução de 1974, falávamos da Liberdade e da Democracia. Éramos gente que pensava de maneiras diferentes e a única coisa que queríamos era que a ditadura caísse. Para muitos dos que integravam comissões democráticas, a Democracia era isto em que estamos. Estão satisfeitos e nem entendem por que motivo há quem não o esteja. Chegaram à sua Samarcanda. Mas alguns de nós entendem que não saímos do sítio onde estávamos – a ditadura caiu e podemos dizer o que queremos, associarmo-nos, manifestarmo-nos. Mas… 

 

O poder, o verdadeiro poder, está nas mãos dos grandes grupos económicos, tal como durante o período da ditadura. Agora esta situação é sancionada pelo voto livre dos cidadãos ao elegerem os seus representantes no Parlamento e ao escolherem o chefe de Estado. Quanto a mim, é uma diferença pouco mais do que formal. Há liberdade uma total de expressão, mas a televisão e o marketing político das grandes máquinas partidárias do chamado «bloco central» se encarregam, através de insidiosos opinion makers, de unificar o pensamento. E a liberdade total que temos para dizer o que quisermos, desvalorizou a palavra, despiu-a da força que tinha quando sabíamos que podíamos ter de pagar muito caro cada palavra que disséssemos ou escrevêssemos.

 

A Isabel do Carmo (talvez já nem ela se lembre) disse num comício em 1974 ou 75 que, sim tínhamos Liberdade, mas «a liberdade não se come». É o mesmo que nos diz agora o Josep Vidal com a sua metáfora do terreno baldio – derrubámos a Ditadura (foram os militares, mas a acção permanente dos antifascistas, corroeu o sistema e deixou-o à mercê de uma acção militar que quase decorreu pacificamente). O edifício da ditadura foi derrubado e no seu lugar ficou um terreno baldio onde reinam as ratazanas. Construir um novo edifício foi coisa que não fizemos e hoje temos um fascismo de rosto menos agressivo, mas que nos explora e domina como o anterior. As famílias que mandam, são as mesmas. O que era importante mudar para que houvesse Democracia, não mudou.

 

Na verdade os debates não resolvem tão magna questão. Mas servem para definirmos que tipo de Democracia gostávamos de atingir. Como se cada um descrevesse a sua Samarcanda e o caminho que pensa tomar para lá ir. Ou então, se for o caso, se apenas sonha com a cidade que Eça ou Amin Maalouf tomaram como tema literário, mas sem tencionar lá ir – pois a realidade pode destruir o sonho. Quanto a Samarcanda, é essa a minha postura de turista onírico – quanto à Democracia, preferia tudo muito bem explicado. Gostava mesmo de lá chegar.

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