Os ministros das Finanças dos países da Zona Euro lá estiveram mais uma vez reunidos para, e a expressão é deles, “garantir a confiança dos mercados”… à custa dos cidadãos, se me permitem o acrescento é meu, porque de facto é disso que se trata.
Passando por cima dos pormenores técnicos, e até das questiúnculas políticas, que se resumem à birra alemã de não contribuir com um marco que seja, perdão, com um euro que seja, para o fundo de estabilidade que deverá servir para acudir aos países afogados nos problemas das suas dívidas soberanas, vamos à essência da questão.
Mesmo assim, e não obstante a teimosia alemã, foi possível juntar um bilião de euros, mil vezes mil milhões de euros, uma quantia que multiplica por 15 a “ajuda” enviada para Portugal e por quatro a soma das “ajudas” enviadas para Atenas, à custa sabemos bem de quê. Esse fundo, porém, não é para todos. Os incumpridores do novo pacto de austeridade, também chamado pacto fiscal, que limita a 0,5 por cento o défice dos orçamentos de Estado, não só não terão acesso como ainda serão obrigados a pagar multas para o reabastecer nos valores que venham a ser estipulados pelo Tribunal Europeu de Justiça.
Aqui está a grande encruzilhada da União Europeia. Ou a Europa dos mercados, como tem vindo a ser cultivada, à custa dos sacrifícios dos cidadãos; ou a Europa dos cidadãos, sujeitando-se os mercados a dançar a música que estes tocam, porque é disso que trata a democracia.
Os governos da Europa cumprem, como se sabe até à exaustão, a vontade dos mercados. Isto é, são eleitos pelos cidadãos para servir interesses contrários aos dos cidadãos, à custa dos cidadãos: é a democracia ao contrário – e democracia ao contrário é ditadura, dos mercados, está bem de ver. A questão que se coloca é: até quando os cidadãos vão aguentar pagar impostos para que lhes cortem salários, retirem direitos, os reduzam a autómatos, escravos de novo tipo?
A greve geral em Espanha da última quinta-feira foi o primeiro grande sinal de que os povos da Europa começam a dizer basta. O país parou. Os espanhóis não aceitam uma “reforma laboral” que os ameaça de despedimentos a preços de saldo bastando para isso, por exemplo, que os patrões digam que os resultados dos últimos três meses não foram os esperados, servindo para tal não uma auditoria mas o testemunho, impoluto, é claro, de um banco.
O cenário do futuro próximo na Europa começa a estar definido. Os governos, fazendo orelhas moucas à contestação, seguem pelo caminho dos mercados e da criação do que pode chamar-se o Estado zero: o Estado que não pode investir, não pode criar emprego, não tem meios para garantir serviços públicos decentes, saúde como os cidadãos merecem, ensino digno das pessoas. O Estado zero não será mais do que um aparelho que tira aos cidadãos, os pobres, para dar aos ricos, uma espécie de entreposto de recolha de impostos para distribuir por entidades privadas a quem os cidadãos vão acabar por ter de pagar os serviços que o Estado não lhes presta. Chama-se a isto uma dupla tributação, sem qualquer contrapartida em direitos, acabando mesmo com os que restam. Para isso privatiza-se tudo a preços de ocasião, desde as polícias até aos mais elementares recursos naturais, como a água, esvazia-se de poder e acção tudo aquilo que decorre das instituições que os cidadãos elegem. Não tenhamos dúvidas, não haja qualquer ilusão, este é o caminho que os governos tutelados pelo sistema global neoliberal, o dos especuladores, da economia de casino, estão dispostos a percorrer, sem limites, metro após metro. Até que os façam parar.
Claro que nada disto tem a ver com democracia.
Até quando os cidadãos aceitarão continuar a regredir na sua condição para sistemas muito mais próprios de tempos medievais do que, como era suposto, dos que deviam vigorar no século XXI após conquistas que custaram tantas vidas e tanto sangue ao longo do século XX?
Sinceramente não encontro outra resposta a esta pergunta que não seja: só os cidadãos podem travar os buldozzers neoliberais. Não há alternativa: ou os cidadãos se assumem de parte inteira, se dão ao respeito; ou se submetem a uma escravatura, a do lucro máximo, que não lhes reconhecerá qualquer réstia de essência humana.
Totalmente de acordo, José Goulão. Excelente texto, o seu.A insensibilidade dos neoliberais na avaliação dos problemas humanos que as suas soluções implicam tem tudo a ver com as concepções medievais sobre os direitos dos senhores. Milton Friedman , de que Vítor Gaspar se diz discípulo e admirador, também «solucionou» os problemas económicos no Chile de Pinochet . O neoliberalismo é, como diz, um bulldozer que leva tudo à frente. No fundo, apoiado noutros teóricos e com o aparato repressivo que os tempos permitiam, foi o que Salazar fez quando veio de Coimbra «arrumar a casa». Esse corporativismo e esta «democracia», tal como o feudalismo, têm um objectivo central – proteger os interesses dos barões. E agora até nos fazem cúmplices – os governos emanam da vontade popular expressa nas urnas – ou seja, podemos escolher entre a peste e a lepra – ou entre um mentiroso e um idiota… Quem disse que as coisas não mudam?