“Concerto do Quarteto Casals em Veneza”
Sendo a cidade na qual predomina o valor do silêncio, Veneza é naturalmente uma como capital internacional da música. Para quem vive em Veneza, cada concerto começa com o espaço exterior vivido e percorrido para chegar-se à sede do espetáculo musical escolhido. Caminhando pelas ruas, superando as muitas pontes do caminho pessoal, o expectador de um concerto já se sente nele integrado antes que o mesmo comece diretamente. Chega-se ao teatro, a uma igreja, à sede musical escolhida e, sentando-se no lugar escolhido e envolvido pela musicalidade do ambiente procurado, este expectador se acomoda confortado pela musicalidade do silêncio que o acompanhou até ali.
Foi, mais uma vez, o que me aconteceu na noite de 5 de março passado quando me acomodei numa das cadeiras do mágico espaço da Basílica de San Marco. Estava por começar um dos espetáculos da Temporada de Música de Câmera 2011-2012 da Sociedade veneziana de concertos, promovida pelo Teatro La Fenice. Todos os anos, do início do outono, de um; ao fim da primavera, do seguinte, o Ente veneziano promove três grandes temporadas musicais: além daquela de câmera, igualmente a sinfônica e a operística-ballet. (Esta seção do terceiro setor das manifestaçõe venezianas tem como responsável permanente o bailarino e coreógrafo brasileiro Ismael Ivo.) O Teatro La Fenice mantém convenções com outros espaços da cidade, em especial com aqueles das igrejas, para neles localizar determinados espetáculos de sua vasta programação anual.
É o que acontece na noite da segunda-feira, 5 de março de 2012, quando as luzes que iluminam o espaço da Basílica de San Marco, principalmente aquelas emanadas de seus a frescos bizantinos que descem das altas abóbodas da arquitetura irregular, mas fascinante, para como que cobrir todo o espaço circunstante, acolhem o magnífico Quarteto Casals que se exibirá na execução de uma das mais famosas composições de Franz Josef Haydn (1732-1809), os “7 quartetos opus 51”, com uma Introdução e com uma conclusão, o Terremoto. Esta composição do mestre de Viena é também conhecida como a “das 7 palavras do Redentor na Cruz”, numa transcrição da versão original para orquestra. Haydn compôs 83 quartetos, com os quais o compositor imprimiu marcantes inovações para o gênero. Entre outras invenções, dele é a fixação da concepção que a composição de quartetos deve ser exercutada por um conjunto de quatro instrumentos homogêneos de timbre, (dois violinos, uma viola e um violoncelo), que procedem em ações alternadas, ora num conjunção de um tecido harmônico, impreciso ou apenas esboçado, com outras até mesmo completamente livres, por parte dos quatro instrumentos. Desde os seus primeiros quartetos, até o último, de 1803, a construção dos quartetos de Haydn se faz sempre mais complexa, com reveladoras inovações de linguagem.
O Quarteto Casals, chamado a Veneza para esta execução de Haynd, foi fundado em 1997 na Escola da Raínha Sofia, de Madrid, e desde a sua fundação, sob a direção de Antonello Farulli, se assinalou como um dos mais prometentes jovens quartetos europeus, com grandes sucessos de público e de crítica. Ativo por toda a Europa, nos Estados Unidos, na América do Sul e no Japão, o conjunto tem no seu próximo programa concertos no Wigmore Hall e no Barbican Center de Londres; no Concertgebouw de Amsterdão; no Lincoln Center e no Carnegie Hall de Nova Iorque; na Philharmonie e Konzerhaus de Berlim; na Tonhalle de Zurique; no Auditorio Nacional de Madrid; no Konzerthaus e Musikverein de Viena; na Philarmonie de Colônia; no Chatelet e na Cité de la Musique de Paris; na Library of Congress de Washington e na Marinskij de São Petroburgo. O Quarteto, composto pelos violinos Vera Martinez Mehner e Abel Tomàs, pela viola Jonathan Brown e pelo violoncelo Arnau Tomàs, acohidos por cordial aplauso, sobe no palco baixo que lhe servirá de espaço e começa, exatamente às 20 horas daquela noite de fim de inverno, mas ainda não de início da primavera, o concerto tanto esperado pelo numeroso público. Esta obra-prima de Haydn introduz a grande composição camerística esperada pelo público veneziano com uma Introdução começada por um tempo Majestoso e completada por um dolente Adagio.
Segue-se a primeira sonata da composição, aquela da palavra da expectativa: “Pater, dimite illis, quia nesciunt, quid fasciunt”, em um Largo conduzido pelos dois violinos e completado pela viola e pelo violoncelo. À mesma segue a sonata II, em ritmos Grave e Cantabile, “Hodie mecum eris in Paradiso”, canto de infinita esperança para todos os pecadores. A sonata III se desenvolve em constante ritmo Grave, comunicando violinos, viola e violoncelo com rara expressividade a entrega de todos os homens à proteção da Mãe do Filho de Deus imolado: “Mulier, ecce filius tuus”, entrega sublinhada pela harmonia dos instrumentos executantes, com particular ressalto do violoncelo. A sonata V, Adagio, dita “Sitio”, (Giovani 19,28), na sofrida doçura projetada pelas notas em Adagio, preanuncia a dolorosa melodia do movimento Lento da sonata VI: “Consumatus est”, com uma estrepitosa execução dos quatro componentes do Quarteto espanhol. A sonata VII, com o seu movimento Largo, “In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum”, com amplo sentimento de participação vivido pelo público com a música reveladora, fecha o relato do drama, relato completado em forma harmonicamente apoteótica com o Terremoto que tudo encobre: ”De repente, o véu do templo se rompeu em duas partes, de alto a baixo, a terra tremeu e as rochas se partiram, os sepulcros se abriram e deles sairam muitos corpos de santos, depois que repousavam, ressuscitaram e sairam dos sepulcros; depois da ressurreição, entraram na cidade santa e se mostraram a muitos.
O centurião e aqueles que faziam a guarda a Jesús, vendo o terremoto e aquilo que acontecia, tiveram grande medo e disseram: (Mateus, XXVII)”. Sob uma atmosfera de terror, resultada de inovadoras dissonâncias, tremados, de rápidos trilos, notas acentuadas e rebatidas, em uma complexidade musical de modernidade, chega-se à última nota. E um infindável sentimento temporal percorre toda a Basílica que vive a magia da execucação primorosa. O público chama reiteradamente por cinco minutos, ao palco descoberto, os componentes do Quarteto Casal. Saindo da proteção das naves bizantinas e retomando a caminhada por ruas e pontes de Veneza, encontramos de novo o silêncio, agora alargado em sons graves e dolentes provenientes da grande música apenas vivida no arco de uma execução durada exatamente uma hora, mas que permanece por longo tempo nos ouvidos do expectador reconfortado.