2.6 O testamento de Maurice Allais – II
Selecção, tradução e introdução por Júlio Marques Mota
(Conclusão)
Um proteccionismo sustentado, racional e razoável
A minha posição e o sistema que preconizo não constituiriam uma infracção aos países em desenvolvimento. Actualmente, as grandes empresas utilizam estes países pelos seus baixos custos, mas partiriam se os salários aí aumentassem muito. Estes países têm interesse em adoptar o meu princípio e a unirem-se aos seus países vizinhos, dotados de níveis de vida semelhantes, para desenvolverem em conjunto, por sua vez, um mercado interno suficientemente vasto para apoiar a sua produção, mas suficientemente equilibrado também de modo que a concorrência interna não assente unicamente sobre a manutenção de baixos salários. Isto poderia ter a ver, por exemplo, com os vários países do leste da União Europeia, que foram integrados sem qualquer reflexão nem sequer com prazos prévios de dimensão suficiente, mas também para os países de África ou da América Latina. As ausências de uma tal protecção trará a destruição de toda a actividade de cada país que tenha rendimentos mais elevados, ou seja de todas as indústrias da Europa Ocidental e dos países desenvolvidos. Porque é evidente que com o ponto de vista doutrinário do G20, toda a indústria francesa acabará por partir para o exterior. Parece-me escandaloso que empresas que são o fermento dos sítios rentáveis na França despeçam pessoal enquanto se vão colocar e trabalhar em zonas de menores custos, como foi o caso no sector dos pneumáticos para automóveis, com os anúncios feitos desde a Primavera por Continental e Michelin. Se nenhum limite for posto, o que vai acontecer pode já ser anunciado aos Franceses: um aumento da destruição de empregos, um crescimento dramático do desemprego não somente na indústria, mas também tanto na agricultura como nos serviços.
Deste ponto de vista, é verdade que não faço parte dos economistas que empregam a palavra “bolha”. Que haja movimentos que se generalizam, estamos de acordo, mas este termo “de bolha” parece-me impróprio para descrever o desemprego que resulta das deslocalizações. De facto, a sua progressão reveste um carácter permanente e regular, desde há mais de trinta anos até agora. O essencial de desemprego de que nós sofremos – pelo menos de muito do desemprego como este que se nos apresenta até 2008 – resulta precisamente desta libertação desmedida do comércio à escala mundial sem ninguém se estar a preocupar-se com os níveis de vida. O que se produz é por conseguinte outra coisa que uma bolha, é sim um fenómeno de fundo, estrutural, da mesma maneira que o é a liberalização das trocas, e a posição de Pascal Lamy constitui efectivamente uma posição sobre o fundo.
Crise e mundialização estão ligadas
Os grandes dirigentes mundiais preferem, quanto a eles, tudo reduzir a questões monetárias mas isto representa apenas uma parte das causas do problema. Crise e mundialização: as duas estão ligadas. Regular apenas o problema monetário não seria suficiente, não regularia a questão essencial que é a liberalização nociva das trocas internacionais. O governo atribui as consequências sociais das deslocalizações a causas monetárias, é um erro louco, estúpido.
Pela minha parte, combati as deslocalizações nas minhas últimas publicações (2). Conhece-se por conseguinte um pouco a minha mensagem. Enquanto que os fundadores do mercado comum europeu a seis tinham previsto prazos de vários anos antes de liberalizarem as trocas com os novos membros entrados em 1986 , a seguir , abrimos a Europa sem nenhuma precaução e sem se estar a deixar nenhuma protecção externa perante a concorrência de países dotados de custos salariais tão fracos que defendermo-nos deles seria ilusório. Alguns dos nossos dirigentes, depois disso, mostram-se surpreendidos com as consequências!
Se o leitor quisesse na verdade retomar as minhas análises do desemprego, tal como as publiquei nas duas últimas décadas, verificaria que os acontecimentos [relativos ao desemprego de massa] que actualmente vivemos não somente aí estão anunciados como aí se descrevem com detalhe. No entanto, estes textos beneficiaram apenas de um eco cada vez menor na grande imprensa. Este silêncio leva a que nos interroguemos.
Um prémio Nobel… télé-espectador
Os comentadores em economia que vejo exprimir-se regularmente na televisão para analisar as causas da actual crise são frequentemente os mesmos que aí vinham anteriormente para para analisar a boa conjuntura com uma total serenidade. Não tinham sequer anunciado a chegada da crise, e não propõem, a maior parte deles, nada de sério para dela sair. Mas convidam-nos ainda. Pela minha parte, não era convidado a vir à televisão quando anunciava, quando escrevia, desde há mais de dez anos, que uma crise essencial acompanhada de um desemprego descontrolado iria em breve aparecer. Faço parte daqueles que não foram admitidos para explicar aos Franceses quais são as origens reais da crise enquanto que eles ficaram privados de qualquer poder real sobre a sua própria moeda, para pleno proveito dos banqueiros. No passado, transmiti a certas certas emissões sobre economia a que assistia como télé-espectador, a mensagem que estava disposto a ir falar daquilo em que se tornaram progressivamente os bancos actuais, sobre o papel verdadeiramente perigoso dos traders, e porque é que certas verdades não são ditas sobre os mesmos. Nenhuma resposta, nem sequer mesmo negativa, veio de nenhuma cadeia de televisão e isto durante anos.
Esta atitude repetida levanta um problema relativamente aos grandes meios de comunicação social em França: certos peritos são autorizados a lá ir, enquanto outros são proibidos. Embora seja um perito internacionalmente reconhecido sobre as crises económicas, nomeadamente sobre a de 1929 ou de 1987, a minha situação presente pode-se por conseguinte resumir da maneira seguinte: sou um télé-espectador. Um prémio Nobel… télé-espectador. Encontro-me assim face aos que afirmam os especialistas regularmente convidados, quanto a eles, sobre os palcos de televisão, face a certos universitários ou analistas financeiros que garantem bem compreender o que se passa e que sabem o que é necessário fazer. Enquanto que realmente não compreendem nada. A sua situação assemelha-se à que constatei quando voltei para os Estados Unidos em 1933, com o objectivo de estudar a crise profunda que aí grassava, os sem emprego e os sem abrigo: havia uma incompreensão intelectual total sobre o que se estava a passar. Hoje igualmente, estes peritos enganam-se nas suas explicações. Alguns enganam-se duplamente ignorando a sua ignorância, mas outros, que a conhecem e no entanto a disfarçam, enganam assim, todos eles, os Franceses.
Esta ignorância e sobretudo a vontade de a esconder graças à certos meios de comunicação social denotam a degradação do debate e da inteligência, devido a interesses específicos frequentemente ligados ao dinheiro. Interesses que desejam que a ordem económica actual, que funciona bem a seu favor, perdure tal como ela é. Entre estes encontram-se em especial as multinacionais que são os seus principais beneficiários, em conjunto com os meios bolsistas e bancários, de um mecanismo económico que os enriquece, enquanto se empobrece não só a maioria da população francesa mas também a maioria da população mundial.
Pergunta chave: qual é a verdadeira liberdade dos grandes meios de comunicação social? Falo da sua liberdade em relação ao mundo da finança tanto quanto às esferas da política.
Segunda pergunta: quem é que assim detém o poder de decidir que um perito está ou não autorizado a exprimir um livre comentário na imprensa?
Última pergunta: porque é que as causas da crise tais como são apresentadas aos Franceses por estas personalidades convidadas são frequentemente o sinal de uma profunda incompreensão da realidade económica? Tratar-se-á apenas da sua parte de ignorância? É possível para certo número de entre eles, mas não para todos. As pessoas que detêm este poder de decisão deixam-nos a escolha entre ou ouvir ignorantes ou ouvir mentirosos.
(1) L’Europe en crise. Que faire?, éditions Clément Juglar, Paris, 2005.
(2) Notamment: la Crise mondiale aujourd’hui, éditions Clément Juglar, 1999, et La Mondialisation, la destruction des emplois et de la croissance: l’évidence empirique, éditions Clément Juglar, 1999